A romaria de Nossa Senhora da Boa Morte desenvolve-se à volta do santuário com o mesmo nome, um dos destinos da Ribeira Lima mais demandados pelos romeiros desde as primeiras décadas do século XVIII, situado na freguesia da Correlhã, a meia encosta da vertente norte do Monte da Nó, de onde se divisa uma bela panorâmica sobre o vale. Em baixo estendem-se o casario e a veiga, bem como o rio, cujo curso manso não se detecta mas se vislumbra. Ao fundo repousa o grande dorso da Serra d’Arga.
O santuário encerra, na sua cabeceira, uma das mais singulares e inesperadas obras de escultura e talha que nos foi dado observar. É um assombro, sobretudo para o visitante desprevenido, que ainda não sabe ao que vai, sem suspeitar sequer. De todo o conjunto, destaca-se o patamar superior, a que os fiéis e os curiosos acedem através de uns degraus estreitos, com a representação de Nossa Senhora morta e os Apóstolos velando o seu corpo, um espectáculo de alto dramatismo espelhado nos gestos largos e nas poses vincadamente teatrais e nas poderosas expressões fisionómicas daqueles discípulos de Jesus, imagens impressionantes que a qualquer momento parece que vão começar a falar e a andar, tal a sensação que dão de lhes ter sido insuflada a vida. “Parece um apóstolo da Boa Morte”, ainda hoje se diz por estas paragens quando se acerca alguém que se impõe pelo tamanho e figura assustadora.
Em torno da imagem da Senhora da Boa Morte e do espaço sagrado do santuário, que constituem o núcleo religioso e mais tradicional da romaria, gravitam todos os outros elementos da festa, do arraial. Também aqui o sagrado e o profano parecem andar de braço dado.
O recinto do arraial à volta do santuário forma uma espécie de terraço ou esplanada na encosta do monte, coberta por denso arvoredo, que lança sombra e calma sobre esse lugar bucólico. Este cenário muda subitamente nos dias da romaria, transformado pela aglomeração de gente que aqui se desloca para cumprir a devoção e fazer a festa. A agitação e o bulício depressa tomam conta do lugar.
A proliferação das cores nas armações e enfeites, o som dos metais e dos sopros reunidos nos coretos, a toada das concertinas, a vozearia dos que compram e vendem ou animadamente cavaqueiam, a gritaria dos altifalantes, a estridência dos foguetes, o pó que se levanta do chão, o calor que faz arder os corpos em suor, tudo acaba por funcionar como um poderoso estupefaciente que entontece os sentidos. Todos os anos em finais de Julho, no pico do Verão, entre a noite de sexta-feira e o pôr-do-sol de Domingo, esse lugar habitualmente pacífico e até de recolhimento é transportado para uma dimensão diferente.
Nesse palco em festa encontram-se diferentes gerações, gente da comunidade local e dos arredores, fregueses e forasteiros, que à volta do santuário vão conversando e desenrolando o fio da memória, matando saudades de outros tempos.
Aquele espírito da romaria de outrora, feito de promessa e cumprimento, nascido do contrato entre o romeiro e a personagem entronizada no altar, tem vindo a desaparecer paulatinamente, aqui como noutros lugares.
Muito mudou no ambiente e nas práticas das romarias. As longas marchas rumo ao santuário, quase peregrinações, atravessando por vezes montes e vales em horas de viagem, em filas que engrossavam durante o percurso, as voltas em redor do templo, tudo isto está cada vez mais arredado do nosso quotidiano.
Alguém enceta hoje uma longa caminhada ou subida ao santuário, se arrasta de joelhos à sua volta ou encena o ritual dos amortalhados? Estas manifestações mais espectaculares deram lugar a acções mais comedidas, como as dádivas de dinheiro ou outros bens a leiloar, que subsidiarão a organização da festa e do culto, a procissão, o sermão, a música, os foguetes, a iluminação. A romagem ao santuário da Boa Morte ocorria ao longo do ano, mas intensificava-se nos dias da romaria. Quem invocava a Senhora numa promessa, dirigia-se a partir de sua casa até ao templo no seio de um grupo quase sempre composto por nove romeiros (“ir em novenas”), rezando o terço e entoando as quadras, cânticos e hinos à Senhora da Boa Morte. Mesmo este cerimonial, cumprido ainda há pouco tempo, parece estar em vias de desaparecer.
O ambiente da festa é também diferente. Cantar e dançar já não são verbos que se conjugam com a mesma espontaneidade. A animação musical é assegurada pelas bandas nos coretos, pelas concertinas e por “orquestras”. Mais do que participar, assiste-se a um espectáculo.
A feira de gado, no sábado pela manhã, permanece como uma das principais sobrevivências da romaria enquanto espaço de trocas, de compra e venda. E é fácil distinguir os animais que aí comparecem mais para serem exibidos dos que aí vão para serem vendidos. Os primeiros, seguros da ligação de profundo afecto que os liga aos seus donos, descem calmamente pelas rampas dos veículos que os transportaram até ao chão do recinto em pose altiva e graciosa, como se prestes a desfilar num concurso de moda. Os segundos, profundamente desconfiados e medrosos, como que acompanhados por pessoas que não conhecem, são lançados para fora como quem enfrenta um abismo, num pânico súbito. Para tudo é preciso ter sorte, assim se expressa a sabedoria popular.
O Domingo é o dia fundamental da romaria, com a missa matinal, o sermão, e a procissão da parte da tarde. É também o dia grande das mordomas, que se mostram em trajo preto com bordados aplicados de missangas, lantejoulas e vidrilhos desenhando ornamentações florais, lenços de cabeça de cor variada e com todo o esplendor de ouro nos adornos. Comparecem no santuário para a missa, este ano de 2010 empunhando a vela votiva e o lenço de mão, dito dos namorados, integram a procissão e, após esta, brilham destacadas no desfile pela “avenida”, um ritual recente que promete adquirir foros de tradição e uma maneira de fazer justiça a um dos principais intervenientes da festa.
A “Majestosa Procissão” anunciada no Programa das Festas percorre todo o caminho que margina o recinto, passando por trás do santuário e ao fundo da escadaria. O sagrado projecta-se para fora do santuário numa manifestação solene, em que se percebem as devoções e os cultos mais difundidos no lugar. A fanfarra vai à frente a abrir caminho sobre a multidão que se comprime para ver passar a procissão. Depois desfilam os vários andores, ornamentados com rendas e tecidos de cetim, seda, damasco e veludo e com flores naturais de cores que jogam com as cores das indumentárias das imagens. O andor de São Tomé, o padroeiro da freguesia, abre o cortejo, seguindo-se os andores da Senhora da Conceição, do Senhor dos Passos, da Senhora de Fátima, do Senhor do Socorro e, por fim, o andor chamado da Senhora da Boa Morte. Dizemos chamado porque na realidade não é a imagem que dá nome à romaria e ao santuário que tem lugar de honra no andor. A “verdadeira” imagem da Senhora da Boa Morte, dado o seu peso e dificuldade em descê-la para a nave da igreja, permanece, como sempre ao longo do ano, na tribuna, junto dos Apóstolos. Mas como a necessidade aguça o engenho humano! Na impossibilidade de integrar a “verdadeira” imagem na procissão, deita-se no andor a imagem de Nossa Senhora no Calvário, venerada num outro altar do santuário, que passa a interpretar na procissão o papel de Senhora da Boa Morte. E que bem ela o faz! Afinal de contas trata-se da mesma Mãe de Jesus Cristo.
Os representantes da Comissão de Festas, mordomas e mordomos e outras entidades civis caminham a seguir, antes do Santíssimo, que vai sob o pálio, e de uma das bandas, que fecha o cortejo, juntando-se depois a massa dos fiéis. Em alternância com os diversos andores, surgem alguns confrades empunhando bandeiras e pendões, bem como grupos bem compostos de figurantes adultos e crianças, trajando ao modo bíblico, alguns ostentando dísticos com mensagens de fundo catequético.
Ao fim da tarde, antes do fogo-de-artifício que marca o encerramento da festa, juntam-se as duas bandas de música ao pé do santuário para uma despedida em apoteose, colhendo o aplauso ininterrupto da mordomia e de todos os que se concentram para assistir em forma de homenagem. Assim termina a romaria da Senhora da Boa Morte, um dos acontecimentos centrais na vida da freguesia da Correlhã, herdeira da antiga Villa Corneliana.
In: LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 19, de Outubro de 2010
Fotografias: Amândio de Sousa Vieira
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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