Ler e viajar com os escritores é uma forma superior de inteligência e de cultura
Explorando a relação entre a terra e o homem, a representação artística da paisagem é uma experiência estética complexa e uma forma de lermos o mundo que nos rodeia. Sabemos bem como a leitura literária constitui assim uma forma ímpar de viagem, de deambulação múltipla pelo espaço e pelo tempo, mas também por outras formas de introspeção e de reflexão. E também sabemos haver paisagens que, mercê de certas características singulares, têm despertado de forma muito mais frequente a inspiração e a referência dos escritores.
Esse é o caso exemplar da geografia da Ribeira Lima, no Alto Minho – berço, jardim e Campos Elísios de Portugal, na pena de vários autores –, tendo Ponte de Lima como epicentro. São tão abundantes e expressivas, ao longo dos séculos, as descrições ou evocações desta paisagem deleitosa e memorável, que era possível elaborar um interessantíssimo livro antológico com tais textos, desde os longínquos cancioneiros e crónicas medievais até aos autores contemporâneos – Viajar pela Ribeira Lima com escritores portugueses. E os autores recolhidos e brevemente apresentados nestas “viagens na nossa terra” podem ou não ter nascido nesta região, sendo até muito atraente ver como os naturais da Ribeira Lima ou escritores de outras partes do país falaram, de modo igualmente entusiasmado, do mágico sortilégio desta paisagem.
Um século antes de Ruben A. e sua obra surrealizante, tão entranhadamente minhota, A Torre de Barbela, já outro grande clássico da língua e da literatura portuguesas, Ramalho Ortigão (1836-1915), num dos volumes de As Farpas – publicadas a partir de 1871 – pintou a traços largos, mas não menos expressivos, algumas das cores da Ribeira Lima. Ou seja, a par de muitos outros escritores, também a “Ramalhal figura” (na expressão de Fradique Mendes) não conseguiu ficar indiferente às belezas da Ribeira Lima.
Por isso, não nos surpreende a primeira e sentida impressão do quadro de “vida provincial” da região de “Entre Minho e Douro”, iniciando-se com o panegírico categórico da paisagem da Ribeira Lima: “(...) quem não foi e não veio, pela direita e pela esquerda da ribeira, de Viana a Ponte do Lima e de Ponte do Lima a Viana; quem durante alguns dias não viveu e não passeou nesta ridente e amorável região privilegiada das éclogas e das pastorais, não conhece de Portugal a porção de céu e de solo mais vibrantemente viva e alegre, mais luminosa e mais cantante”.
O sedutor e verdejante encanto das margens do Lima é mais realçado em certas épocas, como a das colheitas, pois reforçam o sentimento de “apoteose bucólica” e de “idílio rural” que perpassa esta paisagem amena (locus amoenus). Isso mesmo é confirmado por atentos viajantes; e pelo "magnetismo nostálgico" do emigrante de longa distância, como “o brasileiro”, que não descansa enquanto não regressa à sua querida Ribeira Lima.
Invocando Guerra Junqueiro, depois de este ter retratado os abades da região minhota, Ramalho cita o testemunho do amigo: “Tinha razão ao dizer-me que esta é a terra da promissão para os artistas e para os abades: a paisagem do Lima deslumbra e engorda.” A indisfarçável ironia não diminui o sentido louvor à paisagem limiana. Afinal, como ficar indiferente – até na hora da morte - à atração exercida pelo “espelho azul e tranquilo da água do Lima”, à sombra da toada bucólica de um Diogo Bernardes?
No percurso que se estende de Viana a Ponte de Lima, Ramalho Ortigão salienta vários aspectos do património (histórico, arquitectónico, imaterial e humano), com destaque para o perfil da mulher minhota. A mulher da Ribeira Lima sobressai pela sua beleza, mas também pela singularidade dos seus trajes: “a mulher do campo de Viana é a mais bonita de Portugal simplesmente pela razão de que é, entre as mulheres portuguesas, a mais bem educada”. Mas esta mulher tem ainda uma importante função formativa, através do desenvolvimento de várias aptidões femininas: “Das ocupações habituais da mulher das margens do Lima procede a cultura das qualidades que a educação mais deve desenvolver no espírito e no carácter da mulher”.
Talvez o impressionado cronista partilhasse da visão de Oliveira Martins sobre a mesma mulher minhota, quando o autor de Portugal Contemporâneo salientou o seu grande sentido prático na gestão das coisas correntes, observando: “(...) é uma companheira e associada em que o espírito prático domina sobre a moleza constitucional do homem desprovido de uma inteligência viva”.
A Ramalho Ortigão, merecem ainda referência especial os “antigos solares” que enriquecem a paisagem com o selo da História; a realização dos mercados e o colorido dos trajes das vendedoras; os trabalhos agrícolas das aldeias minhotas; a variedade e a riqueza das lendas e das tradições populares, como a ceia de Natal; e, não menos importante, a breve história da “ponte que deu o nome à vila [é] um dos mais antigos monumentos do seu género em Portugal”.
Como sugerido, a geografia literária contém uma riqueza e um potencial verdadeiramente importantes: como forma de conhecimento estético-literário de um escritor; como meio relevante para solidificar a identidade cultural de uma região; e ainda como elemento potenciador do turismo e das actividades económicas a ele directamente ligadas. Por tudo isto, ler e viajar com os escritores é uma forma superior de inteligência e de cultura.
Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 35, de Dezembro de 2013
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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