Álvaro Feijó

 
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Álvaro Feijó




David F. Rodrigues



 «Nasci numa manhã com neblina de bronze / sobre o rio. / O Sol era uma incógnita na bolsa esverdeada do horizonte / e, embora primavera, uma manhã de outono.» [Os Poemas de Álvaro Feijó, 1961: 32]

Com esta estrofe, dá início Álvaro Feijó ao breve poema «Registo», datado de 1939. Nela, o poeta como que perspetiva o seu brevíssimo percurso de vida: uma manhã de primavera que logo fica outono. Nascido em Viana do Castelo, a 5 de junho de 1916, morre, em Lisboa, a 9 de março de 1941, três meses antes de completar 25 anos de idade. Filho de família aristocrática vianesa, Álvaro Feijó fez os estudos secundários num colégio jesuíta da Galiza. Transitou, depois, para Coimbra, onde frequentou a Faculdade de Direito. É sobrinho-neto de António Feijó (1859-1917) e sobrinho direito de Salvato Feijó (1876-1959), escritores naturais de Ponte de Lima.

Publicou, em vida, apenas um livro de versos – Corsário (1940). Preparava a edição de Diário de Bordo, quando a tuberculose o vitimou. Deve-se a Rui Feijó, seu irmão, e a amigos e companheiros de Coimbra, não ter caído no esquecimento a parca mas significativa obra poética que produziu. Com o espólio fornecido pela família e namorada, Joaquim Namorado e João José Cochofel reuniram, em 1941, Os Poemas de Álvaro Feijó (Coimbra, col. «Novo Cancioneiro»), prefaciados por Armando Bacelar. Além de Corsário e Diário de Bordo, Namorado e Cochofel selecionaram de Desgarradas (três cadernos de inéditos autógrafos do jovem poeta) um conjunto de poemas a que deram o título de «Primeiros Versos». Em 1961, sai a 2.ª edição (Lisboa, Portugália), com prefácio de João José Cochofel e posfácio de Rui Feijó. Na organização desta edição, considerada ne varietur, Cochofel contou com a colaboração de Carlos de Oliveira. Seguiram-se mais três edições, o que mostra o reconhecimento da sua obra.

Duas orientações principais se encontram na poesia de Álvaro Feijó. Uma, presente sobretudo nos seus primeiros versos, está centrada no eu e no amor (dividido entre o espiritual e o carnal), ao lado, por vezes, de um humanismo idealista. Marcada ainda por influências da poesia do tio-avô, além de outros poetas dos finais do século XIX, tal orientação está ainda presa a formas tradicionais de composição, a nível estrófico, métrico e mesmo temático. Uma segunda orientação, presente sobretudo em Corsário e Diário de Bordo, revela-nos um poeta já solto das «amarras» formais tradicionais. Recorre ao verso livre, os seus poemas são mais discursivos, mais naturais, mais espontâneos. Acentua-se a sua atenção ao real quotidiano e aos problemas sociais e humanos, fruto certamente do convívio próximo que, em Coimbra, manteve com os poetas do emergente neorrealismo português, de quem foi, aliás, companheiro e amigo: Políbio Gomes dos Santos, Joaquim Namorado, Fernando Namora, Carlos de Oliveira e João José Cochofel, entre outros.

A seleção dos poemas que a seguir se apresenta procura mostrar, dentro das limitações possíveis, as referidas orientações do poeta.

 

 

 

À MODA ANTIGA

 

Toda de negro, negros os cabelos,

negros os olhos com fulgor’s de brasa,

negro os vestido simples que se casa

tão bem aos olhos que dá gosto vê-los,

 

Negra a pestana como arminho de asa

‘scondendo ao céu dos olhos dela anelos,

fulgor’s dos olhos meus, como cutelos

 a ferir o mistério à sua casa.

 

Toda de negro no vestido leve

surge-me a espaços, ocultando-a breve

as cortinas de tule e tafetá;

 

Freira em convento o seu olhar me absolve…

Sendo negro o mistério em que se envolve,

são cor-de-rosa os sonhos que me dá.

[p. XV]

 

 

 

SONETO DE AMOR DA HORA TRISTE*

 

Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro

do que tu – não deixes fechar-me os olhos

meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos

e ver-te-ás de corpo inteiro

 

como quando sorrias no meu colo.

E, ao veres que tenho toda a tua imagem

dentro de mim, se, então, tiveres coragem

fecha-me os olhos com um beijo.

                                               Eu, Marco Pólo,

 

farei a nebulosa travessia

e o rastro da minha barca

segui-lo-ás em pensamento. Abarca

 

nele o mar inteiro, o porto, a ria…

E, se me vires chegar ao cais dos céus,

ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus.

[pp. 77-78]

*Este é o primeiro poema de dois com o título "Os Dois Sonetos de Amor da Hora Triste"

 

 

 

BIFRONTE

 

Calcorreei a estrada, encadernado

de senhor feudal

e, quando eu passava, lentamente,

desbarretavam-se as gentes, temerosas

do meu guante ferrado, que abatia

iras incontenidas

sobre justos e injustos, num fatal

julgamento de morte destruição!

Calcorreando a estrada,

sem um riso

de criança rosada,

nem uma boca de mulher

me deu a antevisão dum paraíso

qualquer!...

 

Voltei no meu caminho, revestido

do manto de farrapos dum mendigo

desiludido!

Curvei-me, até ao chão, ante os potentes…

apressados batiam coração

e dentes,

do frio da transição

As crianças rosadas cataram-me os piolhos…

Senti carinho e amor nos dóceis olhos

das mulheres da estrada

e, como dantes,

cheguei ao fim cansado das multidões!

 

Meti na estrada do monte

e, ora senhor feudal,

ou pobrezinho

que andou no mundo o seu caminho

e errou,

quer guardando no leito castelãs

ou moças aldeãs…

 

Nem assim sou o que sou!

[pp.37-38]

 

 

POEMA

 

Fundiu-se o olhar do poeta em lágrimas salgadas

e o poeta não quis cantar o que os seus olhos viram.

É que o poeta só cantava

para as meninas dos balcões floridos

de cactos e de cravos,

para aquelas

que sonham com estrelas

e príncipes de lenda.

- E preferiu cegar.

Fechar os olhos ao vaivém da rua

e continuar morando em sua Torre de Marfim.

 

Ah! Poeta inútil!

Enrouqueceu a cantar as líricas inúteis

aos cravos das janelas

das meninas fúteis

e ninguém mais se lembrará de ti.

Mas se cantares a rua, a fome, o sofrimento,

se abrires os olhos sobre o nosso mundo,

se conseguires que toda a gente o veja

e o sinta, e sofra, só de ver sofrer,

ninguém se lembrará de ti, poeta,

mas terás feito a tua luta,

e, nela,

justificado uma razão de ser.

[pp. 147-148]

 

 

 

TRANSFIGURAÇÃO

 

Gomo a beber, pela manhã silente,

as luminosas lágrimas de água

que uma estrela chorou…

 

Folha a cair na neve, lentamente…

- Homem! Anda sentir a tragédia de mágoa

que vai do gomo à folha que tombou!

[p. 16]

 

 

SARGACEIRO

 

É longo e pesado o engaço!

A barca vem cheia

de suor e de sargaço

e fome.

Tanto e nada!

Sargaceiro!

Limpas sargaço

do fundo deste mar

que, para ti, é baço

e não tem aquele aspecto sonhador

que nós lhe damos.

Ele, o mar…

Empresta-me o teu engaço:

há tanto que limpar!

[p. 154]

 

 

 

 NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO

 

O altar as vagas,

o dossel a espuma!

Missa rezadas pelo vento,

ora pelos fiéis defuntos que se foram

noutras vagas,

ora pelas barcaças que, uma a uma,

buscaram as sereias na distância

e se foram com elas.

Sobre o altar, entre círios, que não são

os círios murchos das igrejas velhas

mas os lumes de estrelas,

ELA,

Nossa Senhora da Apresentação.

Aquela

que não tem mantos da cor do céu

nem fios de oiro nos cabelos

nem anéis nos dedos;

aquela

que não traz um menino nos seus braços

porque os seios mirraram

e já não têm pão para lhe dar;

aquela

que tem o corpo negro e sujo

e os ossos a saltar

da pele

e dos rasgões da saia e do corpete;

Nossa Senhora da Apresentação

da Beira-Mar,

que tem capelas

em cada peito de marinheiro,

que morre e, num instante,

se renova

e que anda

quer nos engaços do sargaceiro

ou nas gamelas do pilado

e palhabotes da Terra Nova.

Aquela

A quem todos adoram.

                                      Dos meninos

feitos nos intervalos das campanhas,

aos bichanos que limpam de cabeças

e tripas de pescado

as muralhas dos cais.

 

O dossel a espuma.

O altar as vagas

- e que altar enorme! –

Entre círios de estrelas,

Nossa Senhora da Apresentação

e Justificação

- a Fome!

[pp. 123-125]

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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