João Gomes de Abreu de Lima

 

João Gomes de Abreu de Lima


Testemunho de uma vida, uma vida de testemunho

 



João Gomes d’Abreu



 

Infância e juventude

 

Nasceu meu pai numa época de profunda agitação social e política, no longínquo sertão angolano, onde meus avós, por força das circunstâncias, tinham fixado residência.

Oriundo de uma família tradicionalmente relacionada com Ponte de Lima, meu avô Gonçalo de Abreu de Lima escapara à onda de retaliações políticas que levaria à prisão ou ao exílio, irmãos, cunhados e outros parentes seus, que mantinham firmes as suas convicções monárquicas. Interrompido o curso de Direito, partira para Angola, onde discretamente ingressou no quadro administrativo colonial. Alguns anos mais tarde veio casar a Ponte de Lima e de novo regressou a Angola, agora com sua mulher, que sempre o acompanhou no duro exercício das suas responsabilidades profissionais.

O nascimento de meu pai, a 4 de Julho de 1922, verificou-se quando se encontravam praticamente isolados no planalto do Moxico, onde o avô fora nomeado como Administrador de uma circunscrição civil, sediada na recém-criada Vila Luso, que hoje é a cidade de Luena, a capital da maior província de Angola. Tão longe estavam do mundo, que para assistir ao nascimento foi necessário chamar uma missionária inglesa da Rodésia e o baptismo formal só se verificaria quasi dois anos depois, na Missão Católica do Chivinguiro, enquanto se aguardava a disponibilidade do padrinho, um patrício com estreitas relações familiares, que era então o Alto Comissário na Província, General Norton de Matos. Mas porque este fora entretanto exonerado e estava já de partida para a Metrópole, meu avô substituiu-o por D. António de Almeida (Lavradio), outro seu amigo, como ele há muito homiziado em África, sendo madrinha Nossa Senhora de Lourdes, que tem acompanhado o afilhado ao longo da sua vida.

Pelo Verão de 1927, quando a Revolução Nacional dava já alguns sinais de estabilidade, regressam de vez a Ponte de Lima e instalam-se na Casa do Antepaço, muito bem situada numa excelente quinta na meia de baixo de Arcozelo, que a avó trouxera em dote. Meu pai, que ensaiava já as primeiras letras, foi inscrito na velha escola da Freiria, sob a tutela exigente do Padre Manuel Passarinha, onde firmou as suas primeiras relações de amizade. Rodrigo Melo, Amândio da Lúcia, Xico Morais, Néu Sevina e João Malheiro são nomes que sempre ouvi em casa com respeito e estima.

Terminada a instrução primária, havia que decidir-se a continuação dos estudos, inclinando-se meu avô para o colégio que os jesuítas tinham em La Guardia, fronteiro a Caminha, talvez induzido pelo tio Francisco de Abreu Maia, que estivera exilado na Galiza depois da Monarquia do Norte. Temia-se, no entanto, que a sanha anticlerical que assolava a Espanha desde a implantação da República em Abril de 1931 pudesse, de algum modo, arruinar esta possibilidade, o que, de facto, veio a acontecer, ao fim de poucos meses, com a dissolução da Companhia de Jesus e a sua expulsão do Colégio, onde estavam matriculados quinze alunos portugueses.

Nestas circunstâncias, o Padre Raúl Sarreira, egresso de La Guardia, sugeriu a espera de um ano, porque estava praticamente certa a transferência da comunidade para Portugal e a criação de um novo colégio, que efectivamente se estabeleceu nas Caldas da Saúde, entre Santo Tirso e Vila Nova de Famalicão, iniciando-se em Maio de 1933 as necessárias obras de instalação. Nascia assim o Instituto Nun’Álvares, carinhosamente conhecido por Caldinhas e meu pai integrou o primeiro contingente de alunos naquele ano lectivo de 1933/34.

A finalidade do Colégio era a formação religiosa, moral, literária e científica e a aquisição de todos os predicados de uma boa educação, tendo sempre em conta que a base da educação moral e cívica deveria ser a formação religiosa dos alunos. Nos sete anos de Colégio, teve meu pai os melhores mestres, que lhe ministraram conhecimentos, mas também incutiram bons princípios e forjaram o carácter. Entre eles apraz-me evocar o Padre António de Magalhães, um dos vultos mais categorizados do escol intelectual da primeira metade do séc. XX, confidente de Leonardo Coimbra, de Almada Negreiros e de Teixeira de Pascoais, que foi um dos Mestres de meu pai e tio paterno de minha mãe. 

Concluído o secundário nas Caldinhas, seguiu para Coimbra, para um ano propedêutico no Liceu D. João III e cursar depois Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras. A Lusa Atenas era ainda, por excelência, a cidade universitária, onde confluíam estudantes de todo o país e se faziam amigos para toda a vida. Na sua passagem por Coimbra, onde permaneceu praticamente toda a década de 40, estudou, praticou desporto, criou amigos, namorou, casou e preparou-se para iniciar a sua carreira profissional e constituir família. Como muitos outros rapazes da sua idade, pertenceu ao Centro Académico da Democracia Cristã, à Associação de Futebol de Coimbra, à Tuna Académica da Universidade e ao Tiro e Sport, um club elitista de grande prestígio local. E tinha ainda tempo e disponibilidade para uma activa militância na Acção Católica e nas Conferências de S. Vicente de Paula.

O aproveitamento escolar no primeiro ano da Faculdade de Letras ressentiu-se com a sua dedicação ao desporto, primeiro pelas muitas modalidades que praticava, depois, já especializado nas corridas de velocidade, pela exigência dos treinos e pela participação nas provas. Aos quinze anos já lançava o dardo, modalidade em que obteve uma boa classificação nos Campeonatos Universitários de 1942, onde alcançou também o 1.º lugar nos 200 metros e o 3.º nos 100 metros e igualou o recorde nacional dos 250 metros, sendo então considerado um dos melhores sprinters daquela época. Neste mesmo ano participa nos Campeonatos Nacionais de Juniores, no Estádio do Lima, no Porto e de uma assentada vence os 1500 metros, o salto em comprimento e estafetas 3x300 metros. Obtém também excelentes classificações em estafetas 4x100 e 4x400 metros e participa em provas oficiais de andebol, voleibol e rugby. E em 1944, nas imponentes cerimónias da inauguração do Estádio Nacional, realizadas no 10 de Junho, na presença dos Chefes de Estado e do Governo e com uma assistência de mais de 60.000 pessoas, representa a Associação Académica de Coimbra nas provas de atletismo, subindo ao pódio nos 100 metros livres. Ainda muito novo, mas já laureado pelos seus êxitos desportivos, respondia meu pai quando entrevistado para uma das revistas mundanas da época, que são essenciais a um jovem o carácter e a força de vontade.

Na impossibilidade de prosseguir simultaneamente a carreira académica e a desportiva, ambas extraordinariamente exigentes para os níveis de qualificação que dele se esperavam, opta pela primeira, substituindo o curso de Letras pelo de Direito, mas sem poder evitar um percalço, que era então uma consequência certa para quem, por qualquer motivo, se deixasse atrasar na progressão dos estudos – a tropa. Resultou daí a sua mobilização para a arma de Cavalaria, onde atingiu o posto de alferes miliciano nos dois anos em que prestou serviço militar em Torres Novas, Porto e Aveiro.

Foi nesta oportunidade que meu pai estabeleceu uma grande amizade com Fernando Pacheco de Amorim, também a prestar serviço militar e como ele um convicto monárquico e católico, mas provido do bom senso de o não acompanhar na romântica revolta da Mealhada, com que umas poucas dezenas de aventureiros tentaram derrubar o regime em Outubro de 1946. Aliás, o seu posicionamento político era perfeitamente claro no alinhamento com a situação vigente, que trouxera a Portugal a recuperação económica e a estabilidade social, evitando o envolvimento em duas guerras avassaladoras – a de Espanha e a Mundial. E bem o demonstrou quando em Maio de 1947 desassombradamente trepou o mastro da Associação Académica e cortou a adriça da bandeira, colocada a meia-haste pela detenção do estudante comunista Francisco Salgado Zenha e quando em Janeiro de 1949 subscreveu o manifesto académico contra a candidatura à Presidência da República, do antigo Grão-Mestre da Maçonaria General Norton de Matos, não obstante as relações particulares existentes.

 

Na Madeira

 

Concluída em 1949 a licenciatura em Direito, ainda equacionou a hipótese de seguir a carreira diplomática, que lhe era apontada pelo Embaixador José Nosolini, um influente político, considerado muito próximo do Dr. Salazar. Mas decidiu antes aceitar o convite para preencher interinamente o lugar de Sub-Delegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, que se achava vago na cidade de Braga e de que tomou posse em Dezembro de 1950.

Poucos meses antes realizara-se o seu casamento na capela da Casa de Rendufe, a velha casa de família que meus avós maternos tinham em Resende, sobranceira ao Douro. Minha mãe, com o extenso nome de Maria Ana Rooke de Lima Pereira Dias de Magalhães, minhota, duriense, tripeira e beiroa nos seus quatro costados tinha, contudo, uma ligação a Coimbra, onde vivia e ficara noiva. Seu pai era então o Engenheiro Director dos Serviços Municipalizados e os avós tinham sido Governadores Civis do distrito e um deles até Lente de Prima e Reitor da Universidade. Foi por isso que os seus filhos mais velhos, eu e meu irmão Manuel, nascemos naquela cidade.

Com a nomeação para o INTP, meus pais estabeleceram na cidade de Braga a sua primeira residência e aí permaneceram dois anos, até ao final de 1952, quando o então Ministro das Corporações, Dr. José Soares da Fonseca despachou a efectivação como Delegado na Ilha da Madeira. Em Outubro desse ano foi o pai homenageado pelos Sindicatos do Distrito de Braga e partiu para o Funchal para tomar posse como Delegado do INTP.

Já nesta época e até muito antes dela, acontecia haver crispação na tomada de decisões que pudessem colidir com interesses instalados, sobretudo quando divergiam as opiniões entre as instituições centrais e as locais, o que exigia dos responsáveis políticos um acrescido bom senso e espírito de justiça. Foi essa a grande virtude de meu pai nos quasi cinco anos de actividade na Madeira, pugnando sempre pelos direitos das corporações, sem por em causa o interesse geral. Esta postura de equilíbrio reflecte-se, por exemplo, em dois momentos altos da sua carreira – quando em 26 de Julho de 1954, de uma janela do Palácio de S. Lourenço, pronunciou um vibrante discurso perante uma multidão apinhada de milhares de pessoas, repudiando a tentativa de absorção do enclave de Dadrá e Negar-Aveli, em Damão (Estado da Índia) e quando os vinte Sindicatos Nacionais da Madeira, pública e solenemente lhe testemunharam a forma como se sentiram representados naquela patriótica manifestação de “incontido protesto contra a insólita atitude da União Indiana, atrabiliária dos princípios que informam e fundamentam o direito internacional dos povos civilizados”.

O bom lugar que fez na Madeira justificou o convite que o novo Ministro das Corporações, o Dr. Henrique Veiga de Macedo, lhe fez para que regressasse ao continente, agora para presidir em Lisboa à Junta de Acção Social, que havia sido criada com a reestruturação do Ministério, no âmbito do Plano de Acção Social. E assim meus pais, agora com mais dois filhos madeirenses, o José Maria e a Ana, deixam a ilha em Maio de 1957.

 

Em África

 

Pouco mais tempo esteve o pai a servir o Estado e nem mesmo o aceno para Governador da Madeira, que mais tarde lhe fizeram, o comoveu. Uma outra oportunidade lhe surgia agora, esta no sector privado e que iria constituir, durante muitos anos, o maior desafio da sua vida. Em Setembro de 1958 foi convidado para Secretário Geral da CCUP, a Companhia de Celulose do Ultramar Português, que preparava o seu estabelecimento em África e aceitou o convite.

A CCUP era uma sociedade anónima de responsabilidade limitada, constituída em 1955 para a instalação de uma indústria de celulose em local a designar numa das províncias ultramarinas portuguesas, que depois se determinou fosse na Alto Catumbela, no planalto central de Angola.

Este local reunia as melhores condições pela disponibilidade de água e de áreas florestais e pela proximidade do caminho-de-ferro de Benguela para o abastecimento e escoamento dos produtos, a que acrescia ainda um clima muito favorável à fixação do pessoal a contratar e das suas famílias. Foi possível obter uma concessão de 180 hectares junto àquela infraestrutura ferroviária e estavam já em curso os preparativos para a construção da fábrica e do primeiro bairro residencial, quando meu pai entrou para a empresa.

Para os primeiros anos de laboração, a matéria-prima (eucalipto, cedro e desperdícios de sisal) seria adquirida nas matas do Estado e nas particulares, mas desde logo se iniciaram diligências para a concessão dos perímetros necessários a florestações contínuas que viabilizassem o autoabastecimento. As primeiras demarcações concedidas pelo Governo Geral da Província foram na proximidade das instalações fabris, na Ganda e na Caala, com dez mil hectares cada, seguindo-se depois Sanguengue, esta já com nove milhões de eucaliptos plantados. Passados dez anos, a empresa tinha cerca de cinquenta mil hectares de plantações florestais, com uma expansão prevista de vinte e cinco mil hectares e perto de cem milhões de árvores plantadas.

A indústria consumia também uma grande quantidade de energia, o que viabilizou o aproveitamento hidroeléctrico dos rápidos do Lomaum, no rio Catumbela, a cerca de 50 km da fábrica, um projecto que previa já o abastecimento da região sisaleira do Cubal e da Ganda. A este empreendimento, que teve a participação da CCUP, associaram-se ainda o Caminho de Ferro de Benguela, a Companhia do Acúcar de Angola e a Sociedade Agrícola do Cassequel. Criou-se, assim, a Hidroeléctrica do Alto Catumbela, SARL, que abasteceria também um vasto território que se estendia até à cidade de Nova Lisboa, para cumprir uma das condições que o Governo Geral punha à outorga da concessão, justificando a participação do Estado em metade dos encargos com a distribuição em alta. Cinco anos passados, já a Hidroeléctrica abastecia grande parte da área central de Angola e estava em curso o reforço do aproveitamento para estender a cobertura aos distritos de Benguela, Huambo, Bié e Cuando-Cubango.

Em 1961, sendo já o pai administrador da CCUP em Lisboa, teve que acumular o cargo de Director Geral no Alto Catumbela, num período particularmente difícil, não só pelas dificuldades económicas que se deparavam à empresa, como também pela gravidade da situação decorrente das acções terroristas da UPA, que massacrava populações inteiras nalgumas regiões da Província. Um mês ou pouco mais após a sua chegada a Angola, teve o primeiro sobressalto, quando por milagre, numa deslocação a Luanda, não seguiu no avião da empresa, que se despenhou, perdendo a vida todos os ocupantes, incluindo um dos seus colegas na administração.

A partir daí, as estadias em Angola repetiram-se muitas vezes, anos a fio, quasi sempre por temporadas de vários meses, ficando longe da família e afastado dos seus interesses e dos seus afectos, não obstante a sua posição de Administrador em Lisboa e até de Vice-Presidente do Conselho de Administração. Mas foi precisamente nesta qualidade de Director Geral que conseguiu, com muito senso e habilidade e uma grande economia de meios, manter os colaboradores, garantir a laboração e satisfazer as encomendas, levando o Banco de Fomento Nacional a admitir a rentabilidade da empresa e a sugerir até um aumento de capital. Esta actuação seria reconhecida na viagem presidencial do Almirante Américo Tomás a Angola, em 1963, quando foi condecorado com a Comenda do Mérito Industrial.

Nestes períodos de permanência no Alto Catumbela teve em particular atenção a melhoria das condições de vida dos colaboradores da empresa e das suas famílias, inicialmente instalados em bairros residenciais onde praticamente nada existia, mas que vieram a constituir um verdadeiro polo de desenvolvimento urbano, com uma população fixa de dez mil habitantes, envolvendo vinte e cinco mil no âmbito alargado da actividade nos diferentes perímetros florestais. Com movimento comercial e vida social intensa, a povoação contava já com bons equipamentos e até uma igreja, que meu pai conseguiu fosse erecta como matriz da nova paróquia de S. João Baptista do Alto Catumbela.

No início da década de 70, a CCUP não estava longe de se poder considerar a maior empresa nacional de celulose, com uma produção bruta anual de cinquenta mil toneladas de pastas, papéis e sacos e previa-se uma ampliação que permitiria a sua contribuição anual para a balança de pagamentos do Estado de Angola, com um volume de divisas de um milhão de contos. Com esta nova ampliação, cujo investimento foi formalmente aprovado em Julho de 1971 pelo Governo do Estado de Angola e pelos Bancos do Fomento Nacional e de Angola, a fábrica iniciaria o aumento da produção em 1975. Ironia do destino, a selecção definitiva dos fornecedores dos equipamentos foi agendada para as 18 horas do dia 25 de Abril de 1974 e já não chegou a realizar-se. A partir desta data, tudo se precipita. Com a transferência da administração para Angola, meu pai libertou-se da responsabilidade executiva e manteve-se apenas como vogal, o que não impediu que no ano seguinte, naquele “verão quente” de 1975, tivesse de partir de novo para Angola, agora pela última vez, para tentar controlar uma situação desesperada, ameaçada pelo avanço das colunas da UNITA. Levou consigo uma companhia de Comandos e teve de bater o pé no Alto Comissariado, mas só assim foi possível escoltar a debandada dos funcionários e dos seus familiares até ao Lobito, onde embarcaram para a metrópole como retornados esconjurados.

Em Luanda, com a fábrica paralisada e a saque no Alto Catumbela, dedica-se quanto pode à Algodoeira Agrícola de Angola, empresa de que era igualmente administrador, mas a situação geral degradava-se de dia para dia e a sua segurança estava já em sério risco. Cada vez mais isolado, tinha contacto esporádico connosco através de um radioamador algarvio, que nunca conhecemos, mas que amavelmente disponibilizou esse serviço. O transporte aéreo estava absolutamente desorganizado e o aeroporto de Luanda era um caos. Ainda assim, um bambúrrio de sorte permitiu que se concretizasse a sua retirada em Outubro de 1975, poucos dias antes da declaração da independência, planeada em segredo porque já se anunciava a sua detenção.

Assim se desfazia um sonho que, a concretizar-se e esteve a um passo disso, teria sido uma das maiores empresas do país. Com a interrupção da laboração, em pouco tempo se inviabilizou qualquer hipótese de a retomar. Pouco tempo depois, já a região estava de novo desertificada e em Agosto de 2004, um incêndio devorou a carcaça e propagou-se à vizinhança, queimando os matos que haviam substituído os antigos perímetros florestais. A Natureza retomava assim o equilíbrio que o homem, por alguns anos, conseguira dominar a seu contento.

 

Na política

 

O afastamento das responsabilidades executivas na CCUP fora pedido pelo pai em Setembro de 1974, uma vez que a administração se transferira para Angola e não lhe era possível ajustar a sua vida a este novo condicionalismo. Mas a experiência adquirida nos dezasseis anos em que estivera envolvido na indústria de celulose e o prestígio que obtivera na gestão corrente da empresa, eram excelentes referências para obter um novo emprego, que logo se proporcionou na CELNORTE-Celulose do Norte, SARL, onde integrou o seu Conselho de Administração. Nestas circunstâncias, decide fixar residência na sua Casa do Outeiro, em Ponte de Lima, que ficava a escassos vinte quilómetros das instalações fabris, fazendo-se acompanhar por minha mãe e as minhas duas irmãs mais novas, Maria de Jesus e Sofia e deixando em Lisboa os outros quatro filhos, que frequentavam já o ensino superior.

Esta nova experiência, naturalmente empolgante porque a empresa ensaiava ainda os seus primeiros passos, teve curta duração. Seis meses após a sua admissão, deu-se o famigerado 11 de Março, que pretextou um sem número de iniciativas revolucionárias nas instituições públicas e privadas, que começaram com as nacionalizações e o saneamento político do escol empresarial do país. No rescaldo deste golpe, uma comissão revolucionária estranha ao próprio pessoal da empresa impôs o “saneamento” dos dois administradores que se opunham às suas reivindicações – o Eng.º António Pereira de Lacerda e meu pai.

Esta iníqua e atrabiliária decisão foi determinante para ambos – o Eng.º António Pereira de Lacerda, poucos dias mais tarde sucumbiu a um enfarte e o pai partiu de novo para Angola, como já referi, para evitar uma catástrofe no Alto Catumbela. Com esta peripécia foi-se também a esperança da eleição como Deputado à Assembleia Constituinte nas listas do Partido da Democracia Cristã, já que este partido fora também vítima do putsch revolucionário, com a ilegalização da sua actividade. E foi já em África que teve conhecimento da morte súbita de seu cunhado Guilherme Magalhães, em consequência do saneamento selvagem com que fora injustamente atingido na COMPORTEL.

Com tudo isto, imagine-se o estado de espírito com que o pai regressou a Portugal no final daquele turbulento verão de 1975, quando parecia já inevitável a eclosão de uma guerra civil. Mas o volta-face de 25 de Novembro trouxe-lhe o ânimo que a Fé e a crença na Pátria não deixaram esmorecer de todo. E quando o CDS (Centro Democrático e Social) iniciou a preparação para as eleições intercalares de Abril de 1976, convidou-o e bem assim ao seu velho amigo Engº Nuno Abecassis (mais tarde Presidente da Câmara de Lisboa), que haviam integrado as listas do PDC. Nessas eleições, que foram até hoje a maior vitória alcançada pelo CDS no sufrágio para a Assembleia da República, saiu Deputado pelo círculo de Viana do Castelo, mandato que assegurou nos sucessivos actos eleitorais até 1987.

Nas quatro legislaturas em que foi Deputado à Assembleia da República fez sempre parte da Comissão da Administração Interna e do Poder Local e subscreveu iniciativas legislativas tão diversas como as Leis de Bases da Regionalização e do Sistema Educativo, a regulamentação do Direito do Trabalho, as Finanças Locais, o Serviço Nacional de Saúde, as Associações Nacionais e Regionais de Municípios, os Códigos do Processo do Trabalho, do Direito de Autor e do Registo Predial e até a criação e elevação de autarquias, como foi o caso da nova freguesia de Chafé, no concelho de Viana do Castelo, a que se dedicou com particular desvelo. Para além das responsabilidades políticas imputadas como Deputado eleito, assumiu também no seu partido, o CDS/PP, as que lhe competiam como membro da Comissão Política e da Direcção do Grupo Parlamentar e, já no final da sua vida activa, como Presidente do respectivo Senado.

Concomitantemente com a sua actividade parlamentar, também o exercício das suas responsabilidades como autarca foi intenso. Depois que foi eleito Presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima em Dezembro de 1976, quando era já Deputado centrista há oito meses, nunca mais, até hoje, o CDS perdeu este município. Chefiou os três executivos que saíram das eleições de 1976, 1979 e 1982, onde conseguiu que todas as deliberações fossem subscritas por unanimidade e, mais tarde, em 1993, considerando a conveniência de prestigiar a candidatura de um seu correligionário, o Eng.º Daniel Campelo, não hesitou em integrar a sua lista como simples Vereador, numa postura de serviço e humildade que contribuiu certamente para o bom resultado obtido.

Quando meu pai ganhou a Câmara de Ponte de Lima, o orçamento municipal era escassíssimo e a maior parte das iniciativas dependiam da vontade política e do apoio financeiro do poder central, não havendo, para além das posturas que regulavam questões de lana-caprina, outros instrumentos de direito administrativo que enquadrassem uma gestão mais focalizada do interesse público. O seu contributo como parlamentar para a revisão das problemáticas associadas ao poder local foi muito enriquecido pela experiência que foi adquirindo na gestão municipal e esta dupla perspectiva terá certamente contribuído para a boa gestão do Fundo de Equilíbrio Financeiro com que a autarquia foi posteriormente dotada.

A ampliação, reforço e melhoria das redes de infraestruturas viárias e de abastecimento e drenagem de que o concelho estava imensamente carecido e a dotação e distribuição dos equipamentos na rede urbana municipal foram, desde logo, as opções prioritárias do seu executivo. Enquanto isso, foi-se definindo a política de desenvolvimento do concelho, que a seu tempo seria regulamentada em novos instrumentos de ordenamento do território. E rasgaram-se novos horizontes nas áreas da Cultura e do Turismo, que colocaram Ponte de Lima na ribalta da civilização.

 Todos estes anos em que o pai foi simultaneamente parlamentar e autarca, viveu-os com minha mãe em Ponte de Lima, de início também com a companhia das minhas irmãs mais novas e sempre com as visitas assíduas dos outros filhos, que terminavam os estudos e se iniciavam na vida activa em Lisboa e no Porto. Nesta época, em que as estradas e os transportes estavam ainda muito longe de serem o que hoje são, quando uma viagem de Ponte de Lima à capital demorava, na melhor das hipóteses, sete a oito horas, o pai fazia-a duas vezes por semana ao longo de todo o ano, para assegurar o desempenho das funções para que tinha sido eleito. E mesmo mais tarde, já aliviado das responsabilidades políticas, ainda as longas deslocações eram habituais, no exercício dos cargos de Administrador da Companhia de Cartões do Cávado e da Sociedade de Fiação e Tecidos de Sevres, que entretanto assumiu.

Para o sucesso de Ponte de Lima nas áreas da Cultura e do Turismo, foram decisivos os contributos de duas pessoas a quem o pai teve a perspicácia de pedir socorro – José Rosa de Araújo, que veio instalar o Arquivo Histórico Municipal, ponto de partida de um cortejo de iniciativas que ainda hoje se multiplicam e Maria Laura Achemann, que fez desta terra o maior alfobre do Turismo de Habitação em todo o país.

Para credibilizar esta nova modalidade de alojamento turístico, pelo qual se batera na revisão do enquadramento jurídico, decidiu o pai inscrever também a sua Casa do Outeiro, onde vivia como seu sucessor, numa longa linhagem aí estabelecida há mais de quinhentos anos. Não que necessitasse de obras de adaptação, já que as poupanças de toda a sua vida de trabalho tinham sido investidas nela, com a realização das benfeitorias necessárias para preservar esta referência afectiva do nosso património familiar. Mas foi por isso mesmo que a Casa do Outeiro foi a primeira inscrita no Turismo de Habitação, integrando depois a TURIHAB, de que o pai foi um dos fundadores.

No crepúsculo da vida, já com noventa e um anos rodados, pode João Abreu Lima estar orgulhoso da sua obra – como Católico, no testemunho que deu da sua Fé; como Português, na boa tradição dos seus antepassados; como cidadão, no respeito que lhe mereceram até os adversários; como chefe de família, uma referência moral dos bons princípios; como profissional, no exercício das suas competências; como político, na confiança e no respeito por quem o elegeu; e até como ‘limiano’, na autoestima que despertou nos seus patrícios. Seis filhos, treze netos e quatro bisnetos subscrevem este sentimento e associam-se à homenagem que publicamente lhe é prestada. Mas não esquecem o papel de quem discretamente sempre o acompanhou, o motivou e é ainda hoje a bengala da sua velhice – a sua Mulher, nossa Mãe, Avó e Bisavó.

 

Casa do Outeiro, Outono de 2013

Publicado na LIMIANA - Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 35, de Dezembro de 2013

 

Nota do Editor
O Dr. João Gomes de Abreu de Lima faleceu a 16 de Janeiro de 2016, com 93 anos de idade.
Foi distinguido pela Câmara Municipal de Ponte de Lima com a atribuição do seu nome a uma artéria de Ponte de Lima (Praceta Dr. João Gomes de Abreu de Lima), tendo a cerimónia de descerramento da respectiva placa toponímica decorrido no local, em frente à Escola Secundária de Ponte de Lima, em 26 de Outubro de 2018.
Para saber mais sobre esta distinção clique AQUI

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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