“Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural (…) tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum”.
Art. 78.º da Constituição da República Portuguesa
Resenha histórica
Durante a Idade Média “a documentação podia ser guardada em armários, gavetões ou “caixões”, sacos, caixas, esquinios ou scrinia ou, ainda, noutros invólucros e mobiliários (…) mas era a arca o móvel por excelência para arrumação documental, quer em grandes instituições, quer entre particulares” (1).
Em Ponte de Lima data de 1380 a primeira referência à casa do concelho (2), fiel depositária da memória, pois nela se guarda a arca que contém toda a documentação emitida e recebida pela vereação e homens bons da vila de Ponte (3).
Conscientes da importância dos documentos e da integridade do arquivo, para a história e vivência do concelho, este assunto foi por diversas vezes abordado nas reuniões de vereação, sendo exemplo disso a acta de 10 de Abril de 1723 onde é referido que “…por aver queixa que faltavão papeis no cartorio do escrivão desta camera mandarão que eu escrivão com hum tabalião do publico fisesemos inventa de todos os papeis pertensentes ao cartorio do escrivão no termo de tres dias com penna de suspensam e fose notificado o antesesor deste oficio pêra que no mesmo termo de entrega de todos os papeis e livros pertensentes ao dito cartório e asinara termo de que não tem mãos algum em seu poder” (4) e em 11 de Fevereiro de 1758 “…se mandou ao Procurador do Concelho mandasse vir huma carta de excomunhão para toda a pessoa que tiver ou souber quem tenha livros, papeis e outros quaisquer trastes pertencentes a caza da camera o ristitua ou noticie quem os tem” (5).
Não obstante isso, em 1853, Miguel Roque dos Reys Lemos, exímio paleógrafo e investigador, que estudou os livros, pergaminhos e outros documentos do arquivo municipal refere o seguinte: “O Archivo Municipal de Ponte de Lima está mutilado e truncado em seus livros e documentos de toda a ordem. Houve presidentes da câmara, vereadores e secretários, que por má ou boa fé, levaram do cartorio para suas casas muitos livros, alguns dos quaes param em Vianna há dezenas de annos; e houve habilidosos que roubaram opportunamente os melhores documentos que hoje passam como propriedade particular (…) Enoja o prosseguir na apreciação” (6).
Em 1979, “o então presidente da Câmara de Ponte de Lima, Dr. João Abreu Lima, alertado pelo risco que corria o arquivo histórico do Município, que jazia no desvão assotado do velho edifício dos serviços, resolveu tomar medidas urgentes para evitar uma catástrofe” (7), solicitou a José Rosa de Araújo, experiente monografista e historiógrafo vianense, “que provisse a transferência dos documentos para a Torre da Cadeia (…) Para isso se fariam pequenas obras de adaptação nos dois pisos superiores da Torre e, com tempo, se julgaria a oportunidade de instalação definitiva” (8).
Em 24 de Dezembro de 1986 prestaram-lhe homenagem pelo “…reconhecimento do elevado contributo que o homenageado tem dado à organização do Arquivo Municipal e à cultura do município” (9). Em 2006 por ocasião do centenário do seu nascimento foi-lhe prestada nova homenagem pelo Município de Ponte de Lima.
Em 1985 é elaborado um estudo-prévio para reinstalar o Arquivo e Biblioteca do concelho de Ponte de Lima em condições de poderem albergar condignamente o património documental e proporcionar um espaço em que a população interessada lhe pudesse aceder. São apontados três edifícios suscetíveis de poder albergar o projeto desejado: a Torre da Cadeia Velha, um edifício do séc. XVI/XVII conhecido por “cadeia das mulheres” e um outro edifício do séc. XVII, antigas instalações da GNR, sito no gaveto das Ruas da Matriz e Cardeal Saraiva (10). Em 17 de Março de 1989 é aberto concurso público para a construção da Biblioteca e Arquivo Públicos de Ponte de Lima, tendo ficado concluídos os trabalhos de construção civil em 9 de Fevereiro de 1993.
Em 1994, inserido no Programa de Inventariação dos Bens Culturais Móveis, é efetuado pelo Arquivo Distrital de Viana do Castelo um relatório diagnóstico da situação do Arquivo Municipal de Ponte de Lima no que diz respeito a instalações, equipamentos, grau de organização e acervo documental, com o intuito de dar a conhecer o seu património cultural arquivístico. Encontrava-se então o arquivo disperso por três depósitos localizados em diferentes edifícios da vila – na Torre da Cadeia Velha, na “morgue” do Paço do Marquês e num edifício do Fundo de Fomento de Habitação.
A Torre da Cadeia Velha, onde se encontrava instalada a maior parte do arquivo definitivo do município, juntamente com edições recentes da câmara, jornais e outras espécies bibliográficas, não reunia as condições mínimas exigidas para a preservação e conservação dos documentos. Pois, quem aí acedia para consultar a documentação era constrangido “a manter a porta aberta, dando, assim, causa a alterações do ambiente, sempre prejudiciais à conservação dos documentos” (11). Por outro lado, devido à falta de isolamento térmico e higrométrico, a documentação estava sujeita a amplas e constantes variações de temperatura e humidade. Quanto à luminosidade, foi registado o inconveniente da janela e da “clarabóia se encontrarem totalmente desprovidas de protecção, filtros ou simples cortinas opacas que resguardem os documentos dos efeitos provocados pelo excesso de luz” (12).
No depósito do edifício do Fundo de Fomento de Habitação, foi instalado o arquivo intermédio da Câmara, mas aí encontravam-se igualmente documentos que integram o arquivo definitivo. Segundo a descrição patente no relatório “este compartimento encontrava-se na mais completa confusão, pois além de depósito de arquivo, serve de armazém de materiais eléctricos e de construção. A falta de limpeza chama de imediato a atenção, encontrando-se os livros cobertos de poeira e excremento de animais que por sua vez ali se refugiam. Há vidros partidos nas janelas de uma das paredes e o próprio caminho que dá acesso ao depósito está coberto de lixo” (13). Esta situação caótica manteve-se até à transferência da documentação para o novo edifício, em 2004.
Relativamente a este depósito e ao depósito conhecido por “morgue”, é novamente realçada a falta de condições propícias à conservação e preservação dos documentos.
O Arquivo no século XXI
No âmbito do Programa de Apoio à Rede de Arquivos Municipais (PARAM), do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, obteve a Câmara Municipal de Ponte de Lima apoio financeiro para a criação do seu Arquivo Municipal, cuja inauguração ocorreu no dia 4 de Março de 2004 – Dia de Ponte de Lima (879 anos do Foral de D. Teresa).
A adaptação da denominada Casa do Calvário a Arquivo Municipal possibilitou reunir em edifício próprio toda a documentação que até então se encontrava dispersa, permitindo assim dar resposta à preocupação da edilidade de salvaguardar o património arquivístico existente no concelho e garantir o direito de acesso ao arquivo e registos administrativos que nos termos da lei compete assegurar.
O Arquivo, cuja área total é de cerca de 1.113 m2, é composto por: receção, sala de leitura com capacidade para 11 lugares e uma biblioteca de apoio à investigação, 3 gabinetes técnicos, sala de reuniões, sala de quarentena, sala de limpeza e higienização, laboratório de conservação e restauro, casa forte, 1 depósito para microfilmes e mais 8 depósitos com capacidade para cerca de 2.000 metros lineares de documentação.
Desde então o Arquivo Municipal, com o intuito de divulgar o património documental arquivístico e de promover o estudo e o conhecimento sobre a história local, tem desenvolvido diversas atividades, no âmbito da sua extensão cultural, tais como exposições e conferências, destacando-se a iniciativa “Serão de História Local” cuja compilação dos textos apresentados pelos conceituados oradores resultou na publicação do livro “Ponte de Lima: Estudos de História Local”.
No âmbito do serviço educativo realizam-se visitas de estudo onde, após uma visita ao edifício, que pretende dar a conhecer as funções e atribuições do Arquivo Municipal e dos profissionais ao seu serviço, os alunos têm oportunidade de participar em atividades lúdicas e pedagógicas cujas temáticas versam impreterivelmente sobre a história local e nacional.
Divulgação, valorização da memória coletiva
Sendo este, seguramente, um dos mais ricos arquivos locais do país, foi submetida, em 2005, uma candidatura ao Programa Operacional de Cultura (POC), com o objetivo de promover e divulgar o património arquivístico, salvaguardando e conservando os documentos originais.
No âmbito deste projeto foi digitalizada uma parte significativa do espólio documental que constituí o arquivo definitivo – tal como os forais manuelinos de Ponte de Lima (1511) de Souto de Rebordões (1514) e de São Martinho da Gandra e de Beiral do Lima (1515), as coleções de pergaminhos e de cartas régias, os livros de atas da Câmara Municipal de Ponte de Lima desde 1567 e os livros de testamentos.
Este projeto, pioneiro a nível distrital na disponibilização online de documentos em suporte digital, teve como principais objetivos: ampliar o conhecimento do património arquivístico à guarda do Arquivo Municipal de Ponte de Lima alargando a outros públicos; facilitar o acesso a informações relativas às coleções e séries documentais tratadas e digitalizadas; conservar e preservar, a longo prazo, em boas condições físicas, toda a documentação do Arquivo Municipal de Ponte de Lima, evitando os prejuízos causados pelo seu manuseamento; fomentar o apoio à investigação científica e académica; sensibilizar a população em geral e mais concretamente os mais jovens para a conservação do património documental, que constitui a herança cultural e/ou a memória coletiva, através da promoção de visitas de estudo ao Arquivo Municipal.
Por outro lado, para além dos inúmeros arquivos públicos e privados, o Arquivo Municipal tem vindo a digitalizar e a disponibilizar, através do seu catálogo online, o acesso à imprensa local (desde 1865) em texto integral.
Além disso, e como complemento à investigação, foi criada uma coleção digital de produção intelectual sobre Ponte de Lima, igualmente disponível a partir do website do Arquivo Municipal. Essa coleção digital, por tem a pretensão de reunir e difundir os inúmeros artigos publicados em revistas científicas – papers de conferências, relatórios, teses e dissertações, etc. – sobre o concelho de Ponte de Lima, em particular, e/ou sobre o Alto Minho, em geral, que se encontram alojados em diversos repositórios digitais de produção científica e/ou em revistas que se encontram acessíveis em formato digital e em livre acesso (Open Access). Assume-se, desta forma, como mais uma ferramenta de apoio à investigação sobre qualquer área temática, referente ao concelho de Ponte de Lima, desde os tempos mais remotos à contemporaneidade.
Esta iniciativa espera poder contar com uma participação ativa de todos aqueles que publicam artigos sobre o concelho de Ponte de Lima ou sobre a região, através do envio do(s) mesmo(s) de modo a poder constar dessa coleção, contribuindo ativamente para um enriquecimento e aprofundamento do conhecimento sobre a história, a económica, a sociedade, a cultura, a política, a geografia, a fauna e a flora naturais, as personalidades, etc., de Ponte de Lima. Pois, tal como é referido por Jorge Alarcão “para correctamente integrar a história regional ou do Pais, para poder identificar os estilos artísticos, descrever e interpretar usos, costumes e crenças, tecnologias e artesanatos, para poder conhecer os valores paisagísticos, necessita de conhecer a história da arte, da etnografia, as ciências da terra e da natureza” (14).
Em suma, pretende-se que o website, aliado ao fundo bibliográfico local (15), se constitua como um importante serviço na disponibilização de recursos informativos sobre a história local, contribuindo para a afirmação da cultura e da identidade local enquanto fatores de integração, competitividade e desenvolvimento, pois “o homem só se desinteressa das suas coisas quando lhes ignora o valor” (16).
Dinamização cultural: formar e educar para a cidadania
Não esquecendo a necessidade de manter um equilíbrio, entre o binómio função administrativa e função cultural, que confere aos arquivos municipais a dimensão de “graneros de la historia y arsenales de la administración” (17), o facto é que devem assumir-se, cada vez mais, “… não apenas como um organismo fechado dentro do espaço mofento onde se conservam largos metros lineares de estantes repletas de maços, pastas e livros de outras eras e diversas origens, mas antes um organismo público aberto e dinâmico a quem se deve naturalmente exigir uma intervenção decisiva no campo da Animação e Extensão Culturais” (18).
Neste sentido, faz parte das competências do Arquivo Municipal de Ponte de Lima, entre outros aspetos não menos importantes, a promoção de uma ação cultural concertada para a divulgação e difusão da informação à sua guarda, tanto a nível nacional como internacional que, conforme mencionado, tem vindo a ser colocada em prática através da disponibilização online de conteúdos culturais e da organização de atividades culturais e educativas.
Essas atividades, que pretendem criar uma maior aproximação à comunidade onde se insere e ao público em geral através da realização de workshops, conferências, palestras, exposições físicas e virtuais e visitas guiadas, têm o intuito de divulgar o património documental/informacional e a memória coletiva e de potenciar a valorização e a preservação da identidade cultural, enquanto fator de integração, competitividade e desenvolvimento.
Posto isto, corroboramos do princípio defendido por Francisco Ribeiro da Silva que considera que os “Arquivos Municipais são indispensável para a construção da história nacional visto que a história local tem aberto novos caminhos, novas vias e novos temas de pesquisa que têm feito avançar e progredir o conhecimento histórico” (19).
Notas:
1) GOMES, Saul António – In limine conscriptionis. Documentos, chancelaria e cultura no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (Séculos XII a XIV). Viseu: Palimage e CHSC - UC, 2006. p.261
2) Situada na esquina da Rua da Carniçaria (na actual esquina da rua Fonte da Vila com a Rua Inácio Perestrelo) era o local onde se celebravam as reuniões da vereação.
3) ANDRADE, Amélia Aguiar – Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p. 23-24.
4) AMPL, Livro de Acta da Câmara Municipal de Ponte de Lima 1720-1753, fol. 128v.
5) AMPL, Livro de Acta da Câmara Municipal de Ponte de Lima 1753-1759, fol. 213v.
6) AMPL, Apontamentos para as antiguidades de Ponte de Lima (traslado) 1939, fol. 358.
7) ABREU, João Gomes – José Rosa de Araújo: o Guarda-Mor do Arquivo Histórico de Ponte de Lima. In Boletim Municipal, ano VII, nº 18. Ponte de Lima: Câmara Municipal de Ponte de Lima, 2007. p. 17
8) Idem, Ibidem.
9) AMPL, Livro de Acta da Câmara Municipal de Ponte de Lima 1986-1988, fol. 27.
10) AMPL, [Estudo prévio para reinstalar o Arquivo e Biblioteca Públicas] 1985.
11) AMPL, Ofício recebido do Arquivo Distrital de Viana do Castelo em 6 de Julho 1994.
12) Ibidem.
13) Ibidem.
14) ALARCÃO, Jorge, Jorge, Introdução ao estudo da história e do património locais, Coimbra, Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1988, p. 25.
15) A propósito de fundo local leia-se NUNES, Henrique Barreto, “A biblioteca e memória da vida local”, in Nunes, Henrique Barreto, Da biblioteca ao leitor: estudos sobre a leitura pública em Portugal…, pp. 127-141.
16) LEMOS, Miguel Roque dos Reys, Anais Municipais de Ponte-de-Lima Anais Municipais de Ponte-de-Lima, Ponte de Lima, Câmara Municipal de Ponte de Lima, 1938, p. 221.
17) ALBERCH FUGUERAS, Ramon; Joan Boadas – La función cultural de los archivos. Euskadi: Gobierno Vasco, Departamento de Cultura, 1991. (Ikerlanak; 3). p. 18
18) VASCONCELOS, Maria da Assunção Jácome de; SILVA, Armando Barreiros Malheiro da – “A exposição documental da Sala do Arcaz”. Forum: [Braga]: Universidade do Minho. ISSN 0871-0422. 2 (outubro 1987) p. 25-33.
19) SILVA, Francisco Ribeiro da - “História local: objectivos, métodos e fontes”. In BARROCA, Mário Jorge (coord.), Carlos Alberto Ferreira de Almeida: in memoriam. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999. ISBN 972-9350-31-0. p. 383.
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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