Os ex-votos pintados constituem um dos lugares mais comoventes na arte popular religiosa. Testemunhos de uma profunda devoção e de uma crença sem limites nos poderes taumatúrgicos do Redentor, da Virgem e dos Santos, são dominados por uma esperança inabalável de homens e mulheres que, face às agruras e aos obstáculos da vida, depositaram toda a confiança nas forças transcendentais da religião, deixando-os como memória nos santuários onde presidem os mediadores do divino.
Este tipo de objecto, de indesmentível valor artístico e etnográfico, surge como um autêntico registo de fé, elemento evocador de outros tempos e personagens, apresentando-se simultaneamente enquanto documento peculiar para a apreciação do quotidiano de outrora, bem como para a análise de aspectos tão díspares como as diferentes tipologias do mobiliário doméstico ou as doenças e sintomas que de um modo mais recorrente afligiam as pessoas.
A sua disseminação pelo país, ocorrida em termos genéricos a partir do século XVIII, acompanhou a edificação de templos e capelas que se ergueram essencialmente como destinos de peregrinação. Perdidos no Alentejo profundo, sobrevivem algumas ermidas com as paredes integralmente forradas com ex-votos da mais variada natureza e materiais, desde as proverbiais figuras em cera aos painéis sobre tela, madeira, cabedal, vidro e folha de Flandres, sem esquecer os retratos possibilitados pela era da fotografia. Mais próximos de nós, bem no coração do Minho, destacam-se os santuários de Santa Maria de Porto d’Ave, no concelho da Póvoa de Lanhoso, e de Nossa Senhora da Abadia, em Amares, este último não muito afastado do mosteiro cisterciense de Santa Maria do Bouro. A existência destas duas colecções significativas de ex-votos legitimou mesmo a criação de pequenos núcleos museológicos.
O território de Ponte de Lima, não constituindo um terreno tão fértil para este género de produção, não ficou, todavia, arredado desse movimento global que varreu o país e sulcou o Atlântico até ao Brasil. O Museu dos Terceiros, a capela de São Gonçalo e o santuário do Senhor do Socorro preservam alguns exemplares.
Os seis ex-votos integrados nas colecções do Museu dos Terceiros são provenientes do mesmo templo limiano, a capela da Senhora da Lapa. Fundada na segunda metade do século XVIII, em terreno cedido pelo Visconde de Vila Nova de Cerveira, o alcaide-mor D. Tomás de Lima, estava projectada para constituir uma igreja de assinaláveis dimensões, mas acabou por ficar reduzida ao espaço da capela-mor. Ainda que duas das tábuas não possuam referenciais cronológicos, podemos concluir que foram produzidas num hiato temporal relativamente apertado. Face às datas que constam das legendas de alguns deles (1758, 1760), é de crer que nem todos os ex-votos fossem destinados inicialmente à capela da Senhora da Lapa, uma vez que esta não foi erigida antes de 1763, mas antes à capela de São Sebastião, mais tarde demolida, no interior da qual já se prestava culto a uma imagem com aquela invocação da Virgem.
Peças de acentuada índole narrativa, relatam um acontecimento concreto, recorrendo à interacção do texto com a imagem. Todos obedecem ao mesmo esquema compositivo, apresentando como elementos omnipresentes a imagem do protector, no caso a Senhora da Lapa, a imagem do miraculado, e o texto que narra o sucedido, com referências a lugares e ao tempo, isto é, a crónica da maravilha operada, o milagre que fez.
Os três espaços distintos surgem claramente demarcados. O lugar do intercessor é delimitado por nuvem, manifestação do divino. O lugar terreno do miraculado é quase sempre o interior de uma habitação, geralmente o leito onde descansa o enfermo, mas pode também não exibir referência espacial particular, aparecendo o doente simplesmente prostrado, em posição genuflexória, em gesto de oração e súplica. As legendas, sempre na parte inferior da placa, são caracterizadas por uma linguagem profundamente marcada pela oralidade, cuja decifração é frequentemente dificultada pelo uso excessivo de abreviaturas e pelo espaçamento quase inexistente entre os vocábulos. Fornecem, todavia, algumas indicações genéricas referentes a problemas de saúde que afectavam os doentes, como as paralisias ou até problemas do foro mental.
Também curioso é o único ex-voto pintado, datado de 1765, que existe na capela de São Gonçalo, em Arcozelo. A cena é situada não em qualquer aposento, mas fora, no campo. Relata o milagre que o santo operou num jovem, curando-o de uma lesão nas virilhas. O pequeno Francisco José surge ajoelhado face ao santo dominicano, que o abençoa com a mão direita. São Gonçalo pisa solo bem terreno, mas as asas de que vem graciosamente munido remetem para a corte celestial.
O santuário do Senhor do Socorro, na Labruja, guarda também alguns ex-votos pintados. Um deles, não datado, refere uma espécie de milagre partilhado pelo Senhor e por Santa Justa da Serra d’Arga, que livraram uma “freguesa” de Carreço, Lugar de Montedor, de uma “queixa grave”, não especificada. Se dar asas a grandes ilações médicas, a verdade é que este exemplar contribui, à semelhança de outro existente no mesmo templo, para atestar que o santuário era demandado por crentes de todo o território da Ribeira Lima, e não apenas do nosso concelho.
Bastante singular, na forma e no conteúdo, é um outro ex-voto deixado no santuário no século XIX. De moldura circular e com remate recortado a dourado, evoca a maravilha sucedida a 23 de Março de 1828, quando, durante a missa, caiu um raio pela torre do santuário sem que ninguém tivesse morrido, prodígio que imediatamente foi atribuído à vontade do Senhor. O quadro mostra o sacerdote e o acólito virados para o altar, enquadrado por duas jarras douradas e floridas. A representação é fechada em ambos os lados por árvores que remetem para as serranias da Labruja, sem que se estabeleça uma divisão entre o “dentro” e o “fora”. Uma forma ingénua mas eficaz de enquadrar o templo na paisagem circundante.
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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