Apresentação do livro “NARRATIVAS" DA MINHA VIDA, por João Gomes d’Abreu

 

Apresentação do livro “NARRATIVAS" DA MINHA VIDA, por João Gomes d’Abreu



João Gomes de Abreu Lima



Pediu-me o autor do livro que lhe fizesse a apresentação. Não a dele, naturalmente, que não necessita de encómios e muito menos os meus, mas a apresentação da obra que ora se publica.

Tarefa ingrata para mim, por se tratar de um tio por quem tenho uma particular relação de afecto. Terá sido também por isso que me recomendou não me referisse tanto a ele próprio e me concentrasse essencialmente no livro em si. Facilitou-me assim, a tarefa, é certo, mas uma obra é sempre indissociável de quem a produz. E, sobretudo, quando se trata da rememoração dos factos mais marcantes de uma vida e descritos na primeira pessoa.

Em conversas que tivemos, depois de redigido o texto, frisou repetidamente que não pretendera escrever as suas Memórias como, aliás, sublinha no início do livro, com o desabafo de que (e cito) “sentia um arrepio na espinha só de pensar nisso”.

Pela sua maneira de ser e pela conotação elitista que as Memórias, como género literário, geram na maioria dos leitores, bem entendo esse prurido.  E daí ter-lhes chamado Narrativas. Mas uma e outra designação – Memórias como elenco de narrativas ou Narrativas como expressão da memória – ambas se aplicam neste caso. Até porque, se na maioria dos factos o autor foi participante e deles dá conta, também acrescenta esclarecimentos adicionais, que complementam as suas vivências e retratam melhor os intervenientes.

Mas deixemos esta reflexão semântica, para nos debruçarmos sobre o conteúdo da obra.

Trata-se, portanto, de um exercício de memória, que permitiu ao Autor, Francisco de Abreu de Lima, trazer à ribalta um conjunto de situações que marcaram a sua vida familiar, social, profissional e política, descrevendo em texto descontraído, solto, pontualmente animado com um comentário irónico, os quadros da sua vida que mais o marcaram. Descrições onde vivamente transparecem sentimentos como o patriotismo, a lealdade, o afecto, a nostalgia, a desilusão ou a esperança. Mas onde exprime também a sua opinião, onde justifica uma atitude, onde adianta um conselho, onde regista informação pro memoria (ou seja, para memória futura).

Eu creio que podemos encarar o texto, estruturando-o por três grandes períodos:

  • o da sua infância e juventude, até à conclusão da vida académica;
  • o da actividade profissional como Funcionário Público, ainda no decurso do antigo regime;
  • e o da subsequente actividade, quer ainda no sector público, quer no privado, incluindo as responsabilidades que assumiu na vida política.

 

Infância e juventude

 

Comecemos então pela sua infância. Nascido em Ponte de Lima em 1930, numa família política e religiosamente conservadora e tradicionalista, que tinha no rendimento das suas propriedades agrícolas um desafogado sustento, conheceu as primeiras letras na cartilha das Irmãs do Asilo D. Maria Pia, passando depois à escola da Avenida, curiosamente um edifício que, muitos anos antes, tinha sido riscado por seu avô para o magistério primário da nossa vila. De um e outro destes estabelecimentos, recorda os nomes dos Mestres e umas histórias picarescas da meninice. O mais do tempo, passava-o com a garotada de Além da Ponte e relembra os nomes dos amigos mais chegados, alguns que eu próprio conheci bem, hoje todos eles falecidos.

Da juventude, já as lembranças são mais vivas e coloridas. As caçadas, as romarias, a verbena das Feiras Novas e as touradas preenchiam as férias, quando já o curso liceal decorria em Coimbra, onde seus pais se fixaram para acompanharem de perto o sucesso escolar dos filhos. A este propósito regista curiosos episódios, como foi o caso do Cortejo Histórico em que Ponte de Lima participou em força, por ocasião do centenário da cidade de Viana do Castelo. Corria então o ano de 1948.

Em Coimbra fez o curso liceal e a Universidade. São curiosas as referências à Mocidade Portuguesa – à Associação Académica; à boémia coimbrã e às agruras dos exames; à reverência e à irreverência aos Lentes; à amizade e à camaradagem. E menciona alguns dos seus mais dilectos companheiros, uns que se tornaram amigos para toda a vida, outros a quem a vida, na divergência dos seus percursos, se encarregou de separar.

Entre estes recorda Zeca Afonso, o icónico baladista das canções de protesto revolucionário, que por esse tempo andava ainda distante do reviralho. E se cito este nome entre tantos outros dos seus amigos é para destacar duas notas curiosas que o autor refere. A primeira é que ele e Zeca Afonso, sendo colegas no Liceu D. João III, chumbaram ambos na audição para o Orfeão. Estaria o júri atento quando assim decidiu?

A outra nota é sobre as raízes limianas do bardo. É que sua mãe era natural desta vila, filha de Domingos Cerqueira, que aqui foi Professor do Magistério Primário e autor da Cartilha Escolar, durante muitos anos livro único de primeiras letras. Uma notoriedade limiana por algum tempo, por afecto e adopção e que caiu no esquecimento da nossa terra.

E, a talhe de foice, já que o autor também se lhe refere en passant, uma outra figura que por esta época se acolheu a Ponte de Lima e aqui produziu algumas das melhores obras da sua criação artística – o grande Pintor coimbrão Fausto Gonçalves, considerado um dos grandes intérpretes dos efeitos da luz na representação impressionista.

Com a formatura conclui-se o primeiro período destas Memórias, perdão, destas Narrativas. Segue-se agora a vida activa do autor.

 

Vida profissional como Funcionário Público, no decurso do antigo regime

 

Francisco de Abreu de Lima começou a sua vida profissional no início dos Anos 60 na Junta de Colonização Interna, quando esta instituição se debruçava sobre os primeiros projectos de emparcelamento da propriedade rústica para contornar os problemas do minifúndio generalizado nas áreas de baixa de maior capacidade produtiva. Um desses emparcelamentos, que se não foi o primeiro, foi um dos primeiros, realizou-se aqui no nosso concelho em 1962, envolvendo quatro freguesias na área vestibular do ribeiro de Estorãos – Bertiandos, S. Pedro de Arcos, Moreira do Lima e Estorãos.

Recordo bem essa epopeia em que ninguém acreditava e a inauguração da obra com a presença do Engo Vasco Leónidas, então Ministro da Agricultura. E recordo, porque tinha eu 10 anos ainda malfeitos e estando em férias no Antepaço me deleitava a ver o Mestre António Melo, que mais que canteiro era um excelente escultor, a desbastar um imenso penedo posto na sua oficina da Freiria, para criar o monumento da inauguração da obra, que ainda hoje se ergue na veiga de Bertiandos. Com que pasmo assisti eu ao rasgamento da argola, sustentada pelos quatro braços que representam as freguesias envolvidas.

Foi por esta época que o Autor consolidou as suas ideias políticas. Sendo católico e monárquico por convicção, a participação frequente na tertúlia do Café Avis, que reunia diariamente nos Restauradores, foi contribuindo para ajustar uma visão conservadora e fundamentar um pensamento político de direita, revendo-se nas opções do regime e na sua doutrina ideológica. Os participantes neste cenáculo do Avis eram pessoas de origens diferenciadas, com diferentes ocupações e responsabilidades, com formações distintas e com convicções mais ou menos profundas na eficiência do aparelho do Estado. Figuras como o cineasta António Lopes Ribeiro, o pai do “Pai Tirano” e o Tenente Carvalho Branco, que recebeu na batalha do Ebro a laureada de S. Fernando, eram comensais frequentes e alguns havia também da nossa Ribeira Lima:

  • o escritor arcoense Tomaz de Figueiredo, que criou a Toca do Lobo;
  • o jornalista Amândio César, também ele dos Arcos;
  • e o grande polemista Manuel Anselmo, relacionado com Viana do Castelo, são significantes exemplos.

A propósito do Grupo do Avis, o Autor faz curiosas referências à abortada tentativa de golpe de Estado que Botelho Moniz fez em 1961 e à agitação que este acontecimento gerou no seu seio, com uma pronta manifestação de solidariedade ao general Santos Costa, que era então o esteio militar do regime.

Da Junta de Colonização, Francisco de Abreu Lima passa ao Ministério das Corporações e Previdência Social para exercer as funções de Secretário do Ministro por alguns meses, meses que haveriam, afinal, de se prolongar por 10 anos. O titular da pasta era então o Prof. Doutor José João Gonçalves de Proença, também ele desta nossa Ribeira Lima, da cidade de Viana do Castelo. Foram 10 anos de absoluta dedicação, desempenhando o cargo em acumulação com responsabilidades de topo, em diversas instituições integradas naquele e noutros Ministérios:

  • nos Serviços de Acção Social;
  • na Caixa de Previdência dos Transportes Automóveis, na dos Jornalistas e na dos Serviços Médico-Sociais do Distrito de Lisboa;
  • ou nos Serviços de Reabilitação Profissional.

O alargamento de contactos nas diversas instituições públicas e a influência que podia exercer a todos os níveis, capacitaram-no para uma resposta social a inúmeras pessoas necessitadas, sobretudo de emprego e de melhores condições de vida. Desta sua disposição e permanente atenção beneficiaram muitas pessoas de Ponte de Lima que o procuravam e pediam uma oportunidade para orientar a vida. Eu próprio, apesar de à época ser ainda muito novo, sou disso testemunha. Recordo bem as frequentes visitas ao Antepaço de jovens desempregados e de pais angustiados, quando se sabia que meu tio Francisco vinha de férias ou passar cá um fim-de-semana. Pessoas aqui presentes se lembrarão ainda disso.

Algumas narrativas do livro abordam esta causa, mas uma delas achei particularmente curiosa – a das voltas que foi necessário dar para desvalorizar as informações da PIDE sobre a conduta política de um nosso conterrâneo, que inviabilizavam uma colocação que lhe fora conseguida. Acabou por ser colocado e só depois do 25 de Abril se soube que a PIDE, afinal, lá teria as suas razões.

Curiosas também são as descrições das visitas de Estado em que ele, Autor, tomou parte, quer ao Ultramar e Ilhas, quer ao estrangeiro, onde não raras vezes se cruzava com patrícios seus. Numa delas, pela responsabilidade que lhe cabia na eficiência da logística, foi necessário ter sob rédea curta um rapaz de 17 anos, filho de uma das altas individualidades que integravam a comitiva. O rapaz, extremamente comunicativo e curioso, era um desassossego. Era e ainda hoje o é. Chamava-se Marcelo Rebelo de Sousa.

Com as atribulações do movimento estudantil que se seguiu ao Maio de 68 e que punham em causa o regime e a guerra no Ultramar, deu-se em 1972 o caso lamentável da morte do estudante Ribeiro Santos, num anfiteatro da Faculdade  de Economia da Universidade de Lisboa, que gerou uma greve geral dos estudantes e a convocação de manifestações subversivas que se estenderam a todas as academias.

Na sequência deste movimento, o Ministro Veiga Simão convidou o Prof. Gonçalves Proença para Director daquela Faculdade, com o objectivo de apaziguar os ânimos e de reabrir as aulas em condições de normalidade. Criou para isso o lugar de Secretário-Geral daquela instituição, que foi preenchido pelo seu antigo Secretário Francisco de Abreu de Lima.

Recordo também esta época, porque a vivi intensamente como estudante de engenharia no Instituto Superior Técnico, com a massa estudantil dividida em posições extremadas. E recordo particularmente, o que me contava então o Autor do livro, quando foi surpreendido, durante a realização de umas obras de demolição de uma parede, para alargamento de uma sala, ter surgido por trás um espaço escondido que era, nem mais nem menos, que uma tipografia clandestina de um movimento comunista.

São muitas e interessantes as narrativas do Autor, de momentos únicos que viveu no decurso da sua actividade pública. Mas creio que o ponto alto da sua carreira profissional no Estado foi o convite do Presidente Salazar para seu Secretário, posto que, por incompatibilidade de funções, não as pudesse vir a exercer, com grande pena sua, dada a enorme admiração que tinha pelo Presidente do Conselho. Por isso mesmo, descreve circunstanciadamente os 4 encontros que teve com Salazar e para melhor ilustrar a sua personalidade, acrescenta algumas histórias com ele relacionadas que iam acontecendo e se contavam nos corredores do Ministério.

Quando o seu percurso de alto funcionário atingia já os escalões mais elevados, um acontecimento, de alguma forma inesperado, alterou radicalmente os seus projectos de vida e pôs em causa a esperança que tinha na continuidade dos valores morais e doutrinários que perfilhava. Como conta no livro, teve dele conhecimento às 4 horas da manhã daquele dia 25 de Abril de 1974. O que se lhe seguiu e que profundamente o afectou, deu corpo às histórias que encerram o segundo período das sua Narrativas.

 

Subsequente actividade no sector público e no privado, incluindo responsabilidades na vida política

 

O terceiro e último período do livro que, como digo, corresponde apenas ao meu entendimento abstracto da obra, inicia-se com o esforço que Francisco de Abreu de Lima fez para combater os excessos daqueles anos loucos que se seguiram à revolução e manter o seu equilíbrio emocional. O saneamento arbitrário das suas ocupações profissionais, as perseguições de que eram vítimas tantos amigos seus, a subversão dos valores em que acreditava e o descalabro da integridade nacional, são as questões de fundo das narrativas que abrangem aquela fase da sua vida.

Depois de uma curta passagem pela SAPEC, onde exerceu o cargo de Director administrativo e de relações públicas da empresa, enveredou na vida política. Não estava comprometido com partido algum quando surgiu o convite da Comissão Concelhia do CDS para encabeçar a lista concorrente às eleições autárquicas de 1985. O primeiro impulso foi de recusa, mas a insistência convenceu-o. Aceitou, na condição de se manter independente, sem compromissos partidários. Ganhou a Câmara de Ponte de Lima e geriu-a até 1990.

No livro, desabafa sobre o que considera os seus sucessos e insucessos na gestão autárquica:

  • Tomou a peito concretizar uma homenagem digna aos militares limianos que morreram na defesa do Ultramar Português. Iniciou o processo e criou as condições que permitiriam a sua concretização em mandato posterior;
  • Tentou trazer para Ponte de Lima a estátua de Norton de Matos, que tinha sido apeada em Nova Lisboa e despejada num armazém local. Fez contactos ao mais alto nível, sensibilizou as autoridades e se não conseguiu que a estátua viesse, facilitou pelo menos as diligências da família do General para que ela fosse recolocada em local digno, na cidade que tinha fundado em Angola;
  • Para disciplinar a construção e evitar a destruição da paisagem e do património edificado conseguiu, remando contra a maré, a aprovação de medidas regulamentares apropriadas, que ainda hoje estão em vigor;
  • E neste propósito, ainda que prevenido do custo político da decisão, impôs a eliminação do trânsito na ponte velha. E Ponte de Lima ganhou com isso a sua imagem de marca.

Em complemento das narrativas, o autor apresenta diversas personagens com quem se relacionou ao longo da sua vida – algumas, sobejamente conhecidas, outras menos, mas todas elas interessantes e que lhe permitiram redigir histórias curiosas. Por exemplo:

  • o Príncipe Radziwll, cunhado do Presidente Kennedy, que veio a Portugal lançar um projecto de habitação social;
  • o advogado Jean-Louis Tixier-Vignancourt, que também aqui esteve para provar a legitimidade de uma pretensa filha natural d’El-Rei D. Carlos;
  • José Solíz Ruiz, Secretário Geral do Movimiento;
  • Antoine Pinay, Primeiro Ministro de França e Presidente do Comité Internacional para a Defesa da Civilização Cristã;
  • o Tenente-Coronel Tejero de Molina, que encabeçou a tentativa de golpe de Estado na Espanha pós-franquista;
  • ou o Coronel Gilberto Santos e Castro, que isolou Luanda e tentou impedir a tomada do poder pelo MPLA.

São estas algumas das personagens que, quem ler o texto, melhor conhecerá.

Em suma e de forma abreviada, é o que posso dizer sobre a estrutura e a organização deste livro. Sobre o conteúdo, muito mais haveria a dizer, mas o leitor achará, narrativa a narrativa, descrições interessantes e depoimentos ricos de pormenores sobre a história recente da nossa terra e do nosso país. Por isso mesmo, considero-o, como disse no início desta apresentação, um importante repositório de informação útil para memória futura. Informação recolhida por quem esteve em cena e conheceu bem os bastidores do palanque – testemunhos vivos de um homem sério, instruído e bem formado.

Interpretando o sentimento de todos os que aqui estão presentes, estou certo disso, deixo ao Autor, Dr. Francisco de Abreu de Lima, meu caro Tio, um abraço de parabéns e um sincero agradecimento pelo livro que nos oferece.

Ponte de Lima, 21 de Setembro de 2018

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

Sugestões