Livro: D. António Ribeiro – Patriarca de Lisboa

 

Livro: D. António Ribeiro – Patriarca de Lisboa


 

 

A SERENA DETERMINAÇÃO



Alfredo Mendes  (*)



Numa linguagem tão límpida quanto precisa, dois consagrados jornalistas deram à estampa a vida e obra de D. António Ribeiro, Patriarca de Lisboa de 1971 a 1998, ano da sua morte. Despojado de incensadas referências e misseiras curvaturas, o livro traça, com rigor, o perfil daquele que viria a ser apóstolo da prudência e sensatez no exercício do seu magistério. Ou o tempo de mudança eclesial, política e social não requeresse adequada acção pastoral, principalmente inspirada no arejamento estimulado pelo aggiornamento do Concílio do Vaticano II.

Em Portugal, o impasse da Guerra Colonial, o Estado Novo que vai murchando e, por fim, o eclodir da Revolução dos Cravos. No virar de página, entre a crise de vocações e a crispação social, o 15º Patriarca de Lisboa, devoto do recato, haveria de pautar o seu ministério com moderação, tacto e discrição. Livre de engajamentos políticos, porém, cheio de firmeza face aos próceres do antigo regime, na fiel interpretação dos sinais dos tempos. Relativizando, sempre, o efémero, o prelado comungava da abertura ao Mundo sinalizada por João XXIII e João Paulo II.

José António Santos e Ricardo de Saavedra foram então à fala com o Patriarca de Lisboa, entrevistaram-no para o DN, o diário onde ambos trabalhavam. Depois, escarafuncharam o seu percurso, ouviram personalidades que com ele dialogaram e conviveram. Recolheram, os jornalistas, as mais variadas facetas de um pontificado iniciado aos 43 anos, quando, nomeado por Paulo VI, D. António Ribeiro sucedeu ao Cardeal Cerejeira, por quem nutria profundo respeito.

A primeira edição desse labor data de 1996 (Editorial Notícias), a segunda, revista e aumentada, acaba de conhecer a luz do dia, numa iniciativa das Edições Paulinas. É enriquecida com os testemunhos do dr. António Costa Pires, secretário particular de D. António Ribeiro, entre 1967 e 1974, no respeitante às repercussões do massacre da tropa portuguesa em solo africano.

Nascido num telúrico lugar das Terras de Basto, em 1928, o futuro Príncipe da Igreja cedo mostrou venerar a justiça e a solidariedade. Na Cidade dos Arcebispos seria expulso do seminário por contestar a má qualidade do refeiçoar, acto esse a profetizar tomadas de posição em nome da dignidade humana. Reintegrado na instituição de Braga, distinguir-se-ia nos estudos, inclusive em Roma, durante o doutoramento em Teologia.

Viaja pela Europa, lê, sublinha frases, ouve música, vai regularmente ao cinema, intervém em sínodos e conferências, trabalha no Vaticano. Conhece, em suma, mundividências, para o que lhe facilita o domínio do alemão, francês, inglês, italiano e castelhano, sem enjeitar um pouco do grego antigo.

Em Lisboa repartiria o múnus pastoral pela docência, contactos com as elites e presença regular em programas da RTP, principalmente em “Encruzilhadas da Vida”, título assaz sintomático. E daí os atritos com a censura, o finca-pé, o protesto, enfim. O governo da altura, ao vetar o seu nome para Bispo da Beira, Moçambique, prerrogativa que lhe assistia nas colónias, provoca um clima de efervescência eclesial e política, a que se seguiriam intrincadas jogadas de bastidores. A culminar distensões e imbróglios entre bispos e ministros e Santa Sé, eis a confirmação da máxima de que Deus escreve direito por linhas tortas: D. António Ribeiro acabaria por suceder ao vetusto Cardeal Cerejeira.

Em obediência aos pilares éticos, o homem da transição logo consigna, na sua carta de princípios, publicada pela Conferência Episcopal Portuguesa, a salvaguarda do bem comum. Enfatiza: “Nenhum povo sobreviverá a longo prazo, se não proceder ao reconhecimento efectivo do pluralismo legítimo”.

A um ano do 25 de Abril, D. António Ribeiro preconiza o papel decisivo dos meios de comunicação social na formação e informação da opinião pública. Que, “numa constante procura da verdade objectiva e na justa avaliação das responsabilidades sociais e morais que lhes cabem, devem reflectir o reconhecimento da liberdade de expressão das opiniões legítimas dos indivíduos e dos grupos”.

Não espanta, deste modo, a sua intransigência na libertação de sacerdotes detidos nos calabouços da PIDE, enquanto velava pelo prosseguimento do culto na capela do Rato, invadida pela polícia política após badalada vigília. De certa forma persona non grata do regime, chegou, em Roma, a encontrar-se com Mário Soares, então exilado.

O livro de José António Santos e Ricardo de Saavedra detém-se num tema escaldante, explosivo, até: o braço-de-ferro entre o Executivo liderado por Marcelo Caetano e os bispos, a propósito do massacre em Wiriyamu, a 16 de Dezembro de 1972, da responsabilidade das tropas portuguesas, na província de Tete, Moçambique. Centenas de indígenas, crianças, velhos, homens e mulheres trespassados pelas balas, corpos despedaçados, habitações queimadas. Cenário apocalíptico denunciado pelo sacerdote católico britânico Adrian Hastings na primeira página do influente The Times.

Perante o escândalo de proporções internacionais, o peremptório e virulento desmentido de Marcelo Caetano em Londres e na televisão portuguesa. Secreto e tenso, o encontro no palácio de Queluz, do presidente do Conselho de Ministros com D. António Ribeiro, Cardeal-Patriarca de Lisboa e presidente da Conferência Episcopal da Metrópole e de D. Francisco Nunes Teixeira, Bispo de Quelimane e presidente da Conferência Episcopal de Moçambique.

Revela António Costa Pires, na altura secretário particular de D. António Ribeiro e que assistiu ao frente-a-frente, que Marcelo Caetano ficou agastado quando as autoridades eclesiásticas o confrontaram com um relatório sobre os pormenores dos crimes e a identidade das vítimas. Pediram-lhe, por isso, a reposição da verdade aos ecrãs da RTP.

Retorquiu:

“Nem pensar, o presidente do Conselho não vai desdizer o que já anunciou ao Povo Português…”

Ao que D. António reagiu:

“Então, senhor presidente, de acordo com a Concordata, as Conferências Episcopais da Metrópole e de Moçambique vão esclarecer a situação, através de uma carta pastoral para ser lida pelos párocos nas homilias do próximo domingo.”

Exasperado, ameaçou o chefe do Governo:

“Mandarei prender todos os sacerdotes que leiam essa comunicação nas homilias. Termina aqui esta conversa!”

Já depois de 1974, no decorrer da ocupação da Rádio Renascença e do cerco do Patriarcado dirigiu-se ao palácio de Belém a exigir explicações ao general Otelo sobre a detenção de padres, em pleno epicentro da turbulência. De noite, foi à prisão de Caxias para visitar os clérigos presos, entretanto postos em liberdade.

Sem abdicar do seu pensamento e acção, o Patriarca do último quartel do século XX pugna contra o aborto, empenha-se no apostolado dos leigos e no posicionamento da paróquia como comunidade aberta. Preconiza o ecumenismo, o ressurgimento da pujança da Acção Católica, isenta de bolores e adaptada aos novos quotidianos, a integração das minorias e melhores condições de vida para os cidadãos. Não condescende no repúdio da idolatria do trabalho. Ouvidor e conciliador, envolve-se na renovação da Igreja, ao arrepio de traumáticas rupturas e passos demasiadamente largos.

Na entrevista concedida aos jornalistas José António Santos e Ricardo de Saavedra, sublinha D. António Ribeiro: “O actual tipo de civilização não responde a algumas necessidades essenciais da pessoa humana. As pessoas, embora tendo mais, possuindo mais, dão-se conta de que não são mais felizes.” Questionam os jornalistas:

É o retorno ao sentido do sagrado?

“Sim, também é o retorno ao sentido do sagrado, face a uma secularização por vezes excessiva. A secularização é legítima. Ninguém mais do que o cristianismo a promoveu. O Evangelho diz: «Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus».

As pessoas vivem como se Deus não existisse, embora não o neguem expressamente, diz ainda o Patriarca, entusiástico leitor de O Senhor dos Anéis, de Tolkien. Abjura o prevalecer do hedonismo, consumismo e do materialismo da vida. A Europa, acentua D. António Ribeiro, “tem de reencontrar a sua alma no progresso, no desenvolvimento, nas conquistas da ciência e da técnica, dando prioridade aos valores espirituais que lhe moldaram o ser”.

Aliciante, portanto, a leitura deste livro que desvenda a natureza e a visão de um homem de fé dotado de equilibrada maneira de ser e de estar. Um Patriarca que viveu e celebrou os dias de grandes transformações, prodigiosos e desencantadores amanheceres raiando esperanças e desesperanças. Fê-lo com simplicidade, inteligência, longe dos palcos mediáticos e dos altares das exortações bafientas.    

Sobre a mesa-de-cabeceira da clínica onde viria a falecer, no ano da Expo, em Lisboa, tinha a poesia de Manuel Alegre, Senhora das Tempestades.

 

(*) Alfredo Mendes

ALFREDO MENDES nasceu em Almendra, concelho de Vila Nova de Foz Côa, em 1956. Desde os 17 anos colaborador do JN e de diversos órgãos de comunicação social de cariz regional. Elaborou peças jornalísticas para algumas estações de rádio e para a RTP, onde comentou, em directo, nos serviços noticiosos da RTPN. Profissionalizou-se no DN em 1980. Desenvolveu activa participação nas secções de Desporto, Informação Geral, Sociedade, Política, Cultura e em suplementos de Regiões. Escreveu o que viu –Escreviveu. Sempre num estilo vivo, fascinante, em que os factos ganhavam vida própria, tendo chegado a desempenhar funções de editor-adjunto.

Autor dos seguintes livros: “Cávado-Rio Lindo” (para a empresa Águas do Cávado, SA.); “Livro de Ouro do FC do Porto” (iniciativa do DN); “Café Âncora d´ Ouro – Piolho - Um Século de Vivências” e “Porto Naçom de Falares” (ambos sob a chancela da Âncora Editora); “Almendra - Alcunhas e Falares” (editado pela Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa). Esta última obra, segundo escreveu numa crítica o notável poeta José Alberto de Oliveira, «representa um trabalho grandioso de pesquisa, que pretende contribuir para o avivar de um precioso património imaterial que não se confina, apenas, àquela região, identificando-se com a proclamação de Miguel Torga: O universal é o local sem paredes. Ao arrepio de saudosismos piegas, tal garimpar procura honrar a nossa prodigiosa cultura popular, os percursos das pessoas, as cumplicidades, os afetos, as suas vivências.»

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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