Algumas memórias de um jovem romeiro, por João Araújo Pimenta

 

Algumas memórias de um jovem romeiro, por João Araújo Pimenta



João Araújo Pimenta



Foi em meados dos anos quarenta do século passado que pela primeira vez vivenciamos a Romaria da Senhora da Boa Morte, realizada na freguesia da Correlhã, numa encosta do Monte da Nó. De tal experiência de jovem romeiro permaneceram-nos indeléveis na memória certas imagens então vividas, merecendo destaque o conjunto escultórico do esplendoroso retábulo do santuário e a ornamentação insólita do altar-mor, onde sobressaíam ramos de folhas de plantas tornadas incolores por cultivo em câmara escura pelas mordomas da festa. Também nos restam na gaveta da memória os sons da romaria: o da até então desconhecida música dos gaiteiros; o dos pregões dos aguadeiros; o das lamúrias da trupe de mendigos que, mostrando as chagas, povoava as margens do escadório do Santuário; e o dos altifalantes da cabine sonora da Casa Soucasaux de Barcelos, uma novidade que começava e veio alterar a harmonia sonora das romarias.

Para aquele ambiente festivo contribuíam as vendedeiras de tremoços, de rosários de alhos, de alfádega e manjerico; as bancas das doceiras com os baús e tabuleiros decorados com alva toalha de linho e recheados com as saborosas grades e roscas de gengibre, os passarinhos cobertos de açúcar e com pena de galinha colorida; e ainda as numerosas tendas de comes e bebes. Destas últimas, destacava-se uma que mostrava, encimando um carro com as pipas de verdasco e ramo de loureiro, um cartaz anunciando: “Vinho da quinta do Sr. Dr. Amândio Lisboa”, então um reputado “Grand Cru” do vinho verde da Correlhã. Espalhadas pelo parque podiam ver-se as bancas clandestinas da “vermelhinha” e de “certeza de pulso” prontas para lograr os incautos.

A Romaria encerrava com a queima do fogo de artifício, sendo da predileção dos jovens o fogo-preso no lago do parque, graças às cenas hilariantes provocadas pelas bichas-de-rabear na assistência feminina.

Mas de entre estes acontecimentos festivos, algo de estranho e tenebroso emergiu quando, ao fim da tarde, contemplávamos a procissão: o desfile no cortejo religioso de urnas abertas contendo pessoas vivas amortalhadas, adultos e crianças, carregadas por quatro pegadores – a “procissão dos caixões”, “dos mortos-vivos”. Esta prática, ocorrendo também na freguesia de Sá do nosso concelho, foi em boa hora banida e, parece, sem contestação. Na sua encantadora novela “O Pinto”, o saudoso Conde d’Aurora abordou este ritual, ocorrido supostamente em Sá, na Romaria do Senhor da Saúde, onde conta o caso de um maestro de banda de música se ter negado a tocar uma marcha fúnebre atrás de um penitente amortalhado dentro de um caixão. No resto do país, a mesma prática aconteceu na Procissão da Senhora Aparecida, na vila de Lousada até 1995, quando foi banida com alguma contestação dos penitentes. Chegando a ser usança na Península Ibérica, ao que parece desde o século XII, curiosamente, esta prática insólita ainda persiste, e com tolerância clerical, na vizinha Galiza, em Las Nieves, pequena aldeia situada na margem direita do rio Minho, frente a Monção. Aí ocorre anualmente, no dia 29 de julho, a Romaria de Santa Marta de Ribarteme, a qual, actualmente, se revela um acontecimento deveras singular e lamentável pelo facto de o fervor religioso se misturar com a curiosidade da horda de turistas. Estes filmam e fotografam esse martírio vivido num julho ardente, que até obriga alguns penitentes a usar óculos de sol e a agitar leques dentro dos caixões.

Para os amortalhados pagadores de promessa, tal sacrifício era interpretado como reconhecimento de um triunfo da vida sobre a morte com o apoio da Divindade. A promessa fazia-se quando chegava o momento em que sentiam a vida em perigo, quando verificavam estar “entre a cruz e a caldeirinha”, o consagrado dito popular para denominar as portas da morte. Amortalhado e parentes ou amigos que iam às pegas do caixão, habitualmente alugado ao armador local, prestavam-se a tal imane sacrifício como pagamento de promessa; era o agradecimento à Divindade pela preservação de uma vida ou satisfação de um pedido.

Nessas procissões, ao lado do fervor religioso juntava-se a avidez mercenária dos grupos de pegadores eventuais de caixões. Estes, à procura de uma remuneração acorriam aos locais onde elas se realizavam. Tal prática pode compreender-se admitindo que, nos meados dos anos quarenta do século passado, a comunidade sofria as problemáticas de uma guerra e pós-guerra, tais como o desemprego, o racionamento e a fome. Mesmo assim, os romeiros ainda continuavam a regressar das romarias, alguns com o grão na asa, outros com um registo na fita do chapéu, um ramo de alfádega na orelha ou um colar de alhos ao peito, além das promessas devotamente cumpridas.

Este nosso pequeno apontamento apenas pretende dar notícia de uma ocorrência de marcante interesse sociológico. Dada a escassez entre nós de estudos quer sociológicos, quer históricos neste campo, optámos por não incluir nesta pequena crónica seja notas de rodapé, seja bibliografia. Sirva o nosso trabalho de incentivo para futuros estudos sobre esta temática.

Publicado na revista “Correlhã em Festa”, n.º 17 | 2022

 

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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