Um limiano para sempre
Sobranceiro à vila de Ponte de Lima, ergue-se o Monte das Santas, colina de moderada altitude, suficiente para nos proporcionar uma deslumbrante panorâmica sobre a antiga vila e uma grande parte do vale do Lima, desde as serras por onde corre mais apertado, serpenteando através da extensa veiga até se diluir no oceano. O religioso nome deste cerro é atribuído na lendária tradição local a umas piedosas mulheres que em penitência aí teriam vivido noutros tempos. Como em todas as lendas há um remoto fundo de verdade, apontam os estudiosos para existência de ruínas castrejas, que as obras efectuadas no século XX quase totalmente fizeram desaparecer. Os devotos locais, acolhendo as inconscientes sugestões da lenda, aí fizeram erigir uma pequena capela, dedicada não a essas santas, mas, em concreto, a uma santa, Maria Madalena, e naturalmente, ao Cristo que ela amou intensamente. Veio daí o nome com que na actualidade é conhecido o Monte de Santa Maria Madalena, ou, simplificando, o Monte da Madalena.
Na primeira metade do século XX, um grupo de pontelimeses, entusiasmados com a amenidade do local e com a beleza da paisagem que dele se vislumbra resolveu substituir por outra a velha capela e transformar o recinto envolvente num aprazível jardim, onde fosse agradável jornadear, e construir um edifício de apoio, que pomposamente designaram como hotel, ainda que nunca tenha funcionado a esse nível e apenas nas últimas décadas do mesmo século se tenha transformado em restaurante, no piso superior, e café-bar, no rés-do-chão. Nele foram utilizadas, em parte, as colunas e arcadas setecentistas do claustro interior da antiga Misericórdia, esventrada para dar passagem à Rua Cardeal Saraiva. O facto de a maior parte daqueles entusiastas residir em Ponte de Lima fez com que durante muito tempo a estância fosse tratada como se estivesse dentro dos limites da vila, ou, com alguma concessão, à paróquia que lhe é imediatamente contígua, a de S. Bento de Arca.
Em tal edifício viveu, durante anos a fio, no tempo em que plantava e cuidava do esmerado jardim e do bosque circundante, o Sr. António Dias, na companhia da sua esposa Maria Gomes, e aí nasceram e cresceram os seus numerosos filhos, entre a verdura da relva e os canteiros de flores. Um deles, nascido a 4 de Maio de 1933, recebeu o nome de Manuel Gomes Dias. Foi baptizado na igreja paroquial da histórica freguesia de Fornelos, que foi objecto de um artigo publicado no n.º 12 da revista Limiana, cujo termo abrange a estância panorâmica de Santa Maria Madalena, com os limites a passar logo abaixo da capela. O local onde aconteceu o nascimento e decorreram os tenros anos do pequeno Manuel pode tomar-se como emblemático da sua maneira de ser e da sua vida futura: amplo panorama, larga visão, alguma elevação, ainda que moderada e sem arroubos, muito sol, uma paisagem a ser amada…
Manuel Gomes Dias fez a instrução primária na vila de Ponte de Lima; frequentou a secção masculina do Colégio D. Maria Pia e passou nas provas de admissão aos estudos liceais. Em entrevista concedida a um órgão da imprensa local, diz-nos que ainda desejou seguir o curso de medicina, mas, sendo essa hipótese na altura inviável, decidiu, sem hesitar, matricular-se no Seminário Diocesano de Braga, que começou a frequentar em 1946. Aí foi reconhecido como bom aluno e, em anos mais avançados, despertou a atenção dos seus superiores pela sua queda ou, como terá dito o Cónego Aguiar Barreiros, pelo seu “faro” para os bens do património artístico e arqueológico. Com o mesmo Cónego Aguiar Barreiros e com o Cónego Luciano Afonso dos Santos, colaborou, ainda seminarista, na organização de algumas exposições realizadas em Braga. Por ocasião de algumas dessas exposições, travou conhecimento com José Rosa de Araújo, de quem se viria a tornar grande amigo e companheiro em lides de reconhecimento arqueológico e de recolha etnográfica, na Ribeira Lima.
Foi ordenado sacerdote em 15 de Agosto de 1958, pelo Arcebispo D. António Martins Júnior. Nesse ano foi colocado como pároco na remota freguesia de Sistelo, no concelho de Arcos de Valdevez, a cujo serviço esteve durante três anos. Sistelo era uma paróquia situada nos extremos do concelho arcuense, onde se iniciava um trilho de montanha, que ligava ao vale do rio Mouro; na modéstia do lugar sobressaía apenas o revivalista e um tanto fruste castelo do Visconde de Sistelo, que noutra área geográfica nem sequer uma menção justificaria… Para além da assistência religiosa prestada aos paroquianos, a estadia do P.e Manuel Dias em Sistelo ficou marcada pelas obras de recuperação da residência da paróquia e pela publicação de um boletim paroquial, facto tanto mais de assinalar quanto, para além de excelentes meios de comunicação, sobretudo com os emigrantes, a edição destes pequenos jornais não era, nem é, tão frequente, mesmo em grandes paróquias, quanto mais nesta humilde freguesia, escondida nas ilhargas da serra.
Em 1961 foi transferido para a freguesia de Serdedelo, no concelho de Ponte de Lima, próxima da localidade onde tinha nascido. Nos primórdios da nacionalidade, Serdedelo, que já figurava no célebre testamento da condessa Mumadona, era sede de um mosteiro feminino, cuja história permanece obscura. Cedo extinto o mosteiro, Serdedelo manteve-se como paróquia religiosa, mas nunca foi das mais avantajadas em território e em número de habitantes: apesar de tão ancestral presença nos anais da História, era uma freguesia modesta, relativamente isolada, que só a estrada aberta no segundo quartel do século XX tirou do isolamento. A passagem do P.e Manuel Dias ficou registada com as obras de restauro da residência paroquial, tanto mais necessárias, quanto até aí quase abandonada, porque a freguesia não dispunha desde há muito de um pároco residente, o que aliás viria a repetir-se no futuro. Com o pastoreio da freguesia de Serdedelo, que se estende até ao lugar da Armada, localizado na nascente do rio Trovela, foi-lhe confiada também a da Boalhosa.
O isolamento geográfico destas localidades permitiu que nelas sobrevivessem durante mais tempo algumas tradições e costumes, a cujo registo e estudo o P.e Dias dedicou meritoriamente a atenção, ainda que por vezes esse trabalho tenha sido olhado com alguma incompreensão ou mesmo com uma certa hostilidade. Dessa época datam algumas notas, por exemplo, sobre o jogo do pau e sobre costumes funerários.
Em Outubro de 1968, iniciou a actividade como pároco da freguesia da Labruja, no mesmo concelho de Ponte de Lima. A localidade fora atravessada pela antiga via romana, que saía de Braga em direcção à Galiza e, em meados da Idade Média, deu lugar ao chamado Caminho de Santiago, percorrido por inúmeros peregrinos e almocreves. A Labruja aparece já referida em vetustos documentos como sede de um mosteiro, criado pelo bispo Ermóigio, que aí se refugiou na altura das incursões normandas. Deu nome a um dos arcediagados da diocese de Tui, que abrangeria o território correspondente ao vale do rio homónimo e algumas áreas mais próximas. No século XVII, a Labruja aumentou a sua notoriedade com a erecção, devida ao mecenatismo de um “brasileiro”, do Santuário de Senhor do Socorro, que constitui o núcleo central de um projecto, elaborado sob a influência de outros “sacri monti”, e designadamente do Bom Jesus de Braga, que não chegou a ser inteiramente concluído, mas deixou aos vindouros um templo com certa grandiosidade, onde, desde a sua origem, se realiza um concorrida festa anual. A actividade do P.e Manuel Dias contribuiu para acentuar o prestígio alcançado pelo santuário, pelas suas festas e pela freguesia de Labruja.
Na altura em que noticiava a sua entrada em funções na Labruja, o semanário Cardeal Saraiva, em 18 de Outubro de 1968, escrevia: “A sua obra pastoral orienta-se pelos mais altos princípios, sendo notável o seu esforço para arrancar ao obscurantismo cultural e religioso as populações a ele confiadas. De inteligência bem formada e culto, foi professor do ensino secundário no Externato Cardeal Saraiva, em Ponte de Lima. Tem colaborado na imprensa, devendo-se-lhe duas exposições de arte e o contributo para vários estudos arqueológicos”.
Data de 1971 o início da sua participação nas festas concelhia de Ponte de Lima como membro da Comissão Organizadora das Feiras Novas, cujo principal contributo foi a organização dos Cortejos Históricos, que, sob a sua orientação, se tornaram conhecidos pela sua beleza como espectáculo, pela alegria da concepção, pela fidelidade do guião histórico, para o qual no início tivemos o prazer de dar o nosso contributo, pelo rigor dos trajes e pela adequação dos figurantes ao carácter dos personagens que representavam.
A orientação anteriormente imprimida à sua actividade continuava presente quando, em 1972, foi transferido para a freguesia de Nogueira, berço de gente de palmarés em diversas áreas de actividade, no mundo civil e eclesiástico, e muito conhecida no exterior devido à interessante igreja românica de S. Cláudio, localizada no extremo sul da paróquia, exemplar único no concelho de Viana do Castelo, divulgada no excelente livro de Aguiar Barreiros, Igrejas e Capela Românicas da Ribeira Lima.
À frente da paróquia de Nogueira continuaria até ao fim da sua vida activa, mesmo quando, nos últimos anos, sentindo-se inseguro, transferiu a sua residência para a vila de Ponte de Lima. Durante o ano de 1991, prestou serviço também à paróquia de Gondar, situada no concelho de Caminha. A sua disponibilidade era suficiente para dedicar uma parte do tempo ao ensino na cidade Viana do Castelo, onde leccionou disciplinas como Música, Língua Portuguesa, Geografia, Moral e Religião.
Mesmo a residir em Nogueira e no meio de outras actividades, era frequente a sua deslocação à vila de Ponte de Lima, a que nunca voltou as costas e onde a sua presença era sempre querida e estimulante.
Valorizou-se permanentemente através do estudo e da participação em múltiplas actividades. Nos tempos iniciais da sua vida activa, e correspondendo a um apelo interior que já antes sentira, frequentou, em meses de verão, com alguns amigos de Ponte de Lima e muitos outros de Braga, um curso livre de arqueologia, nas instalações da Faculdade de Filosofia, em Braga, longe andavam ainda a Universidade do Minho e a Universidade Católica. O curso, em cuja base estava o entusiasmo do saudoso Cónego Arlindo Ribeiro da Cunha, Presidente da Junta Distrital, e do Dr. Egídio Guimarães, Director da Biblioteca Pública de Braga, ambos interessados na criação de um museu que se viria a desdobrar nos actuais Museu dos Biscainhos e Museu de Arqueologia de Braga, era proficientemente orientado pelo Dr. Rigaud de Sousa. Ao curso seguiram-se as escavações arqueológicas, que eram o seu principal objectivo, em Santa Marta da Falperra e na chamada Colina de Maximinos. No curso e nas escavações, participaram muitos jovens, alguns deles futuros investigadores, professores e até docentes universitários. Lembramo-nos da vianesa Salete da Ponte, do Eduardo Oliveira e de tanto outros.
O gosto pela arqueologia por parte do P.e Manuel Dias traduzir-se-ia depois numa intensa actividade que o levou a calcorrear vezes sem conta o concelho de Ponte de Lima, e frutificou numa inventariação de ruínas e vestígios arqueológicos existentes na área do município, que se repercutiu na publicação de vários estudos da sua autoria ou de outros investigadores, incluindo professores universitários, que os utilizaram nos seus trabalhos e edições. Diga-se, aliás, que uma das boas qualidades do P.e Manuel Dias foi a generosidade com que sempre facultou aos outros o acesso aos materiais carreados pelos seus estudos e levantamentos feitos no terreno, em vários domínios, mas sobretudo nos da arqueologia, da antropologia e da etnologia. A esmo e sem critério de exclusividade, citemos conforme afloram à tona da memória: Maria de Fátima Melo, Carlos Alberto Ferreira de Almeida, C. A. Brochado de Almeida, Caroline Brettell, Manuel Vila Verde Cabral, Moisés Espírito Santo, José Rosa Araújo…
Na vila de Ponte de Lima, Manuel Gomes Dias esteve ligado à criação do Instituto Limiano – Museu dos Terceiros, como um dos mais activos membros da respectiva comissão instaladora. Depois de organizar, em 1965, uma inesquecível exposição, anterior à fundação do Instituto, subordinada ao tema Artistas Limianos - Assuntos Limianos, foi decisivo o seu contributo para diversas exposições promovidas por esta organização cultural, das quais, sem preocupação de ordem cronológica, são particularmente lembradas as seguintes: o rio Lima, a casa limiana, o linho, a feira, a arte sacra mariana… Fez parte da direcção da LIMICI – Associação de Defesa do Ambiente e do Património Cultural de Ponte de Lima. Teve um papel fundamental na organização da exposição S. Tiago nas Imagens e Caminhos do Alto Minho, apresentada no Museu Municipal de Viana do Castelo, de 10 a 31 de Julho de 1993. Refira-se a propósito que de 1979 a 1991 fez parte da Comissão Diocesana de Arte e Cultura (1979 – 1991) e em 1991 foi nomeado responsável pelo Museu Diocesano de Arte Sacra, ainda em fase de instalação, e muito havia a esperar da sua actividade se não faltassem os recursos e a doença, sempre temível, o não surpreendesse, levando-o a passar à categoria de Director Emérito em 2008.
Deu uma apreciável achega para a história do desporto em Ponte de Lima, quando presidiu com brilho à direcção do Clube Desportivo Os Limianos. Contribuiu de um modo especial para a revalorização do Caminho de Santiago no concelho de Ponte de Lima, que levou, inclusivamente à criação da Pousada para Peregrinos.
A sua vida está marcada por uma grande bonomia, dotado que é de um espírito de grande abertura a toda a espécie de pessoas, mas especialmente aos mais jovens e aos mais simples, sem qualquer espécie de exclusivismos ou de preconceitos. Em certa medida também por isso houve pessoas que não gostaram dele e até o perseguiram.
Uma das razões de alguma da má vontade de que foi vítima, e que lhe deixaram alguma amargura, esteve nas simpatias políticas que manifestou em certa fase da sua vida. Em Fevereiro de 1969, com um grupo de cidadãos pontelimenses, entre os quais se contava também o autor destas linhas, assinava um comunicado encabeçado pelo saudoso Dr. Abel Carneiro (autor da iniciativa), apelando aos cidadãos de ambos os sexos para que se inscrevessem nos cadernos eleitorais, de modo a poderem votar nas eleições para deputados que teriam lugar nesse ano. Tal acto foi visto como um sacrilégio e motivou intrigas nos meios “piedosos” e “situacionistas” da vila, com denúncias aos superiores eclesiásticos, nas quais foi injusta e especialmente visado o P.e Manuel Dias. Após o 25 de Abril de 1974, não escondeu a sua predilecção por um movimento político, o MDP-CDE, e, embora já residisse em Viana, esteve até com os representantes deste movimento numa campanha realizada em Fontão, onde foram abusivamente detidos. Essa participação, naturalmente discutível, e que lhe trouxe dissabores, deve ser avaliada num contexto em que, na sua maior parte, os párocos do concelho de Ponte de Lima exerceram de algum modo a sua influência a favor de algum dos partidos políticos.
O Centro de Estudos Regionais, prestigiada agremiação cultural com sede em Viana do Castelo mas cujo âmbito de acção abrange todo o Alto Minho, promoveu-o à categoria de Sócio de Mérito, em Assembleia Geral de 19 de Março de 2005, e, em boa hora, a Câmara de Ponte de Lima, também por unanimidade, decidiu conferir-lhe a medalha de prata de mérito cultural, com que foi agraciado em Março de 1995.
Publicou vários escritos no Arquivo do Alto Minho, no Arquivo de Ponte de Lima, na Límia e no Serão de José Rosa de Araújo, na revista Estudos Regionais, no periódico Anunciador da Feiras Novas, no semanário Cardeal Saraiva, na Coletânea de Autores Limianos Contemporâneos e no Boletim Municipal de Ponte de Lima.
De entre os títulos que publicou, respigamos os seguintes:
In: LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 30, de Dezembro de 2012
N. D.
O Padre Manuel Gomes Dias faleceu em Viana do Castelo, a 2 de Abril de 2015, com 81 anos de idade.
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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