Proferida na Igreja Matriz de Ponte de Lima, em 21 de Abril de 2007, na Cerimónia de Entronização dos Confrades da Confraria Gastronómica do Sarrabulho à Moda de Ponte de Lima
Nos meus tempos de escola do quarto e quinto anos do liceu vianês de Gonçalo Velho, calhou-me em sorte, como professor de português, um pachorrento e obeso senhor, mais propenso aos prazeres da mesa do que à pedagógica cátedra do ensino. Eram famosos os temas que escolhia para as redacções a que frequentemente sujeitava os seus alunos. Sempre relacionados com a gastronomia. Um dos eleitos era o porco. Antes de iniciarmos o trabalho, frente à folha de papel em branco, com a caneta suspensa na mão inquieta, ele dissertava sobre a utilidade do bácoro, sintetizando-a da seguinte forma: O porco come-se”. Porque nada mais recebemos dele, porco, salvo o corpo roliço, negro ou róseo, ao serviço da culinária.
Com efeito, assim é, no rol daqueles outros animais da quinta, que abastecem a távola familiar: a galinha, o pato, o peru, além da carne, dão-nos os ovos; a vaca, a cabra, a ovelha, dão-nos o leite e a ovelha brinda-nos até com a lã. Mas o porco, come-se… e bonda!
Tinha razão a gula do velho mestre de português.
Porém, para alcançar o supremo gosto de o deglutir, há que assistir à sua engorda e morte, com impaciente atenção. Porque delas resulta a mais festiva refeição do alto-minhoto: o sarrabulho, o almoço da matança.
Nos primeiros sintomas de Inverno em terras limianas, com sinais brancos de geada a tornar tenros os troços do Natal, a casa do lavrador (recordo-o bem e não sei se é hoje recordação do passado) acorda uma manhã cedo, num alvoroço de passos ligeiros e guinchos aflitos, vindos do eido ou da adega: é a matança do porco (com vossa licença!) excitante e bárbara.
Cumpre-se, então, o ritual culinário: a recolha, no alguidar, do sangue do corpulento animal que andou meses a ser cevado de lavaduras grossas, no cortelho exíguo; a chamuscadela na fogueira de palha, do alvor das carnes; o raspar raque-raque das ásperas cerdas; por fim, o deixá-lo pendurado, aberto, nas traves escuras da adega, exposto à alegria de todos, sonhando já abundâncias do fumeiro e salgadeira.
No dia seguinte, procede-se à buliçosa confecção dos enchidos, à chouriçada a aquecer, depois, na vasta lareira de pedra, vendo, do alto, o fervilhar activo dos potes de ferro, que não tardará a adubar de aromas e sabores. E pronto. Está pronta a deliciosa matéria-prima dos sarrabulhos.
E eles vão realizar-se, ora no íntimo do lar, embora sempre o atoalhado da mesa veja, em seu redor, amigos e parentes do lavrador, pois o sarrabulho é motivo de convívio feliz, não de solitários e avaros, ora em restaurantes e tabernas, figurando, destacado, nos pomposos cardápios, ou em simples papéis colados às portas dos estabelecimentos, como poderoso chamariz.
Na Rota dos Sarrabulhos Minhotos, Ponte de Lima é um lugar cimeiro. Chama-se, até, a Catedral desse prato sublime e singular, próprio para os tempos frios, no peso dos seus ingredientes, confortando estômagos, dando suadelas de gozo aos corpos enregelados. Mas os Estios também o não repudiam.
Algumas vezes tive o prazer de almoçar à mesa aldeã ou viloa do sarrabulho, rica e sápida, quando a família passava umas férias felizes em São Martinho da Gandra, quase ao rés de Ponte de Lima, em tempos de Natal.
E, em outros momentos, outras épocas, outros anos, busquei essas delícias na Encanada, na Clara Penha. E na companhia saudosa de Amadeu Costa ou de José Rosa de Araújo, no Gaio ou na Maria Preta.
A tal ponto prezo o sarrabulho pontelimês, que ele me foi fonte de inspiração poética, confessada em três quadras:
“Começa o sarrabulho pelas papas
Depois, o arroz, o lombo, enchidos e rojões.
E tudo rapas, pois não escapas
A tantas tentações.
É o porco (com tua licença)
A dar-te o corpo que andou a engordar,
Para encher o fumeiro, para encher a despensa
E a salgadeira (o cofre do lar).
Mas se tens vontade
De apreciar melhor esta obra-prima,
Vai comê-lo a casa de um abade
Ou a Ponte de Lima.”
A mais bela vila da Ribeira-Lima, orgulhosa deste tesouro gastronómico que lhe distingue a cozinha, não podia deixar de fundar, na sua região, uma Confraria do Sarrabulho, para conservar-lhe a pureza da receita, a autenticidade dos ingredientes e aumentar-lhe a divulgação.
Louvores sejam dados a quem teve tal iniciativa; a quem a vem concretizar.
Fialho de Almeida afirma que “um povo que defende os seus pratos tradicionais defende o território” e que “a invasão armada começa pela cozinha.”
Não pode, pois, um país, uma região, um território, possuidor das suas próprias características gastronómicas (um dos seus maiores valores culturais), permitir que essa invasão se faça, embora armada, apenas, de panelas, talheres e tachos, adulterando um paladar de séculos.
É uma oposição tenaz, essa intransigente defesa do seu prato do sarrabulho, mesmo que, para isso, arme um sarrabulho, legítimo e vitorioso, que a Confraria dos Gastrónomos do Minho deseja da sua aliada agora nascida, para a consagração, vinda do chão fecundo da Ribeira-Lima, da mais opípara forma de prestar homenagem culinária àquele porco, cuja matança é mantença do lar minhoto, e a quem, salivando, rendi elogios, nas redacções de Português, durante a adolescência escolar.
António Manuel Couto Viana
Ponte de Lima, 21 de Abril de 2007
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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