Prof. Doutor Sérgio Guimarães de Sousa
Professor de Literatura e de Cinema da Universidade do Minho
Trabalha privilegiadamente com literatura do século XIX, embora não hesite circunstancialmente em fazer incursões tanto no passado (com Camões, Diogo Bernardes, Bocage ou ainda Sá de Miranda) como no presente (Tomaz de Figueiredo, Miguel Torga, e muitos mais). O que o fascina em Oitocentos?
Desde logo, como pessoas mais ou menos cultas, devemos ter memória; e um dos maiores desafios destes tempos pós-modernos é a erosão da memória. Ora, como dizia Primo Levi, nós temos “o dever da memória”. Sobre a História que estudamos, a experiência que vivemos, os relatos que nos contaram. Como enfatiza G. Steiner, a memória cultural é uma defesa vital contra a ameaça da amnésia e da barbárie, aos mais diversos níveis.
E eu sou natural de uma bela vila alto minhota (Ponte de Lima), que teve foral de D. Teresa antes de Portugal existir como nação independente! Ora, o passado deve fazer parte integrante e natural de nós próprios, não é? Deve ser amplamente conhecido, objeto de reflexão. Esse conhecimento faz parte da nossa identidade.
Como professor e investigador, qual o fascínio particular do séc. XIX?
De facto, o séc. XIX é um tempo desafiador e fascinante a vários níveis. Pessoalmente, realçaria duas ordens de razões para enfatizar a cultura de Oitocentos. Primeiro, porque no início dessa época ocorreu uma ruptura político-social profunda – o velho mundo do Antigo Regime entrou em colapso com as sucessivas revoluções que instauraram o Liberalismo um pouco por toda a Europa. Esses ventos liberais – excessivamente revolucionários, laicos e mesmo ostensivamente anticlericais, no entender de muitos – varreram a face da Europa de então, instaurando novos sistemas políticos e uma nova visão do mundo, de que em boa medida ainda hoje somos herdeiros. Claro que, ao contrário do Candide de Voltaire, não pensamos ter chegado hoje ao melhor dos mundos!
Neste contexto, formaram-se as sociedades modernas, assentes em novas bases e novos valores, da Liberdade e da Igualdade, tal como as conhecemos hoje, com virtudes e defeitos. E o ideário do séc. XIX não fica completo sem acompanhar a crise do sistema monárquico-constitucional e preparar o advento da República.
Para o bem e para o mal, podemos dizer, simplificadamente, que o Portugal contemporâneo é filho do Portugal de Oitocentos. Parafraseando Wiston Churchil, podemos acrescentar que a democracia contemporânea é o menos mau dos modelos de regime político-social. O famoso PM inglês dizia com o seu humor proverbial: “A democracia é o pior regime, exceptuando todos os outros”...
Referiu duas razões principais. Qual seria a outra?
Sim, a segunda grande razão para nos deixarmos atrair pelo séc. XIX é a sua inegável riqueza e variedade cultural e literária. No caso português, não por acaso muitos pensadores e historiadores (mesmo estrangeiros) consideram esta época a idade de ouro da literatura portuguesa.
Com efeito, desde a geração romântica e liberal de Almeida Garrett e Alexandre Herculano; à geração seguinte, com Júlio Dinis ou o grande Camilo Castelo Branco; passando à polémica e activa Geração de 70, com nomes tão relevantes como Antero de Quental, Eça de Queirós, Teófilo Braga, etc.; até aos conturbados tempos finisseculares, esteticamente tão ecléticos, em que sobressaem Cesário Verde, Camilo Pessanha, António Nobre, Eugénio de Castro, entre tantos outros.
Mesmo como limiano (e os limianos têm sempre um orgulho legítimo em quase nove séculos de História!), não posso esquecer figuras relevantes como, na transição entre o séc. XVIII e XIX, D. Miguel Pereira Forjaz, obreiro da luta contra Napoleão, secretário do complexo governo da Regência; ou D. Frei Francisco de S. Luís Saraiva, o culto reitor da Universidade de Coimbra, autor de uma bibliografia assinalável e futuro Cardeal Saraiva; ou, mais próximo de nós, já na transição para o séc. XX, António Feijó, poeta de dotes apreciáveis, quer como lírico, quer como espírito humorístico. Ora aí está um poeta cuja obra gostaria de reeditar, depois de ultimar o desejado projeto de uma Fotobiografia deste limiano cosmopolita.
Aliás, a obra colectiva Figuras Limianas (de 2008) – pequena enciclopédia coordenada por João Gomes d’Abreu, em que tive a honra de participar, ao lado de tantos especialistas de tão louvável proveniência, publicação que honraria qualquer universidade –, essa obra é bem elucidativa da riqueza de figuras limianas, nesta e em outras épocas da nossa História.
Isto é, não podemos ou não devemos ser alheios ao nosso passado, próximo ou remoto.
De facto, não é difícil concluir que Oitocentos representa uma parte nuclear do nosso cânone literário e cultural, isto é, um conjunto de autores e obras que a generalidade dos leitores deve conhecer e admirar. Dito de outro modo, não nos podemos conhecer, como nação, ignorando esta parcela nuclear do nosso passado recente.
Por tudo isto e muito mais, a leitura de autores, sobretudo Camilo e Eça, é um imperativo estético e cultural! Há um certo Portugal profundo que está plasmado nas páginas destes autores geniais e que se mantém inalterável. É como se eles tivessem captado as características mais profundas da nossa identidade colectiva. Nesse sentido, não somos cidadãos completos e culturalmente activos sem conhecer as obras destes autores.
É reconhecidamente um especialista na paródia. Qual a razão do seu interesse por este fenómeno? Será que a paródia, pelo excesso caricatural que a caracteriza, é um modo de enfatizar a realidade das coisas? De outro modo: é possível descortinar através do discurso parodístico o que nem sempre nos apercebemos a olho nu?
São muitas questões colocadas, a que tentarei responder de forma mais ou menos articulada e muito breve. Sou apenas um professor e investigador que, entre outros interesses principais de pesquisa, ao longo dos anos, escolheu a paródia como um dos temas de trabalho. E nesse sentido, dediquei ao assunto a minha tese de mestrado – publicada com o título de Teoria da Paródia Surrealista (de 1995, com prefácio do Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva) –, uma obra juvenil e hoje já esgotada.
E depois, ao longo dos anos, redigi uma série de artigos em volumes colectivos e revistas especializadas. Um dos meus sonhos era elaborar, até com uma equipa de especialistas (quem sabe?) uma história da paródia na literatura portuguesa.
Mas a paródia é assim tão relevante na nossa literatura?
Sabemos bem como cultura portuguesa é muito dada à repetição acrítica de certos lugares-comuns. Como o de afirmar que somos um país de poetas... Ora, aceita-se implicitamente que a grande literatura é a que está plasmada nos géneros literários mais “nobres” ou mais apreciados na hierarquia multissecular dos géneros, como a tragédia ou a epopeia, para além de géneros maiores do modo lírico.
Desde a teoria literária dos gregos – que tinham festivais de teatro onde se representavam tragédias, mas também comédias – que se distinguiu o “sério” e o “faceto”, marginalizando sempre o cómico face ao sério. Basta olhar para as nossas histórias literárias, como a portuguesa, e ver como certos géneros – desde as cantigas de escárnio e maldizer até à poesia satírica e parodística de tantos autores (de Tolentino e Bocage a O’Neill ou Vasco Graça Moura) – foram (e são ainda?) objeto de manifesta secundarização. E só muito recentemente se re-descobriu a qualidade desses e de outros autores, como também dos poetas barrocos, tão dados ao cómico e à paródia carnavalizadora.
O sistema literário também é permeável a várias influências ideológicas, culturais e até religiosas.
Exactamente. Tudo isto é também explicável, entre outras condicionantes, pela ideia de que esses géneros referidos são dotados de uma certa grandeza, heroísmo e gravidade (“gravitas”), que outros géneros ditos inferiores não possuem. Aliás, esta ideia preconceituosa em relação às manifestações do cómico não é alheia a uma certa visão que a cultura religiosa e teológica do catolicismo expressou sobre o mundo do cómico e do riso.
A este propósito, sirva de exemplo a famosa cena do romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, em que o austero Frei Jorge de Burgos debate com o franciscano Guilherme Baskerville (Sean Connery) sobre o lugar do riso na mundividência do homem cristão. Como sabemos, o cerne desta história tem justamente a ver com uma parte do influente livro da Poética de Aristóteles, justamente a parte consagrada ao cómico à paródia.
Aliás, a bela adaptação cinematográfica de Jean-Jacques Annaud preservou muito bem essa cena memorável, passada no scriptorium da abadia beneditina do final da Idade Média, perante a estupefação dos monges que assistiam à acesa disputa verbal.
Ao mesmo tempo, convém observar que, depois da revolução estética operada pelo Romantismo e depois pelos movimentos modernistas e de vanguarda novecentistas, estamos hoje bem longe de uma concepção tão esquemática e rígida do sistema literário.
E há que ter em contra a própria evolução dos estudos literários, ao longo dos séculos.
Isso mesmo. Depois dos estudos de influentes teorizadores literários (de M. Bakhtine e G. Genette até Linda Hutcheon ou Margaret Rose, para só dar alguns exemplos), a paródia é hoje concebida como um discurso complexo, que supera a tradicional visão retórica (imitação ridicularizadora); é uma forma de discurso exemplificativa do dinamismo do sistema literário, como já sustentaram os formalistas russos, numa constante tensão entre a tradição e a novidade; é um discurso que se estende ou atravessa vários géneros literários e formas artístico-culturais, sobretudo na arte e cultura dos séculos XX e XXI.
Hoje poderíamos dizer, numa linguagem muito coloquial e sem nenhum paradoxo: o riso e a paródia são uma coisa muito séria! Não dizia Aristóteles que “o riso é próprio do Homem”? Por outras palavras, é inerente ou específico da natureza humana; é por isso um sinal de inteligência crítica, de lucidez na visão das coisas e até mesmo de sensibilidade estética.
Por que razão os temas importantes só podem ser abordados numa perspectiva “séria”? Porque se convencionou que o “sério” é “elevado”; e tudo o que é cómico é “baixo”. Algumas das obras mais expressivas da literatura (e não só) exploram justamente várias dimensões do cómico – da ironia à sátira, do humor ao grotesco, do pastiche à paródia: desde as comédias dos clássicos gregos e latinos; passando por momentos altos do romance (de Cervantes a Stern); até chegar aos movimentos de vanguarda e ao actual pós-modernismo.
A nossa tradição literária portuguesa é dada particularmente à paródia?
Na sequência do que referi antes, este tipo de visão tradicional e apressada sobre o cómico e a paródia não resiste a uma análise histórica e crítica mais atenta. Num conhecido ensaio sobre a originalidade da literatura portuguesa, Jacinto do Prado Coelho observa que uma das fecundas constantes temáticas, ao longo dos séculos, é constituída pelo riso, pelo humor, pela sátira e pela paródia, como manifestações articuladas, mas distintas, do cómico literário e artístico. De Gil Vicente a Mário de Carvalho.
E não faltam exemplos de pesquisas mais ou menos aprofundadas, demonstrando a fecundidade desse filão temático da presença da sátira e da paródia na literatura portuguesa. Por exemplo, o alongado estudo de Carlos Nogueira, A Sátira na Poesia Portuguesa (de 2011), destacando a poesia de Nicolau Tolentino, Guerra Junqueiro e Alexandre O’Neill. Ou a obra coordenada por Carlos de Miguel Mora, colega da Univ. de Aveiro, Sátira, Paródia e Caricatura: da Antiguidade aos Nossos Dias (de 2003), entre tantos outros exemplos.
A paródia é omnipresente, atravessa os séculos.
Sim, e por isso dá-me um enorme prazer intelectual escrever sobre autores que cultivaram a paródia – desde o barroco seiscentista até Camilo, do surrealismo até Alexandre O’Neill e a José Saramago. A escrita desses e de tantos outros autores é agudamente crítica, lúdica e iconoclasta; e tantas vezes isso pode constituir uma forma de lucidez, de humanismo ou de utopia.
Quase poderíamos dizer que são autores que, avessos a todas as formas de estilização e de epigonismo, jogam com uma tradição literária, inventam novas formas, riem-se de si mesmos e dos excessos que nos caracterizam como povo e como cultura. E isso é inteligente, saudável e catártico. Um autor como António Lobo Antunes subverte certa visão imperial e colonial em As Naus, através da paródia subversiva de ideologias, de mitos e de estereótipos culturais e literários.
Fidelino de Figueiredo é um dos seus, como dizer?, maître à penser. Qual a relevância de Fidelino de Figueiredo para a crítica e a teoria literárias, como hoje a conhecemos e concebemos?
Fidelino de Figueiredo foi um grande intelectual do séc. XX – professor, investigador, ensaísta, etc. Teve um papel extremamente relevante e modernizador na evolução dos estudos literários na primeira metade do séc. XX, quer em Portugal, quer no Brasil. Neste segundo país, foi um pioneiro na implantação dos Estudos Portugueses quer na recém-criada Universidade de São Paulo, quer logo depois no Rio de Janeiro.
Dediquei meia dúzia de anos a estudar o decisivo contributo deste autor para a evolução dos estudos literários, herdados de um paradigma romântico-positivista, tendo como figura cimeira Teófilo Braga. Era um autor consciente da necessidade de modernização dos estudos literários (da crítica à teoria literária, da história literária à literatura comparada); e muito actualizado para o seu tempo. Correspondia-se com alguns dos maiores intelectuais da época, como Benedetto Croce, Paul van Tieghem, Miguel de Unamuno, entre tantos outros. Ensinou em prestigiadas universidades (de Madrid, do México, da Califórnia ou de São Paulo, onde deixou discípulos).
O resultado das minhas pesquisas foi um longo trabalho com algumas centenas de páginas, publicado em livro, Fidelino de Figueiredo e a Crítica da Teoria Literária Positivista, de 2007, com prefácio do meu ilustre orientador, Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva. Tudo isso implicou um prolongado trabalho, incluindo a biblioteca pessoal que Fidelino doou à Faculdade de Letras de Lisboa; ou uma estada de alguns meses na Univ. de São Paulo, no Brasil, onde existe sobretudo a epistolografia passiva do autor.
É recorrente falar-se em crise das Humanidades. Partilha esse sentimento ou, pelo contrário, presume que a crise de que tanto se fala pode mais não ser do que um sintoma que sempre tem acompanhado os estudos literários.
Ao encerrar um volume intitulado Literatura, Espaço, Cartografias (editado pela Univ. de Coimbra, de 2010, creio), Osvaldo Silvestre defende justamente esta ideia, ao pensar sobre “O lugar dos estudos literários”: a crise dos estudos literários (ou mesmo das humanidades) é uma velha questão. As teorias e os modelos científicos evoluem, são substituídos, pelo que, nesse sentido, sempre estiveram em crise. O problema é quando essa evolução implica reestruturações de áreas, de postos de trabalho e de lógicas de poder.
Isto é, todas as áreas de conhecimento estão em constante mutação, pelo que a metamorfose por que passam os estudos literários também pode ser vista como um sintoma de crescimento e de mudança de paradigma. Uma alternativa é enfatizar uma patológica e estéril retórica da crise... E nisso, nós portugueses, somos bastante afeitos – na formulação de lamentações desistentes, de um choradinho emocional e inútil, sem capacidade de acção ou de rasgos para combater a inércia.
Não deixa de ser um cenário desafiador para as universidades.
Consabidamente, a Universidade de hoje – mais em países como Portugal do que em outros – atravessa uma outra forma de crise, que não é senão uma das faces do diagnosticado anteriormente: é a chamada crise das Humanidades. O tema tem motivado reflexões, tomadas de posição e publicações de vária ordem. Mesmo no espaço da Comunidade Europeia. E tem implicações sérias ao nível da definição de uma política de ensino, a começar pelo desenho dos curricula dos vários níveis de ensino.
Participei na minha Faculdade e na Faculdade de Letras de Lisboa em colóquios sobre o tema; e ainda recentemente tive o prazer de publicar um ensaio sobre o assunto, num volume colectivo, editado em Inglaterra, pois o problema é global. Trata-se de uma obra intitulada “Rethinking the Humanities – Paths and Chalanges (Cambridge Scholars Publishing, 2012), com importantes reflexões de nomes tão relevantes como Paul Ricoeur, George Steiner, Marjorie Perloff, António Sousa Ribeiro, entre outros.
De facto, ao contrário do que muitas pessoas podem pensar, é um tema muito relevante e actual.
Evidentemente. Uma das minhas mais recentes leituras foi de Martha C. Nussbaum, da Univ. de Chicago, uma obra significativamente intitulada Not for Profit – Why Democracy Needs the Humanities (Princeton e Oxford, 2010). Arguta e claramente ela contraria uma educação norteada quer pelas exigências do mercado de emprego, quer por critérios de rentabilidade económica. A formação humanística não se pode medir pelo lucro produzido, já que é básica à educação de todo o cidadão. A cidadania democrática pode ficar hipotecada sem uma ampla educação humanística.
Caracterizando esta crise que alastra, mais silenciosa que a crise económico-financeira, em jeito de manifesto, esta autora contrapõe, com argumentos válidos, que uma educação que não valoriza a literatura e as artes, a filosofia e a história (as humanidades) não prepara devidamente os actuais cidadãos das democracias contemporâneas, abertas ao debate de ideias. O grande ensaísta Edward Said já tinha afirmado, de outro modo eloquente, o valor cultural, ético e cívico das humanidades e do humanismo.
Como perspetiva o triunfo irrestrito da tecnologia, nomeadamente no que concerne à literatura, que, como sabemos, é apenas uma narrativa entre outras, e isso num contexto fortemente pautado pelas narrativas audiovisuais, senão mesmo cibernéticas?
Mais uma pergunta a exigir um ensaio como resposta! Mas fazendo a ligação com o que disse antes, essa desejável educação humanística potencia a formação técnica, puramente científica ou profissional. Não deve existir fractura entre essas duas formas de conhecimento – uma cultura mais humanística e uma cultura mais técnica. Não são realidades inconciliáveis, antes pelo contrário. Pelo seu lado, penso que literatura tem capacidades de se adaptar a novos suportes e linguagens, típicos de uma sociedade em rede, dominadas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação.
É verdade que, ao mesmo tempo, o nosso tempo parece confinar as ideias de desenvolvimento, de modernidade e de sucesso ao domínio das ciências exactas ou das tecnologias. Mas essa visão é um logro; ou, pelo menos, o seu endeusamento é uma panaceia e uma demagogia barata.
A propósito de crise, como vê o atual estado das Universidades, asfixiadas do ponto de vista económico, sujeitas a restrições de vária ordem e com um saber, dir-se-ia, cada vez mais acantonado em paradigmas de eficiência e de objetivos medidos por resultados imediatos. Não estaremos perante A Universidade em Ruínas, para citar o conhecido título de Bill Readings?
De facto, trata-se de um tema complexo e da maior importância, que pode ser abordado a partir de múltiplas perspectivas. As Universidades actuais enfrentam problemas de diversa natureza: por um lado, a política de financiamento do Estado, quer para o ensino superior público, quer privado; por outro, a falta de alunos, mais numas áreas do que noutras, fruto de uma crise demográfica, mas também de bastante desinformação; e por último um certo descrédito sobre áreas de formação mais tradicional, face às novas tecnologias sobretudo.
No primeiro caso, sobretudo, é chocante assistir ao desinvestimento na área das Ciências Humanas, em favor das Ciências Exactas ou das Tecnologias. Levando ao extremo o divórcio das chamas “duas culturas”, vai-se aprofundando a ideia de uma modernidade míope, que vê uma aura de produtividade e de inovação em tudo o que respeita às ciências duras; em detrimento escandaloso ou com a marginalização dos projetos ou formação nas Humanidades, tidos como não produtivos e não adequados aos modernos critérios de produtividade e de eficiência. Aliás, assiste-se a uma colonização epistemológica das ciências humanas por parte de modelos de avaliação que lhe são inadequados e injustos.
E não há vozes críticas desse rumo?
Pelos vistos não basta que espíritos muito esclarecidos – como os professores e investigadores João Lobo Antunes ou António Damásio – chamem repetidamente a nossa atenção para a insensatez e o perigo de formações científicas demasiado especializadas, mas sem o lastro e a solidez que são conferidos por uma alargada formação humanística (em língua e em literatura, em filosofia e em história, etc.).
Voltando à sugestão da obra de Bill Readings, a universidade tal como a conhecemos atravessa um desafio considerável, sobretudo em tempos de crise económico-financeira. Ao adoptar uma filosofia empresarial, processos de certificação de qualidade e critérios de “excelência”. Tudo numa lógica política, numa retórica ineficaz e numa metodologia burocratizante, que ignora a especificidade da sua história, da sua natureza e da sua função. Não se pode colocar ao mesmo nível uma universidade que gera conhecimento e profissionais especializados, e uma empresa que produz baterias ou salsichas...
A actual universidade é bem diferente da que frequentaram os nossos professores.
Sem dúvida! Esta universidade de hoje, em mudança acelerada, exige dos professores competências muito diversificadas: além de docentes e de investigadores – tarefas tradicionais –, também somos coordenadores de cursos, autores de inúmeros relatórios, planificadores de sistemas de avaliação, gestores de projectos, organizadores de eventos académicos (conferências, congressos), editores de obras científicas (livros, revistas), angariadores de apoios financeiros, participantes em redes internacionais de conhecimento, etc. Não deixa de ser uma excelente preparação profissional, mesmo que decidamos mudar de profissão ou até emigrar!
Uma última pergunta, esta de caráter bem mais pessoal: qual é o seu livro de cabeceira?
Esta pergunta faz-me lembrar aquelas entrevistas a figuras mediáticas que têm logo a tentação de responder com obras mais ou menos sonantes, como um filósofo clássico ou contemporâneo; ou um escritor não menos afamado. Mas a coisa soa muitas vezes a falso, quer pelo teor das respostas, quer até pelos erros mais ou menos evidentes na simples informação dos títulos...
Essas são pessoas que repetem umas coisas de ouvido, conhecem livros pela lombada, ou nem isso sequer. São aquelas pessoas que falam de bica aberta, de tudo e de coisa nenhuma... São ignorantes figuras de papelão, sem espessura, vivendo para a aparência, tão obsessiva nos nossos tempos – para elas o que interessa é parecer, e não ser.
Com efeito, não tenho um livro de cabeceira no sentido estrito. Aliás, quase não leio na cama. Mas a pergunta visa saber livros de eleição, que nos acompanham em leituras de carácter afectivo – e aí a dificuldade aumenta: leio muitos autores por verdadeiro prazer – de Diogo Bernardes a Camilo, de Eça a António Feijó, de Vergílio Ferreira a Mário de Carvalho.
Quem ensina e investiga é sempre um leitor profissional...
Claro. Quem se dedica ao ensino e à investigação, nem sempre consegue traçar uma fronteira entre as leituras do coração (ou devoção), e as leituras de obrigação. O ideal mesmo é que todas sejam feitas com uma ponta de paixão e muito profissionalismo. Alguém dizia que “ler um livro é pedir os olhos emprestados para ler o mundo”. Assim é, esse é um dos prazeres e proveitos da leitura – ler melhor o mundo que nos rodeia.
Por outro lado, no mundo universitário, é muito frequente fazermos várias leituras ao mesmo tempo, no mesmo dia ou semana: para aulas ou cursos que estamos a preparar; para estudos que estamos a escrever; para escrever comunicações ou conferências; para teses de mestrado ou doutoramento que estamos a orientar. A leitura é tarefa de todos os dias, absolutamente essencial.
É o dia-a-dia de um professor que ensina, investiga, publica...
Sim. Só para dar um exemplo bem quotidiano, das mais recentes leituras das últimas três ou quatro semanas. Reli alguns romances de Camilo, para um ensaio que vou escrever, integrado num livro organizado com um colega da Universidade do Minho, que reunirá investigadores de vários países sobre este grande clássico da nossa língua e literatura. Como reli O Lima de Diogo Bernardes, para redigir um ensaio para o volume colectivo que coordeno com colegas das Universidades Católica, de Coimbra e dos Açores.
Acabei também de ler um pequeno livro inédito de Couto Viana, para elaborar o texto da “Página Literária” da revista Limiana (Lisboa), com a qual colaboro regularmente – uma publicação que vive destas colaborações graciosas, mas também do oportuno apoio da nossa Câmara Municipal de P. Lima.
Ao mesmo tempo, li um longo volume coletivo, de homenagem a um grande professor falecido estes dias (Stephen Reckert), catedrático do King’s College da Univ. de Londres, para redigir um texto para a revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian. E, como se não chegasse, estou a ler mais uma tese (deve ser a sexta ou sétima em um mês e pouco), uma tese de doutoramento sobre Eça de Queirós, com algumas centenas de páginas, que vou arguir na próxima semana na Univ. de Salamanca.
Publicada na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 31, de Fevereiro de 2013
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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