Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo

 

Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo


Alta Figura da Ribeira-Lima e suas raízes limianas

 



António Manuel Couto Viana



Carlos Miguel de Araújo – Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo – nasceu no dia 30 de Dezembro de 1929, na vianesa rua da Bandeira, num prédio apalaçado, depois propriedade do Dr. Luís Pinto Rodrigues, advogado e um brilhante caricaturista e desenhador do nosso 1.º Modernismo (colega da filha, Maria Luísa de Távora, muita vez lhe percorri a bela e imensa moradia). A rua, estreita e sombria, então lajeada, era uma das mais densas de história e lenda da cidade. Ali residiria José Rosa d’Araújo, José Caldas, João da Rocha (o “Frei” da intimidade de Nobre, Raul Brandão e Alberto d’Oliveira), Guerra Junqueiro e Júlio de Lemos. Ali se ergue a morada alpendorada dos Rochas, com o seu trágico “pátio da morte”; dali nasceu o título nobiliárquico do Jacinto Fernandes, nascido num dos prédios modestos da longa artéria, quando se tornou milionário: barão de Porto Covo da Bandeira.

Carlos Miguel era filho segundo do casal Dr. Deoclécio Dias de Araújo e de D. Laura Maria do Carmo de Sousa de Abreu e Lima, primos entre si. O pai formara-se em filologia românica, na Coimbra que nomeou quintanista de Letras o poeta António Corrêa d’Oliveira. Fizera os seus estudos liceais no Colégio dos Jesuítas de la Guardia, quando exilados após a implantação da República em Portugal. No tradicional Livro de Curso, é o célebre poeta açoriano Vitorino Nemésio quem lhe retrata o perfil em três quadras:

 

“Deoclécio de Araújo

Quando foi às inspecções,

Não podendo ser marujo,

Foi servente de canhões.

 

Põe a granada na gola

E ei-lo vai, metido em lutas,

À frente da sua escola

Como campeão de recrutas.

 

Mas ao passar dum riacho

Ia ele no carro – truz!...

As mulas foram-se abaixo

Pensando que era um obuz…”

 

Dias de Araújo cumprira o serviço militar no Regimento de Artilharia de Montanha, sediado no vianês Castelo de Santiago da Barra, e, como era um homem corpulento, o poeta imaginou que as mulas, não lhe suportando o peso… truz!, deram com ele em terra.

Foi professor de Português no Liceu de Gonçalo Velho e tive a sorte de ser (embora por pouco tempo) seu aluno, escutando-lhe, com proveito, os ensinamentos literários.

Foi por ele que, pela primeira vez, surpreendi a minha vocação de escritor.

O casal descendia de gente grada da Ribeira-Lima pontelimesa.

O apelido de sua Mãe enobrece quase toda a fidalguia local, a ponto de António Feijó o ter adoptado no seu heterónimo D. Inácio de Abreu e Lima, cantor jogralesco das Bailatas (“Paixões ardentes / Não têm limites / Para os Abreus”. E o poeta não deixa de descrever o brasão dos seus supostos maiores: “Em campo vermelho, cinco contos de asa de águia, de ouro, com sangue nas costaduras, postas em santor. Timbre: um dos cotos estendidos”).

À família Araújo pertencia a primeira mulher do poeta barquense Avelino Dantas, D. Rosa Cândida de Araújo, irmã do comendador Joaquim Gonçalves de Araújo, o nababesco “rei da Amazónia”, tão rico que até o poderoso London Bank abriu uma agência nessas selváticas terras brasílicas, só para o servir.

O trisavô de Carlos Miguel era José de Sousa Pereira Marinho de Brandão Morim, senhor da Casa do Espírito Santo, ou da Feitosa, ao rés da vila limiana, filho segundo do Senhor da Casa de Casais, último Sargento-Mor de Ponte de Lima, por El-Rei D. Miguel I, e comandante da 3.ª Brigada de Ordenanças ao serviço do mesmo Senhor.

O avô manteve igual fidelidade ao monarca proscrito e foi combatente pelo regime monárquico na Viana republicana, sofrendo as grades da prisão.

Dele se podiam contar histórias curiosas sobre a sua vida em terras de Ponte.

E, após este relance brevíssimo sobre os antepassados do nosso Carlos Miguel, é tempo de lhe abordar a biografia variada e plena de episódios singulares.

Um ou dois anos após o seu nascimento, eu acompanhava a família, vinda das casas do meu Avô paterno, na Praça da República (quinze anos antes denominada da Rainha, da Rainha D. Maria II, que fizera cidade a vila), indo ocupar o solar dos Aranha Barbosa, a cem metros do berço de Carlos Miguel e dos seus outros sete irmãos.

O ranchinho assomava, frequentemente, à porta ampla do casarão. Mas recolhia, precipitadamente, num susto, quando a imponência do meu pai, pendurado num eterno charuto, lhes passava rente, conduzindo (ou conduzido!) pelo possante cão pastor-alemão, o Tarzan inofensivo, das minhas brincadeiras no largo pátio de pedra do solar; tão inofensivo que permitia que lhe dormisse, entre as pernas, o nosso gatinho Pom-Pom.

O Carlos Miguel fazia uma diferença de mim de sete longos anos e eu não prestava atenção ao puto, embora espigadote. Acamaradei foi com o irmão mais velho, o Duarte Nuno, graduado, como eu, da Mocidade Portuguesa, e meu companheiro em iniciativas desportivas e em acampamentos nos pinhais fundos de Santa Luzia. Se Carlos Miguel, talvez com os seus 12 anos, adregasse acompanhar-nos nestas actividades campestres, logo nos servíamos, o irmão e eu, da sua condição de mais novo, para o encarregarmos de uma descida à cidade, pelo pão e o leite frescos do primeiro almoço. O rapaz obedecia, disciplinado, embora maldizendo o abuso que a sua pouca idade permitia.

Disciplinado, cumpridor dos mais nobres deveres, como sempre tem sido através da vida.

Premiei-lhe, por essa altura, essas virtudes de “bom filiado”, quando, comandando a ala n.º 4 da MP, lhe passei para a mão uma pequena brochura patriótica que o então SPN divulgava pelo país.

Não sei se ele, ainda, a conservará.

Em 1942, o numeroso clã Araújo muda-se para Lisboa, onde o pai vai exercer funções nos Correios.

Na capital frequenta o Liceu de Camões, tendo por professores Prado Coelho, Cónego Fiadeiro, Leitão de Barros, Augusto do Nascimento, Silveira Pais.

Assiste às aulas do embaixador e escritor brasileiro Álvaro Lins, na Faculdade de Letras lisboeta, e segue para a Sorbonne, onde frequenta o “Cours de Civilisation Française” e termina o curso de língua francesa na Alliance Française de Paris. É, por essa altura, que, encontrando num café Pablo Picasso, o desafia a desenhar-lhe o retrato, ao que o Pintor corresponde, com alguns riscos identificadores, assinando em seguida.

Não ficaram por aqui os seus cursos de línguas, em França, Espanha e Roma, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros de França e Espanha.

Fora, algum tempo, funcionário de um organismo corporativo, onde acamaradou com Mário Cesariny de Vasconcelos, o vianense Carlos Eurico da Costa e o arcuense Luís Saraiva de Menezes.

Por fim, em 1957, ingressou na RTP, no sector de Programas Culturais.

Nessa altura, decide simplificar o nome para Miguel de Araújo.

O seu convívio com escritores e altos dignatários da Igreja é intenso e fecundo.

Homem dedicado à gastronomia (é sócio destacado da Confraria dos Gastrónomos do Minho), tem, há anos, por hábito, utilizar sementes de piri-piri como tempero das suas refeições.

Isto fez que o grande poeta Alexandre O’Neill lhe compusesse a seguinte Louvação, após um almoço que Carlos Miguel ofereceu, no seu aniversário, ao, então, casal O’Neill – Teresa Patrício Gouveia:

 

“De Miguel de Araújo louvo (e aprovo!)

Os pratos que prepara ou supervisa,

Mais louvo o anfitrião e os bons bocados

Para os amigos passar sempre tem feito.

 

Que é boa mesa sem boa companhia?

Que é feijoada sem boa gargalhada?

Cozido à portuguesa? Só se for

Entre amigos – e deles o mais lhano

 

É Miguel de Araújo, o limiano!

Neste soneto branco que parece

Travessa mal servida que arrefece,

 

Deixamos, Teresa e eu, os parabéns

Ao Carlos Miguel por este dia

 - E viva sempre a sua companhia!

 

(Estrambote:) …com piri-piri à mão, da carteirinha

Que Miguel extrai do bolso (olha a gracinha!...)”

 

Este excelente convívio literário e artístico que Carlo Miguel manteve, desde sempre, com gente da cultura, independentemente dos credos religiosos ou políticos, exemplifica-se quando, no 50.º aniversário da criação da RTP, os seus antigos companheiros de trabalho lhe esquecem o nome e a sua admirável actividade profissional, com a indignação pública de personalidades com ideologias contrárias às de Carlos Miguel, como Baptista Bastos e o maestro Vitorino de Almeida. E, numa das suas crónicas jornalísticas, Joaquim Letria confessava as saudades que tinha do Miguel de Araújo.

Sempre fiel aos seus credos religiosos e políticos (aquele miguelismo que herdara do trisavô) jamais deixou de prezar qualquer valor moral ou cultural do antagonista, numa imparcialidade exemplar.

Quando nos chegou a revolução dos cravos, estava em Paris, ao serviço da RTP. Regressado imediatamente a Lisboa, viu-se suspenso, saneado e demitido, sem qualquer acusação, pela comissão administrativa militar que ocupara a televisão.

E, todavia, sempre colaborara com as Forças Armadas, que lho agradeceram, por escrito, com palavras lisonjeiras.

Como tudo havia mudado!

Viúvo, com dois filhos menores, sem fortuna própria, viu-se, de imediato, perante o fantasma da miséria.

Deitou mão a tudo para sobreviver. Fez traduções para várias editoras, para a Companhia de Teatro de Vasco Morgado, com o pseudónimo de Manuel Pereira Marinho, para os Serviços de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian, foi redactor-principal do semanário O País e dirigiu a revista A Semana.

Entretanto lutava pela sua reintegração na RTP, o que veio a acontecer, por decisão judicial, em 1978, passando a ser nomeado Director do Centro de Investigação Audiovisual e de outros casos honrosos.

É, por essa altura, que reatamos as nossas relações de amizade, passando a encontrarmo-nos, como bons gourmets, em almoços semanais por restaurantes por ele rigorosamente escolhidos, na companhia de uns tantos amigos, minhotos ou não, mas todos apreciadores do bom garfo e do bom copo, além de uma boa parlenda erudita.

Um dos amores mais estremecidos de Carlos Miguel é Ponte de Lima, raiz familiar, terra fecunda de amigos e parentela.

Não há ano que a não visite mais do que uma vez, por alguns dias, para êxtase do olhar e do coração.

E, já agora (confessêmo-lo!), para deleite do paladar, no esplendor dos sarrabulhos e outros mimos gastronómicos locais, sem precisar de consultar o volumoso caderno de apontamentos onde fixa a direcção dos melhores restaurantes do país, assinalando-lhes as especialidades culinárias.

E ama, pelo espírito, a querida vila limiana, quando, membro do Instituto Português de Heráldica da Associação Portuguesa de Genealogia e do Colégio Brasileiro de Genealogia, prepara um trabalho sobre o Padre Roma (herói da revolta pernambucana de 1817) e sobre o seu filho, o General José Inácio de Abreu e Lima, companheiro de Bolívar e herói da libertação das antigas colónias espanholas da América do Sul.

O problema grave de visão que actualmente o afecta vem-lhe proibindo o prosseguimento e conclusão deste importante trabalho histórico.

Miguel de Araújo celebrou 80 anos de idade no passado Dezembro.

Perante esta bonita efeméride, a minha amizade fraterna ousou escrever-lhe os seguintes versos com que concluo este escasso apontamento sobre uma alta figura da Ribeira-Lima, a quem um escritor de sangue vianês, Álvaro Magalhães dos Santos, considerava, muito justamente, “um varão de Plutarco”:

 

Já 80, Miguel?

Agora vais saber

Que não é cruel

Envelhecer.

 

O amor pede calma,

Nesta idade.

E cuida-se melhor da alma

Para a suprema felicidade.

 

A doçura dos netos

(Quando os há) alegra o coração:

Estão mais vivos os afectos,

Tem mais amparo a tua mão.

 

E a sabedoria, o sumo bem?

Sabemos tudo!

Deixamos a indiferença e o desdém

Num espanto mudo.

 

Já 80, Miguel?

Responde-te à amizade:

- “Não é beber o cálice do fel,

Mas a malga de verde da saudade.”

 

 

 

Instituições a que pertence Miguel de Araújo:

  • Sociedade Histórica da Independência de Portugal;
  • Círculo Eça de Queirós;
  • Grémio Literário;
  • Instituto Português de Heráldica;
  • Associação Portuguesa de Genealogia;
  • Instituto de Genealogia e Heráldica da Universidade Lusófona do Porto;
  • Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro);
  • Centro de Estudos Regionais de Viana do Castelo;
  • Grupo “Amigos de Lisboa”;
  • Sócio da Casa do Concelho de Ponte de Lima;
  • Confraria dos Gastrónomos do Minho, etc., etc.

 

Distinções conferidas a Miguel de Araújo:

  • Comendador da Ordem do Mérito Civil de Espanha;
  • Oficial da Ordem do Cruzeiro do Sul do Brasil;
  • Cavaleiro da ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém (Santa Sé);
  • Irmão Professo agraciado por Sua Alteza Real o Duque de Bragança com o Grau de Cavaleiro Honorário da Real Irmandade de São Miguel de Alta.

18 de Janeiro de 2010
Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 16, de Fevereiro de 2010

 

Nota do Editor
Miguel de Araújo (Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo) morreu em Lisboa, a 11 de Fevereiro de 2020, com 90 anos de idade, cerca de dez anos depois de António Manuel Couto Viana, falecido a 8 de Junho de 2010, com 87 anos de idade.

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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