António Manuel Couto Viana: o Poeta que repudiou baixa política e golpes partidários, por Ricardo de Saavedra

 

António Manuel Couto Viana: o Poeta que repudiou baixa política e golpes partidários, por Ricardo de Saavedra



Ricardo de Saavedra



No ano em que António Manuel Couto Viana morreu chovia mansamente ao princípio da noite do Dia de Portugal em Viana do Castelo, quando o féretro entrou na igreja de São Francisco da Ordem Terceira. Ninguém o esperava. No dia seguinte recusaram cobrir-lhe a urna com a bandeira amarela e preta do município que o vira nascer e o elegera Cidadão de Mérito da cidade. Também nenhum dos monárquicos presentes, se é que algum havia, ousou desdobrar o estandarte azul e branco que desde a juventude o guiara. E nem o Herdeiro do Trono enviou à Família um cartão de pêsames que fosse. Apenas o retrato que servira de capa ao n.º 18 da revista Limiana indicava que ali se encontrava o maior Poeta de sempre da Ribeira Lima. Hoje nem isso. Quem for ao cemitério anexo à igreja de São Francisco em busca do nome António Manuel Couto Viana (AMCV) ou de sinal que aponte onde repousa o ilustre desaparecido, para tirar uma fotografia ou para rezar um «padre-nosso», nada encontrará que o indique.

No ano em que AMCV morreu decorria na Assembleia da República a XI legislatura. Andavam os deputados do costume freneticamente despassarados com os males da pátria e o bem-estar sindical do povo. Dessa incongruente azáfama nos daria conta o poeta e crítico literário Eduardo Pitta, no seu blogue «Da Literatura», num inacreditável e dramático relato:

«António Manuel Couto Viana, poeta, contista, dramaturgo, memorialista, fundador (com Alberto de Lacerda e David Mourão-Ferreira) da Távola Redonda, morreu no passado dia 8. No dia 16, o PS agendou um projecto de voto de pesar pela sua morte, subscrito na véspera por doze deputados socialistas. No dia 18, presumo que em reunião dos grupos parlamentares, a intenção de voto foi retirada depois dos protestos apresentados pelo BE e PCP, com o argumento, e vou citar terceiros, de que o Parlamento não podia homenagear quem combatera «ao lado das tropas nacionalistas, na guerra civil de Espanha.» Não imagino qual pudesse ter sido o contributo de um garoto na Falange: Couto Viana tinha 13 anos quando a guerra começou, e 16 quando acabou. Adiante.

O imbróglio surpreende-me a vários títulos. Em primeiro lugar, pela passividade dos doze subscritores, entre os quais se encontra um capitão de Abril (Marques Júnior) e pessoas com responsabilidades na área cultural. Em segundo lugar, pela indiferença da direita, que não foi capaz de pensar pela sua cabeça. Ninguém no PSD e no CDS-PP achou pertinente homenagear Couto Viana. Teria sido preferível um voto chumbado a voto nenhum. Pelos vistos, os gostos solitários, i.e., não conformes ao diktat partidário, estão reservados à aliança policial-parlamentar. A direita, que tanto barafusta com o monopólio literário da esquerda, mostrou-se incapaz de celebrar o mais corajoso dos seus. Têm vergonha de quê? Quanto ao silêncio dos media, estamos conversados. Couto Viana? Quem é esse gajo?

O assunto vem atrasado? Talvez venha. Mas só ontem à noite tive conhecimento dele. E ainda não me refiz do espanto.»

No ano em que AMCV morreu também José Saramago deixou este mundo. E a revista LER dedicou-lhe o habitual volume de férias de Julho/Agosto. Mas foi à ignóbil atitude dos deputados atrás referida que o director Francisco José Viegas, mais tarde Secretário de Estado da Cultura de passagem, dedicou parte substancial do seu editorial. Recordar estes parágrafos(1), para que se defina uma das mais absurdas acções da nossa assembleia, é imprescindível:

(…) «Veja-se por exemplo o que se passou com a morte (a 8 de Junho) de António Manuel Couto Viana: a Assembleia da República recusou pronunciar-se sobre um voto de pesar pelo desaparecimento do poeta, invocando considerações de ordem política – a maior parte delas, se não a totalidade, aliás, completamente absurdas e falsas. Certamente que, no conjunto de actividades a que se dedica a câmara de deputados (essas sim, deviam ser severamente escrutinadas) não adquirem especial relevo considerações de natureza literária. Sabe-se como a ignorância e a pusilanimidade abundam na classe política. Têm outras coisas a que dedicar-se, e é perfeitamente compreensível. Isso, aliás, devemos exigir-lhes. Mas a atitude dos deputados e da instituição diante da morte de Couto Viana é não apenas uma distracção penosa e aviltante, como um dos momentos tristes da sua existência recente. Recusar esse voto porque Couto Viana «era de direita» (não vale a pena encontrar mais justificações, é disso que falamos) transforma a Assembleia da República, tanto as suas bancadas de esquerda como as de direita, numa má representação nacional. Aliás, já que se fala do assunto, seria bom dizer que essa «ala direita» atingiu, ao deixar passar em branco – e sem escândalo – a atitude revanchista da maioria parlamentar, um nível lamentavelmente baixo e muito próximo da inimputabilidade intelectual.

O que prova que a literatura se deve reservar aos livros e não à praça pública e à voracidade grosseira desse ruído dos políticos a quem se entrega um microfone da televisão.»

A disputa da política por politiqueiros, que são a maioria daqueles que chafurdam no «sórdido chiqueiro» dos Passos Perdidos, onde melhor e mais se ceva a «grande porca bordalesca», já tinha levado A. M. Couto Viana a afirmar que «a política não é para poetas. (…) Sendo eu poeta não posso ser político. E, no meu caso pessoal, afirmava, não o quero ser!» Nessa postura se manteve até à morte, indiferente a lisonjas e benesses. Assim se apresentava com orgulho: «Sou um português patriota, de formação e convicções direitistas!» Afirmava-o desassombradamente, «em confronto com tanto oportunismo e covardia que vi medrar desde a grande perdição do 25 de Abril.»

Viu a sua pátria ser «dia a dia degradada, vendida, humilhada, decepada ao som dos gritos de triunfo da traição, do vandalismo, da mediocridade.» A «descolonização exemplar encheu-me a cabeça de brancas.» Pois foi um dos responsáveis pelo «êxodo pavoroso dos portugueses» quem, num gesto derradeiro do seu último dia na Presidência da República, a 8 de Março de 1996, lhe outorgaria o Grande Oficialato da Ordem do Infante D. Henrique. E terá sido essa tão nobre quanto arrojada atitude de Mário Soares a inspiradora da dúzia de deputados do PS que, no ano da sua morte, ousou propor o voto de pesar que a maioria espezinhou. Ele afinal, que não era político, nunca fora político, e apenas poeta se confessou e poeta quis morrer. E assim ficará para sempre atravessado como um espinho ensanguentado na decisão ignara daquela XI legislatura de má memória.

No ano em que AMCV morreu somente lembramos uma voz que se ergueu em voto unânime de pesar pelo falecimento do maior poeta da Ribeira Lima. Foi, como seria de esperar, a da Assembleia Municipal de Ponte de Lima. Por proposta do grupo municipal do Partido Social-Democrata, assim ficou registado:

«António Manuel Couto Viana deixou-nos no dia 8 deste mês de Junho de 2010. Vulto superior das letras portuguesas, um dos maiores escritores da nossa literatura contemporânea, Couto Viana viveu grande parte dos seus anos em Lisboa, mas esteve sempre próximo do seu Alto Minho.

Ao longo da sua vida, amiúde voltava à sua terra Natal, a Viana, ou a Ponte de Lima, para um "Café no Largo Camões/ Uma oração na Matriz / E a busca de corações / Que, no meu, ganhem raiz."

E da mesma forma que os limianos criaram raízes no coração de Couto Viana, também Ponte de Lima se rendia ao escritor. Por diversas vezes, Ponte de Lima preiteou Couto Viana, através da atribuição de honrosa medalha municipal, mas também de homenagens da Casa do Concelho de Ponte de Lima em Lisboa ou da Revista Limiana.

A Assembleia Municipal de Ponte de Lima, reunida em 19 de Junho de 2010, manifesta o seu pesar pelo falecimento de António Manuel Couto Viana e curva-se em tributo de homenagem à sua obra.»

Nunca A. M. Couto Viana perdeu tempo com textos de exaltação política ou de sabujo apoio a regimes vigentes. Pelo contrário. São conhecidas as suas virulentas críticas à Censura, contra a qual lutou, por vezes em desespero, anos a fio. É pena que numa recente exposição retrospectiva sobre a sua obra teatral esse aspecto tenha sido tratado de forma irrelevante. Por ignorância? Certamente que sim, e bastava o título «António Manuel Couto Viana Homem do Teatro» para nos alimentar esta e outras sérias dúvidas. Homem do teatro? Contra-regra, porteiro ou encenador? E de qual teatro? Do Sá de Miranda vianês, do Monumental ou do Trindade, onde parte da exposição passou sem ninguém dar por ela? O Mestre de Teatro não iria certamente apreciar o tratamento.

Desde o início da Limiana que AMCV foi esteio destas páginas. Cidadão do mundo que do oriente do Oriente às plagas de Santa Cruz do Brasil, que das ilhas gregas às africanas Terras do Fim do Mundo cantou em prosa e verso espalhando por todas elas a cultura portuguesa e os valores pátrios, Couto Viana foi uma das mais brilhantes e valiosas conquistas desta publicação. Tratando de gentes e cousas da nossa terra, no seu estilo inconfundível e aristocrático, jamais nelas deixou transparecer influência de bandeiras ou cores partidárias. A entrevista que a seguir recuperamos é talvez o texto mais claro e lúcido sobre o pensamento político do imortal poeta. A entrevista, feita por um velho amigo que o conhecia desde a sua chegada a Lisboa e que na altura era chefe de redacção no jornal aRua, para onde o 25 de Abril a ambos empurrara após amargos meses de desemprego, foi revista e acrescentada pelo entrevistado.

Quatro décadas dobradas sobre a revolução dita dos cravos e quatro anos após a morte de AMCV, recuperar e publicar esse texto é prestar ao Poeta que nunca foi político a justiça que merece quem nunca traiu. E, mais do que isso, é trazer novamente à Limiana, numa imorredoira homenagem, aquele para quem o Futuro se chamava esperança e para quem Portugal ainda era eterno.

 

Nota:
(1) Excerto do Editorial do director da revista LER, Francisco José Viegas, edição n.º 93, Julho/Agosto 2010.

Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 38, de Junho de 2014

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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