Senhor do Socorro, na Freguesia da Labruja

 

Senhor do Socorro, na Freguesia da Labruja



José Velho Dantas



A Romaria do Senhor do Socorro tem o seu palco à volta do santuário do mesmo nome, o monumento mais notável na freguesia da Labruja, da qual constitui quase um emblema, aí levantado nos últimos decénios do século XVIII, no lugar onde antes existira uma ermida dedicada ao Papa São Gregório Magno, figura cimeira da história da Igreja, ainda evocada na fachada e no tecto do actual templo. Fica este encostado a um monte, próximo de vias antiquíssimas traçadas por romanos e também seguidas desde a Idade Média pelos peregrinos que demandavam o túmulo do Apóstolo São Tiago em Compostela.

Ocorrendo logo nos primórdios de Julho, centrada no primeiro domingo desse mês, a Romaria do Senhor do Socorro forma como que um pórtico de entrada no desfile global das mais importantes romarias do Alto Minho. O enquadramento paisagístico é dos mais impressionantes da região, ainda que o bulício e os enfeites dos dias da festa toldem um pouco a clareza e nitidez da visão que é só possível em dias mais mansos. Os arcos ornamentais desdobram-se até ao terreiro e na fachada, sobre a varanda, figuram as bandeiras da Labruja, de Portugal e do Brasil, como que a marcar a longa tradição de idas e voltas, o cruzar constante do Oceano Atlântico por parte de tantos e tantos homens e mulheres naturais desta freguesia de Ponte de Lima, que, na esteira dos navegadores capitaneados por Pedro Álvares Cabral, rumaram e continuam a rumar para a então baptizada Terra de Vera Cruz. A ligação à terra natal mantém-se todavia firme e o regresso para os dias da romaria, muitas vezes até para cumprir como juiz, é um ritual que persiste nos dias de hoje.

Quem pela primeira vez sobe a estrada, hoje alcatroada, e desfaz a última curva, fica deslumbrado com aquela cenográfica fachada de duas torres antecedida por escadaria e terreiro. É uma revelação! Aproximando-se ainda mais, o romeiro vai notar que dois anjos com trombetas o convidam a entrar para observar e exultar com a Obra do Senhor. É claro, no pensamento de todos os que aí se dirigem no primeiro fim-de-semana de Julho, que o convite significa também exultar com a festa que se desenrola à volta do santuário.

E que grandes pergaminhos tem esta romaria! O autor do Minho Pitoresco, José Augusto Vieira, escrevendo ainda em finais do século XIX (1886), asseverava ser a maior do termo de Ponte de Lima (na altura, as Feiras Novas ainda não estavam guindadas a tão alta projecção, como hoje sucede), com a duração de três dias, destacando o extenso formigueiro de gente que cobria o recinto, as cenas de pancadaria, condição sine qua non de uma romaria bem cumprida, e igualmente o fogo-de-artifício.

As rixas no recinto da festa, que não poucas vezes funcionavam como ajustes de contas antigas, reflexos de querelas e confusões nunca verdadeiramente sanadas, chegavam a assumir consequências trágicas para os envolvidos. O Conde d’Aurora, no seu artigo “Um Santuário Inacabado e Desconhecido da Ribeira Lima”, publicado em 1965, lembrava ainda um infeliz caso ocorrido em 1910, que tinha deixado sequelas na própria organização da romaria e cuja memória ainda perdurava.

O espectáculo de pirotecnia chegava a emular, em certos anos, o das festas da Senhora da Agonia. O poeta António Feijó, numa composição inserta nas Novas Bailatas, refere como ele era até propício ao despertar do sentimento amoroso: Desde o fogo do Socorro/Em que eu te vi/Não tenho descanso: morro/Morro por ti!

Mas estas últimas manifestações, bem profanas, a que sempre se juntam a música e a dança, o rufar dos bombos, a feira do gado, não podem ocultar a grande razão de ser da fortuna inicial da romaria, e que ainda se vai mantendo, porém de forma mais esbatida: a arreigada devoção ao Senhor do Socorro, a crença no poder de Deus Crucificado. Alguns ex-votos pintados, objectos comoventes, estão ainda lá a prová-lo, pendurados nas paredes da nave do santuário. Testemunham, até hoje, os “milagres que fez” o Nosso Senhor do Socorro. Que o digam João Luís Fiúza, ou uma neta de Manuel Fernandes, da freguesia de Carreço, ou Hitodora de Aguiar Mourão, da vila de Viana, ou todos aqueles que se encontravam dentro do Santuário à hora da missa no dia 23 de Março de 1828 e escaparam ilesos à investida de um raio que abriu caminho por uma das torres.

A manhã de sábado é marcada por uma curiosa cerimónia. Depois da missa que inclui um sermão em honra de São Bento e de Santo António, duas das figuras tutelares do santuário, sai uma pequena mas muito simbólica procissão para abençoar os animais. Ao som dos bombos, o andor de Santo António, precedendo o pálio e o séquito processional que se vai incorporando, dirige-se ao terreiro situado por cima da Fonte de Abel, onde o gado aguarda, debaixo dos carvalhos e das tílias, protegendo-se do sol inclemente. À sua frente é pousado o andor do santo milagreiro protector dos animais. Enquanto os bois e os cavalos, todos eles animais de formoso aspecto, vão lançando ao vento os seus típicos ruídos, o pregador lembra, muito a propósito, aquela velha história bíblica narrada no livro do Génesis, em que o velho e cego Isaac, enganado pelas artimanhas da sua mulher Rebeca (um exemplo a não imitar pelas mães de hoje), dá a sua bênção ao filho Jacob e não ao filho Esaú. Uma boa maneira, certamente, que o homem do púlpito encontrou para sublinhar a importância do gesto de abençoar, que se seguiu, hoje tão caído em desuso.

O domingo é o dia chave, até pela sua acentuada componente religiosa. De manhã celebra-se uma missa cantada, que inclui um sermão em honra do Senhor do Socorro, e a meio da tarde sai a “Majestosa Procissão”. No interior da igreja estão aparelhados, desde há dias, vários andores em forma de campanário, com armação recoberta por tecido branco, pontilhada por flores, fitas e terços, tudo elementos decorativos que acabam por emprestar a cor aos andores. No interior de cada um surge uma cruz processional ou um crucifixo, quase todos eles remetendo para o celebrado Senhor do Socorro, ou então uma escultura em vulto representando a Nossa Senhora de Fátima ou Santo António. Este ano o andor do santo português foi o último a ser preparado, por constituir o único integralmente adornado com vivas e garridas flores naturais. Ao saírem do santuário, os andores vão-se misturando, segundo um alinhamento previamente estabelecido, com os figurantes de toda a sorte: personagens em trajes bíblicos, damas e anjos, com tarjas relativas às bem-aventuranças e aos frutos do Espírito Santo. Entrecortadas com os andores e os figurantes, vão as bandeiras das confrarias que animam a vida religiosa na freguesia da Labruja, instaladas seja no santuário (Senhor do Socorro, Santo António), seja na igreja paroquial (Sagrado Coração de Jesus, Almas, Senhora da Conceição, Senhora da Cabeça, Senhora das Dores, Santíssimo Sacramento e São Cristóvão, o padroeiro), ou em diversas pequenas capelas que polvilham aquele território (Santa Cristina, São João da Groba).

Terminada a procissão, é a vez da fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Ponte de Lima puxar pelos seus galões em movimentadas voltas ao santuário, com parada junto ao adro. As bandas de música, que fechavam o cortejo, regressam aos coretos para alternadamente darem mais vida à festa até ao fim da tarde, a hora da despedida, já o sol se vai escondendo por trás da serra.

In: LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 24, de Outubro de 2011

 

Fotografias: Amândio de Sousa Vieira

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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