É bem conhecida a biografia do Conde d'Aurora (José de Sá Coutinho). O seu percurso de escritor e a dedicação à terra que o viu nascer foram realçados noutras publicações e não os vou aqui repetir. O carinho que Ponte de Lima tem pela figura do Conde d'Aurora, não vem da posição social ou título aristocrático mas de uma vida de intervenção em prol da sua comunidade. Dos artigos nos jornais denunciando atentados ao património ou crimes ambientais, à fundação da Adega Cooperativa – de que foi o principal impulsionador – ou às acções da Conferência de S. Vicente de Paulo, José António Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho manteve uma postura que lhe granjeou o respeito dos limianos. Assim, optei por focar apenas o leque de relações que o Conde d'Aurora manteve ao longo da vida com personalidades de relevo – nacionais e estrangeiras –, que convidava para sua casa em Ponte de Lima e com quem fez questão de partilhar este cantinho de Portugal. Fosse a título pessoal ou como presidente da Associação Luso-Britânica e da Aliance Française do Porto – cujas funções o Conde de Aurora acumulava com as de juiz do Tribunal de Trabalho –, pela nossa pacata vila minhota, que até aos anos 60 vivia fora dos itinerários principais, passaram figuras de prestígio que levaram o nome de Ponte do Lima muito para além das fronteiras de Entre Douro e Minho.
A Casa de Nossa Senhora de Aurora recebia com frequência António Ferro, Ruben A., Sofia de Mello Breyner ou Luís Forjaz Trigueiros. Outros ficavam hospedados na estalagem de Santa Luzia, em Viana, num “caminho literário" rumo a Santiago de Compostela. A convite do Conde d'Aurora faziam o desvio até Ponte de Lima para um passeio ao Lindoso, ou umas tardes de tertúlia literária junto à lareira da livraria de sua casa. Privou com António Feijó, e quando Sebastião da Gama passou dez dias na pensão Dores Petiscas, foi calorosamente acolhido pela família Aurora e tornou-se presença habitual no solar. Conta-se até que, quando adoeceu com um febrão – provocado, segundo se diz, por uma barrigada de sardinhas e vinho verde nas Feiras Novas, numa daquelas mesas corridas da feira que os feirantes montavam por baixo da velha ponte – , foi acolhido e tratado pela Condessa d'Aurora que lhe preparava pessoalmente papas para o pequeno-almoço. O “poeta da Arrábida” apaixonou-se pela nossa vila, e sabemos que as belas paisagens da Ribeira Lima inspiraram alguns dos seus versos.
Ao contrário do Pilauta ou do Bota-a-Linha, os cicerones descritos n’O Roteiro, o Conde de Aurora era um host refinado. Falava inglês e francês fluentemente, era homem viajado – viveu na Argentina, esteve no Brasil, no Pólo Norte, conhecia Marrocos, França, Londres –, e fora cultivado não só nas letras como na arte de bem receber, o que fazia dele o anfitrião perfeito.
A 16 de Setembro de 1951 a Casa de Nossa Senhora de Aurora engalanava-se para receber Gilberto Freyre. O escritor e antropólogo brasileiro percorria então o País e as colónias a convite do governo português, e era a visita de honra nessa noite, com Luís Forjaz Trigueiros, Pedro Moura e Sá e William Clark, jornalista do semanário de referência britânico The Observer. Na sala de jantar, iluminada pela luz de dezenas de velas, o cenário fora cuidadosamente preparado de véspera pela Condessa d'Aurora – a mesa posta com o serviço da casa, os candelabros a pingarem na melhor toalha de linho... Elegante mas despretensioso. Depois do jantar, a conversa prolongou-se pelo serão, com as janelas abertas para o jardim. “Estava uma noite fantástica, muito calor, a água a cair na taça do terraço”, lembra Maria Eugénia Aurora, filha do Conde d'Aurora. A recepção aos Conde de Barcelona, anos mais tarde, seria também rodeada de todos os requintes que a ocasião exigia, com a dignidade de um “médio proprietário rústico minhoto”, como o próprio Conde d'Aurora se intitulava.
De regresso ao Porto depois da viagem às colónias, Freyre reencontraria “o meu já querido amigo Conde d'Aurora (…) magro, anguloso, romântico (…)”. É ele que “anima de mocidade e de lirismo” o acolhimento ao escritor. Em Aventura e Rotina, o livro saído dessa viagem, Freyre descreve assim aquele serão: “Recebera-me então com a mais fidalga das hospitalidades portuguesas no seu solar de Nossa Senhora de Aurora. Mostrara-me a sua mata. Levara-me a gozar as suas paisagens preferidas, no momento exacto em que os azuis da Ribeira Lima são mais belos para olhos dos gourmets de paisagens. Oferecera-me um portuguesíssimo jantar seguido de uma portuguesíssima dança popular, de que participaram suas filhas e suas sobrinhas, junto com as moças e os rapazes do povo.” No Porto”, continua Freyre, “Aurora reúne um grupo magnífico de escritores, artistas e jornalistas (…) para um almoço tipicamente tripeiro, em velho restaurante à beira de água.” Gilberto Freyre conhece o antigo deputado Pinheiro Torres, “orador realmente admirável”, António Correia de Oliveira, e o “jovem etnógrafo” Jorge Dias. O seu livro seguinte, Um Brasileiro em Terras de Portugal, onde volta a falar daqueles dias passados no Minho, é dedicado – entre outros – “aos Aurora, de Ponte de Lima.”
Antes de Gilberto Freyre estiveram na Casa de Nossa Senhora de Aurora outros nomes relevantes das letras brasileiras, como o poeta Jorge de Lima; Aurélio Buarque de Holanda, filólogo, ensaísta e crítico literário; o escritor Alceu Amoroso Lima, que ali passou um Natal em busca das suas raízes limianas; Luís da Câmara Cascudo, historiador e antropólogo, que diz algures: “O Conde de Aurora fez-me comer, no Porto, um pé-de-moleque feito pela esposa, fiel à receita levada do Brasil por um dos antepassados, Lavradio, vice-rei no século XVII.” Cascudo cita-o novamente num texto publicado no Diário de Natal em 1947 e disponível na Internet: “Uma das mais autênticas e lindas homenagens a Eça de Queiroz foi a conferência do Conde de Aurora.”
Por vezes mandava o Conde de Aurora um dos netos mais velhos esperar a comitiva de recém-chegados, com uma vara na mão e instruções para levar os visitantes a entrarem na vila pelo areal, junto à margem esquerda do rio. Atravessavam os campos de milho seco rodeados de latadas, entre muros de pedra baixos, e paravam nos cruzeiros, alminhas e capelinhas desenhadas por José Luís Brandão de Carvalho na Monografia do Concelho de Ponte de Lima. O Conde de Aurora achava que “quem vinha ao Minho tinha de fazer esses caminhos.” Anfitrião incansável, faz questão em mostrar as belezas de uma vila e uma região que tanto amava. Soube, como poucos, revelar a alma desta terra nas páginas do Roteiro ou da Monografia, e palmilhou serras e aldeias, na ânsia de dar a conhecer um mundo que ameaçava morrer perante a voracidade do progresso.
Quando uma equipa da BBC apareceu sem avisar para filmar um documentário, ficaram para jantar e dançou-se o vira na entrada da casa. O público britânico pôde ver as chinelas a bater nas velhas pedras de granito, e ouvir a banda de música – bastante desafinada – tocar o Tannhauser, de Wagner, enquanto o povo assistia indómito debaixo dos guarda-chuvas. As concertinas voltaram a estar presentes no dia em que Margot Fonteyn dançou o vira no terraço da Casa de Nossa Senhora de Aurora e, como sempre, os limianos juntaram-se à festa. “Os que cá vinham levavam consigo algo mais, levavam o sentido da terra limiana – os cheiros, os sons – pelas várias partes do mundo para onde iam. E muitos acabavam por voltar com os amigos, porque sabiam que esta era uma casa aberta, tal como a vila”, diz Maria Eugénia Aurora. Em casa do Conde de Aurora, cujas grossas paredes guardam a memória desses serões animados, o nome de Ponte de Lima não só surgia mais nítido no mapa, como era espalhado aos quatro cantos do Mundo.
Hoje esse legado mantém-se; Ponte de Lima orgulha-se do seu património – natural e cultural – e continua a ter fama de excelente anfitriã. E entre as vilas portuguesas, não podemos negar que goza de um estatuto especial. José António Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho, nascido em Ponte de Lima, num solar centenário às portas da vila, a 19 de Abril de 1896, foi escritor premiado, juiz, etnógrafo, católico praticante e figura querida dos limianos. É mais um filho desta terra, berço de tantos filhos ilustres.
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Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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