O polícia culto

O polícia culto

Crónica do jornalista Torcato Sepúlveda (1951-2008) publicada no jornal Público, de 15 de Abril de 1997, e reproduzida na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 40, de Dezembro de 2014, a propósito de uma singular passagem do Escritor Chileno Luís Sepúlveda pelo Aeroporto da Portela, em Lisboa

 

 

O ESCRITOR chileno Luís Sepúlveda não gosta de polícias. Deve explicar-se que o autor de “Mundo do Fim do Mundo” (ed. port. Asa) foi guerrilheiro no Chile, esteve preso e torturaram-no nos cárceres de Pinochet e foi activista do grupo ecologista Greenpeace. Basta de explicações. Luís Sepúlveda não gosta de polícias, pronto.

Um dia, Luís Sepúlveda desembarcou em Madrid, vindo da Alemanha. O romancista tem um ar de pugilista atarracado e os polícias do aeroporto aborreceram-no durante horas, desconfiando que ele seria um emigrante clandestino ou um traficante de droga disfarçado. Depois de uma série de telefonemas, deixaram-no em paz. Sepúlveda proferiu a sua conferência madrilena e, no dia seguinte, partiu para Lisboa, onde o esperavam na Casa Fernando Pessoa.

À chegada à Portela, dirigiu-se ao “guichet” dos cidadãos não comunitários. Sacou do passaporte e mostrou-o. O agente abriu lentamente o passaporte, folheou-o, olhou demoradamente a fotografia, encarou o sul-americano que tinha à frente com a minúcia de um cão de fila. Sepúlveda pensou que o esperava o calvário de Madrid. Engoliu invectivas contra a puta da vida, contra os países do Sul da Europa que cada vez mais se parecem com os do Norte, e contra o capitalismo internacional, até.

O agente da fronteira, tímido, ousou perguntar: «O senhor chama-se Luís Sepúlveda?» – «Sim», regougou. «O senhor é romancista?» – «Sou», replicou já um tanto amaciado. «É autor de um livro chamado “O Velho Que Lia Romances de Amor”?» – «Sou», disse já espantado. «Então, passe, seja feliz em Portugal, e escreva um livro sobre nós.»

O rebelde Luís Sepúlveda rendeu-se, e ainda hoje fala em comprar casa em Portugal e vir para cá viver. Não aceita explicações racionalistas. «Tropeçaste num polícia de excepção, nem todos são assim. Isto não é a utopia comunista.» Que não, que não, que um país no qual os polícias reconhecem os escritores estrangeiros é obrigatoriamente um país diferente.

Se não encontrar alguém mais convincente, ainda acaba por comprar casa no verde Minho ou no Algarve de cal! Se isso acontecer, agradeçam ao polícia culto.

 

P. S.  (16 de Abril de 2020)
Luís Sepúlveda (1949-2020), um dos nomes maiores da literatura latino-americana, morreu hoje em Espanha, aos 70 anos de idade, vítima da Covid-19.
Estava internado no Hospital Universitário Central de Astúrias, em Oviedo, desde o dia 27 de Fevereiro, diagnosticado com esta doença dias após ter estado em Portugal, onde participou no Festival Literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, de que era visita regular.

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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