Ponte de Lima nos Caminhos de Santiago

 

Ponte de Lima nos Caminhos de Santiago




João Gomes d’Abreu
Presidente da Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago



Creio que nunca antes, como agora, os Caminhos de Santiago terão visto tanta gente a percorrê-los, deslocando-se a pé dos mais distantes lugares, por esta Europa fora. Por certo, nem mesmo nos tempos áureos da Idade Média, a Peregrinação jacobeia terá tido uma expressão tão forte. E curioso é que, talvez por força da mediatização, ainda hoje ela continua a dar um efectivo contributo para a consolidação da identidade europeia, como outrora aconteceu quando se forjava uma afinidade entre povos tão distantes, mas que perfilhavam a mesma Fé.

Não é que agora se ergam catedrais ou se risquem cidades novas, como as que imortalizaram o chamado Caminho Francês, que durante mais de cinco séculos drenou a Europa na direcção de Santiago. O que hoje se passa é um fenómeno diferente, que me atrevo a dizer que não assentará exclusivamente na Fé, que muito menos é movido pela crença nas relíquias do Apóstolo, mas que enraíza profundamente na fraternidade cristã que irmana os povos livres e respeita as suas diferenças. E é por isso que encontramos no Caminho tantos Peregrinos que independentemente das suas convicções, procuram na solidão, nas adversidades, na Natureza, nas expressões culturais, nas relações sociais, um sentido para a sua vida.

Também em Portugal este fenómeno se arrraigou com crescente entusiasmo nos últimos quinze anos. De uma rede jacobeia ainda pela rama conhecida, foi já possível salientar a sua espinha dorsal e proporcionar-lhe as condições elementares para ser utilizada pelos Peregrinos que demandam Santiago. Assim aconteceu com o itinerário Porto-Barcelos-Ponte de Lima-Valença, que é a sequência natural do chamado Caminho Português, que na Galiza estabelece a ligação entre a fronteira de Tui e a cidade santa, num percurso rectilíneo que inclui Redondela, Pontevedra e Padrón. E este itinerário, hoje muito bem sinalizado, limpo e desimpedido e com o apoio de uma excepcional rede de albergues, estende-se já até Lisboa, sendo percorrido nos dois sentidos por milhares de Peregrinos que visitam o túmulo do Apóstolo e por muitos que depois prosseguem até ao Santuário de Fátima para agradecer e invocar a protecção da Virgem Santa Maria.

No contexto das antigas peregrinações, os requisitos que determinavam os Peregrinos na programação da sua viagem eram, essencialmente, a segurança, a rapidez e a comodidade, a que podia juntar-se alguma devoção particular ou outro interesse específico que justificasse escalas determinadas. 

A passagem em Ponte de Lima não era obrigatória, mas era uma preferência praticamente generalizada de todos os Peregrinos que provinham do Porto ou do interior do País, escalando Barcelos ou Braga. E era-o pela circunstância de ser nesta vila a única ponte que atravessava o curso médio do Lima, já que as outras, quer a da Barca, quer a de Ginzo de Limia, obrigavam a desvios complicados pelas cabeceiras do rio e em Viana, só nos alvores do séc. XIX se lançou a primeira travessia, muito rudimentar e, por isso mesmo, de efémera utilidade.

Estes dois percursos que confluem em Ponte de Lima para seguirem juntos para Valença, provinham de Braga e de Barcelos. O primeiro resultava da confluência na capital da Província, de diferentes trajectos que vinham sobretudo do interior. O segundo congregava a maior parte dos Peregrinos provenientes do sul e que não queriam alongar a viagem com uma escala desnecessária em Braga.

Não existem muitos relatos antigos de Peregrinações no nosso país ou, pelo menos, não são conhecidos por nunca terem sido publicados ou referenciados nos relatórios de estudo. Mas são estes relatos que nos permitem identificar os principais itinerários e perceber as circunstâncias que determinavam a viagem e que muitas vezes nos dão ainda um vasto conjunto de fragmentos de informação, que podem ser pistas de investigação de grande interesse. A título de exemplo, tomemos quatro relatos de Peregrinos que passaram em Ponte de Lima nos séculos XV, XVI e XVIII.

Um deles, que nos chegou por duas traduções em latim pouco concordantes, foi a do Barão Leo de Rožmitál e Blatná, cunhado do Rei da Boémia Jorge Podĕbrad, que aqui passou com a sua comitiva em 1466, proveniente de Braga e da região de Trás-os-Montes, por onde entrara no nosso país.

 

De Braga fomos a Ponte de Lima, povoação que dista dela cinco milhas e está situada entre montes. Para lá chegar passa-se o rio Cávado, não muito longe de Braga, sobre uma ponte de pedra que não é grande. Mas o rio que corre junto a Ponte de Lima, chamado Lima, é atravessado por uma ponte de pedra bem comprida. Esta vila está rodeada por muralhas de cantaria com torres quadradas e daí a Valença do Minho são cinco milhas.

 

A referência a Ponte de Lima é vaga e a comparação que faz da dimensão da sua ponte com a de Prado é um facto que ainda hoje se pode confirmar.   

Alguns anos depois, em 1494, o cientista alemão Hieronymus Münzer, que fora recebido em Évora pelo Rei D. João II, inicia em Lisboa a sua peregrinação a Santiago, passa em Coimbra, Porto e Barcelos e chega a Ponte de Lima em pleno inverno, no dia 10 de Dezembro.

 

No dia 10, depois de comer, saímos de Barcelos e após cinco léguas compridas alcançámos a povoação de Ponte de Lima, banhada por um rio chamado Lima, com uma bela ponte de dezoito arcos. Comemos numa venda e três milhas adiante chegámos a Cossourado.

 

A descrição que faz de Ponte de Lima é breve e pouco ou nada acrescenta ao que se conhece dela. No entanto, é curiosa a referência à venda, que diz ser a três milhas de Cossourado, o que coloca o local algures entre a Labruja e Agualonga, consoante o tipo de milha a que o autor se refere – a germânica ou a romana.

Exactamente um século mais tarde, em 1594, é a peregrinação de Monsenhor Fabio Biondo da Montalto, cujo relato foi pormenorizadamente feito pelo seu Secretário, o Padre Giovanni Battista Confalonieri, que descreveu todo o percurso, praticamente idêntico ao de Münzer. Chegaram a Ponte de Lima pelo fim da tarde de 29 de Abril. Vale a pena, como enquadramento, incluir na transcrição as referências preambulares que Confalonieri faz sobre o nosso Minho:

 

Algumas notas sobre a região de Entre Douro-e-Minho ― a cada passo se acham fontes e rios; o país é fresco; existe alguma floresta; há montanhas peladas, mas também bons terrenos de produção, embora sem gente que os trabalhe. E há bois que espantam as moscas das espáduas, atirando-lhes terra com as patas.

Fazia-se então a sementeira do milho. Um arava, outro semeava, outro cobria de terra, com dois bois que puxavam um aparelho que alisava o terreno. Mas ao longo do caminho, para os cavalos, só obtínhamos centeio.

Às quatro da tarde saímos para a vila da Correlhã, onde existe uma pequena ponte sobre o rio Correlhã. A noite foi em Ponte de Lima, uma vila agradável, com uma ponte de quarenta arcos, entre pequenos e grandes, obra de Júnio Bruto. É toda em pedra e bem se vê que é de origem romana. É uma povoação reguenga. Nas imediações existe um Convento de Capuchinhos, onde Monsenhor se deteve e na sua frente as mais formosas azinheiras que se possa imaginar. Oito léguas.

Sábado, último dia de Abril, fomos comer à Venda da Pica, que é uma casita isolada, sem nada mais. As cavalgaduras e a maior parte da comitiva ficaram fora. Passa aí um riacho e o caminho é mau. Nota ― nesta região espalham ramagem nos caminhos para apodrecer e com ela estrumar os campos. É aqui que começa a serra da Labruja, difícil de vencer. A três léguas fica a ponte de Cerdal e depois Valença, no limite de Portugal […]

 

A descrição é bastante correcta e denota a preocupação do autor em informar-se sobre as questões que aflora – a vila era reguenga, ou seja, da Coroa e a ponte tinha, de facto, quarenta arcos e se não fora obra de Décio Júnio Bruto, é quasi contemporânea deste Cônsul romano. Já as azinheiras na frente do Convento de Santo António foram certamente confusão sua com carvalheiras, ambas quercíneas e pouco destrinçáveis a um olhar menos atento, sobretudo nesta época, quando a folhagem estaria a despontar. O rio que atravessa a Correlhã, esse, como se sabe, sempre se chamou Torvela. Mas o aspecto mais curioso é de novo a referência à venda onde almoçaram, que aqui se consegue precisar melhor, por ser uma casa isolada, junto ao caminho e a um riacho, no sopé da serra da Labruja. Com estes condicionamentos, a área é, de facto, muito reduzida, circunscrevendo-se às imediações do antigo mosteiro beneditino de Santa Ana da Labruja, onde passa a ribeira de S. João, num local actualmente conhecido por Bandeira. Com estas indicações, há cerca de dez anos, fez-se aí uma sondagem e identificaram-se os alicerces de um pequeno conjunto edificado que configura, realmente, a estrutura e a distribuição funcional característica deste tipo de refúgios. Tratar-se-ia da Venda da Pica? E seria, também esta, a que Münzer refere no seu relato? Ou haveria muitas mais ao longo deste caminho, que era então um percurso muito concorrido?

Dos relatos anunciados, last but not least é o do italiano Nicola Albani, um pobre criado do Arcebispo de Capua D. Mondillo Orsini, que em 1743 veio de Nápoles em peregrinação a Santiago, prosseguindo depois para Lisboa, onde esteve um ano, até Janeiro de 1745, quando encetou o mesmo caminho de regresso. É uma extensa e detalhada descrição, que inclui até alguns desenhos da sua lavra, em que se retrata em situações deveras curiosas. Um deles pode mesmo considerar-se um precursor da banda desenhada, pois ilustra uma aventura em que esteve envolvido na serra da Labruja, já no concelho de Ponte de Lima, onde figura numa sucessão de três quadros que representam o que por palavras necessitou bem de uma lauda de papel. Vejamos então a parte que importa a Ponte de Lima.

 

A 18 de Dezembro, assim que amanheceu, saí de Valença. Nesse dia tinha que passar uma grande montanha rochosa, chamada serra do Lima [Labruja], sinistra e perigosa por causa dos ladrões, mas não havia outro remédio, pois era por aí o caminho que teria que percorrer. Como só às sete da tarde iniciei a subida da montanha e numa estalagem que havia no sopé, uma bela mulher me advertiu que tivesse cuidado e me fizesse ao caminho na companhia de outro viajante, já que a montanha estava cheia de bandidos, conselho e amabilidade que lhe agradeci, retorqui com a certeza de que o mesmo Deus que sempre me ajudara no passado, me ajudaria também no futuro. Com este ânimo me entreguei a Deus e sozinho me pus a andar.

Concluída a subida e quando me preparava para descer, vi um homem a cerca de vinte passos, sentado numa pedra que ocupava metade do caminho e o pior é que não havia árvore que me pudesse esconder, apenas pedras que me fariam cair pela vertente se tentasse fugir. À vista daquele homem ocorreu-me logo que se tratava de um bandido, mas sem me acobardar, enchi-me de ânimo para fazer o acto de contrição e invocando por três vezes os nomes de Jesus, Maria e José, encomendei-me ao Apóstolo Santiago, meu protector, e persignando-me, fui até ele, circunspecto. Olhei-o de relance para ver se tinha arma de fogo, porque se tivesse entregava-lhe logo o meu bordão e tudo o que tivesse. Mas pelo que pude observar, dei-me conta que tinha apenas uma espada muito larga, como um sabre de guarda à espanhola, a que chamam catana. É que em Portugal usam-se apenas espadas e facas flamengas. Tranquilizei-me então e disse para mim próprio que não tendo ele arma de fogo nem cúmplices, chegaria para o deixar morto naquele lugar, para que não fosse ele a matar-me. Passei, assim, resoluto em frente dele, que entretanto se colocara na desembocadura de um caminho, cumprimentando-o afavelmente em português, ao que ele correspondeu na mesma língua, enquanto se punha de pé para me perguntar de onde vinha, para onde ia e se estava só ou acompanhado. Respondi-lhe que vinha de Santiago de Compostela e que contava chegar a Lisboa, se Deus quisesse e que não estava só, éramos três e estávamos todos na sua presença. Enquanto ele se levantava para me questionar, avancei dois passos para uma posição inferior e olhei-o com firmeza para me prevenir dos movimentos, mas as suas atitudes eram correctas e não se assemelhavam às de um ladrão. Enquanto isso, caminhava na minha direcção com a espada debaixo do braço e perguntou-me onde estavam os meus dois companheiros, ao que lhe respondi que os três que referira eram eu próprio, o meu bordão e o crucifixo que levava ao peito. Mas ele agastou-se por julgar que o gozava e quis saber porque me afastava dele, respondendo-lhe eu que em campo aberto não confiava em ninguém. Exclamou então – “Diabo de vagabundo, julgas que estás a falar com algum bandalho da tua espécie?” Eu, com bons modos lhe falava e afastava-me, enquanto ele procurava aproximar-se, acabando por se denunciar como ladrão ao exigir-me dinheiro, caso contrário me mataria. Com esta ameaça fiquei furioso, mas tentei persuadi-lo de que não trazia dinheiro, pois não passava de um pobre peregrino que vivia da caridade com que Deus me abençoava no dia-a-dia e em mim só encontraria piolhos. Mas ele não se contentou com o que lhe disse e ameaçou despir-me, deixar-me morto naquele sítio, enquanto desembainhava a espada para desferir o golpe. Pus-me logo em guarda e, furioso, já fora de mim, insultei-o “Ah, ladrão do Diabo, eu já te dou a bolsa do dinheiro com este bordão nessa barriga de merda, velhaco do Diabo!”. Tinha perdido o receio, parecendo-me até que estaria em vantagem com a ajuda do bordão, que era mais comprido que a espada dele e tinha até reforçado em Santiago com um ferro pontiagudo de palmo. Fazia tudo por tudo para que a espada me não desarmasse, enquanto ele praguejava para que eu perdesse o bordão, ameaçando matar-me, mas eu garanti-lhe que o Céu estaria contra mim se não conseguisse acabar-lhe com a vida ali mesmo. Mas notai bem, Leitores meus, que ele tornou-se tão duro e feroz como um touro ferido que me queria desfazer. Só de recordá-lo, ainda tremo e não fora a protecção do Apóstolo Santiago, teria sucumbido e ele daria conta de mim de qualquer forma. Ainda me parece ouvir – “Oh Nicola, Nicola, defende-te com coragem com este forte e milagroso bordão, que sairás vencedor!”. E pareceu-me adquirir uma força de gigante, que me permitia desfechar-lho na cabeça, nos braços e em todo o corpo. Mas ele, por todos os meios procurava sacar-me o bordão, porque não conseguia chegar-se a mim para me golpear e ia recebendo as pauladas que lhe dava. Cego de fúria, tentava atingir-me com a espada como se fosse um sabre, que me cortaria ao meio se fosse atingido, mas eu, também já atordoado com as investidas, lá me ia esgueirando para um lado e para o outro. Atirando-se, então, sobre mim, feriu-me de ponta na cabeça e ao tentar aparar o golpe com o bordão, atingiu-me também uma mão. Invoquei de novo Santiago e dei-lhe uma fortíssima pancada no peito que o desequilibrou e deitou por terra. Caí logo sobre ele para que se não levantasse e tantas pancadas lhe dei nas pernas, que parti o bordão em dois. Pareceu-me que estava meio morto mas, ainda assim, agarrei a metade ferrada do bordão e continuei a espancar-lhe o corpo todo. E ele, já mal podendo falar, só rogava piedade e confissão, pedindo perdão pelo que fizera, mas eu replicava – “Morre, ladrão! Morre, ladrão!”. Vendo então que estava já mais morto que vivo, sem forma humana e proferindo apenas débeis lamentos, porque o golpe que lhe desfechara no peito devia ter-lhe atingido o coração, pois brotava muito sangue da ferida, coloquei a espada a seu lado e deixei-o.

Sem mais delongas, desci a serra em direcção a Ponte de Lima. Devo dizer, porém, que este episódio, desde a conversa que entabulámos até fim da luta, durou cerca de um quarto de hora, pelo que considero ter sido um milagre de Deus Omnipotente e do meu protector, o Apóstolo Santiago, pois eu bem podia ter lá morrido. Como é possível que um homem destro e armado, com a espada desembainhada, fosse morto por um simples peregrino com uma vulgar clava ou bordão e ainda por cima embaraçado no equipamento que transportava? Bem podeis crer, Leitor, que o vosso servo Albani não mentiu sobre esta viagem, narrou-a, sim, com verdadeira sinceridade, pois mal sabe escrever e descrever as suas aventuras. Surpreender-vos-á, senhores Leitores, que me orgulhe de ter feito uma boa e santa Peregrinação, tendo tirado a vida a um homem, mas fi-lo justamente como reza o ditado – Deus jubet me solum a te defendi [Deus ordenou-me que me defenda de ti]. E para que todos se admirem com o milagre desta batalha, achei por bem descrever toda a acção.

Entretanto, pelas onze da noite, cheguei à vila de Ponte de Lima, distanciada dezasseis milhas de Valença, que é atravessada por um rio que tem o mesmo nome de Lima, com uma magnífica ponte de mármore de dez arcos, a maior maravilha que se pode imaginar. E fui logo a uma pequena estalagem cuja dona era uma santa velhinha, muito amável, que vendo-me pálido e ferido na cabeça e na mão direita e sem bordão, logo me perguntou o que se tinha passado. De início escondi a verdade, dizendo que tinha caído na serra, mas a mulher tanto insistiu que acabei por lhe contar o sucedido e ela, cheia de compaixão, queria que me deixasse sangrar, mas eu não permiti e ela tratou-me com um banho de aguardente, segundo o costume daqueles povos para curar as feridas, que é, realmente, salutar. Pedi-lhe, contudo, que guardasse segredo.

Mas o caso teve ainda novo desenvolvimento, que bem revela a ajuda de Deus Todo-poderoso, que dá a mão e salva quem tenha caído no abismo. Acontece que a boa mulher, talvez por compaixão de mim, contou o segredo a outra mulher que tinha em casa, e que era sua nora, e esta revelou-o a seu marido, que era criado do Governador da vila e creio que ele, por sua vez, o contou a seu amo, chegando assim aos ouvidos do Governador, o qual, para avaliar o tipo de pessoa que eu era, ou por qualquer outra razão, deu ordem a quatro homens para que me prendessem. Estando eu a comer uns ovos, ordenaram-me que imediatamente e assim mesmo como estava, os acompanhasse a casa do Corregedor, que era o nome que davam ao Governador. Desconfiado de que já estavam a par do que acontecera, mas sem receio algum, peguei no pedaço do bordão e fui com eles à casa do Governador. Quando lá cheguei, encontrei várias pessoas e cavalheiros que não sei se eram da casa ou se estavam de visita e foi precisamente um deles, que falava bem italiano por ter vivido muito tempo em Nápoles e que era uma das pessoas principais desta vila, que muito me ajudou, como mais adiante vos explicarei.

Estando na presença do Governador, perguntou-me logo donde era eu e o que tinha acontecido, mas aconselhou a que contasse a verdade, caso contrário ficaria ali detido. Vendo eu que já se sabia o que realmente acontecera, sem me envergonhar do que fizera, contei detalhadamente o caso e mostrei o resto do bordão e as feridas que tinha na cabeça e na mão. E ele, que não queria acreditar no que ouvia, ia-me perguntando por sinais e mais sinais e pela roupa que o ladrão vestia e quando lhe respondi, ficaram todos muito surpresos, achando impossível que um salteador tão valente se tivesse deixado espancar por um peregrino com uma simples moca. E tornou a perguntar-me se eu levava alguma arma de fogo ou arma branca, enquanto outros duvidavam que eu estivesse só e sem companhia. Mas eu jurei pelo meu Cristo que apenas me defendi, lutando sozinho e disse-lhes que se achavam que estava a mentir, que me mandassem enforcar, que eu pouco me importaria. Ao dar as referências que tinha do ladrão, alguns logo disseram que era Fulano de tal e o próprio Governador adiantou que fizera bem em matá-lo e que até gostaria de me recompensar, porque se era quem eles pensavam, trazia aquela região aterrorizada. Mas que não era um salteador de estrada, apenas um chulo e violador de mulheres, embora originário de boa família, pelo que o bom Governador disse que tinha de me encarcerar até se poder fazer melhor diligência no dia seguinte. Interveio, então, a meu favor, o tal cavalheiro que falava italiano, dizendo que a minha vida estaria de facto em risco se os parentes do homem me descobrissem, mas sendo eu estrangeiro, não havia razão alguma para me manter na prisão, antes melhor seria que fosse tratado e ficasse em liberdade, até porque praticara um feito notável, que nunca o próprio Corregedor conseguira realizar. E argumentou com outras razões que convenceram os restantes a meu favor e de tal forma que todos intercederam junto do Governador para que me pusesse em liberdade, porque se o caso caísse no domínio público eu seria um homem morto.

O Governador ordenou, então, ao genro da estalajadeira que cuidasse de mim até ao dia seguinte e mandou-me acompanhar pela mesma escolta que me prendera e, ainda por cima, depois desta conferência, deram-me setenta e quatro grãos de esmola, na nossa moeda. Ao chegar à estalagem recomendaram-me à dona e ao seu genro, que era criado do Governador. Retomei a ceia e estive mais de uma hora à conversa com a gente da casa. Já estava com vontade de me deitar quando se ouviu chamar à porta, não na principal, por onde eu entrara, mas numa outra que dava para uma quelha. Assustei-me muito com o que poderia acontecer, até que a estalajadeira reconheceu a voz do cavalheiro que falava italiano e me tinha defendido, que entrou e, aproximando-se de mim, me abraçou efusivamente, dizendo – “querido amigo peregrino, amado filho, já percebeste que se não partires já, serás um homem morto, pois aquele homem morreu ou se não morreu, está nessa eminência, porque já se averiguou isso por uma amiga em cuja casa dormia diariamente e pelas diligências que se fizeram junto da família, não há notícias dele. Além disso, ele tem parentes maus, que não hesitarão em matar-te, até mesmo dentro da igreja. Por isso, rogo-te que te vás embora antes do amanhecer”. Ainda cheguei a pensar se não estaria a ser induzido a sair de noite, mas reconheci que as suas palavras eram sábias e justas e ele jurou sobre as chagas do meu crucifixo que o que me dizia era por caridade e não movido por influência diabólica, como cheguei a supor, pois não era homem de enganar os desventurados e muito menos os da nação napolitana, que ele tanto amava. No entanto, objectei com algumas dificuldades – a primeira, era que não podia partir durante a noite, porque não conhecia o caminho e a segunda, que nunca o poderia fazer depois de ter sido recomendado às pessoas da casa. Mas ele arranjou solução para as duas objecções, pois se a questão era o receio de viajar de noite, ele mandava um criado seu para me acompanhar até algum local seguro fora desta Província e quanto à recomendação feita àquela gente, ele tudo providenciaria, desde que eu me fosse embora. Ao ouvir isto e depois do juramento sobre o meu crucifixo, anuí e disse que queria ir embora, se é que podia fazê-lo. Chamou, então, a dona da casa e o genro, falou com eles em português, disponibilizando-se para os defender neste caso, se fosse necessário e pagou toda a despesa.

Assim, às quatro da manhã, saímos da estalagem pela porta de serviço, onde estava um criado do cavalheiro, que esperava por nós. Saímos da vila em silêncio e o cavalheiro deu ordem ao criado para me acompanhar até um lugar que lhe indicou. Beijou-me e abraçou-me do coração e pediu-me que rogasse a Deus por ele, que também ele pediria que eu tivesse uma boa viagem, e como se não bastasse, deu-me ainda um cruzado, que equivale a setenta e dois grãos nossos, para fazer um novo bordão, quando pela manhã chegasse a Viana.

Indo nós em viagem, cada galha me parecia a sombra de um homem, pelo que mandei o criado na dianteira, para maior sossego. E assim chegámos ao sítio combinado, a quasi oito milhas de distância, local mais seguro e já fora daquela província, a partir do qual o caminho para Viana era directo e sem qualquer perigo de me perder. O bom criado deu-me todas as indicações sobre o que deveria fazer e retornou a casa de seu amo e eu prossegui a viagem, mas alguns passos adiante, recolhi-me debaixo de uma árvore onde fiquei escondido até ao despertar da aurora.

Devereis reconhecer, senhores Leitores, a bondosa ajuda que recebi daquele servo de Deus, que não creio seja de carne humana, mas sim um espírito angélico ou alma do Purgatório, que me quis livrar de algum perigo que me pudesse suceder, benefício que para mim ainda é mais de louvar quando vem de uma pessoa estrangeira e que me era totalmente desconhecida.

Do que aconteceu depois que abandonei a estalagem ou sobre o homem que deixei na serra, nada posso dizer-vos, porque não sei como tudo terminou. O que deveis ter em conta é o grande sofrimento que padeci nessa noite, já que 18 de Dezembro era em pleno Inverno. Não fora só o esforço da jornada e do combate, mas não descansava há mais de vinte e quatro horas e mais morto que vivo estaria se não fosse a ajuda de Deus Omnipotente, que providenciou uma noite sossegada, tendo-me posto ao caminho com o despontar da alba. Eram cerca das quatro da tarde quando cheguei à vila de Viana, a doze milhas de Ponte de Lima, onde estive a pedir esmola todo o resto do dia e me foi bem concedida.

 

Depois desta aventura, Albani continuou a sua viagem para Lisboa. Voltou um ano mais tarde e tornou a passar em Ponte de Lima, mas desta vez foi muito mais contido na descrição:

 

No dia 23 [de Janeiro de 1745] prossegui a minha viagem e pela tarde cheguei à estalagem de Ponte de Lima, a cinco léguas de onde havia saído pela manhã [Barcelos], e aí fiquei muito comodamente. Pela manhã do dia 24 segui viagem e pelas dez horas da noite deixei o Reino de Portugal e entrei no Reino da Galiza, chegando já noite à cidade de Tui, a quatro léguas da estalagem do Lima [sic], onde passei a noite num alojamento não muito cuidado.

 

Outros relatos de Peregrinação existem, como existem também de viagens de carácter lúdico e cultural, tão ao gosto da mentalidade romântica do séc. XIX, alguns imortalizados com magníficas gravuras em edições inglesas de larga difusão. Ponte de Lima, mercê da sua posição estratégica na rede viária do Alto Minho, foi local de passagem quasi obrigatória para muitos peregrinos e viajantes, como se verifica nos registos documentais, na tradição da hospedagem e na memória da população. Por isso, não foi difícil recuperar, em pleno séc. XXI, o velho Caminho de Santiago, que estava adormecido há quasi duzentos anos.

 

Casa do Outeiro e Ponte de Lima, no Ano Santo Jacobeu de 2010

Nota
Os textos dos relatos incluídos neste artigo são traduções livres das versões publicadas em latim, espanhol e italiano.

 

Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 20, de Dezembro de 2010

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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