Ricardo de Saavedra é um jornalista de créditos mais que firmados, e para além da ficção, poesia, biografia, jornalismo de investigação e outros, de que destaco um livro contendo uma extensa entrevista sobre o Dalai-Lama, que li com enorme prazer, sobre o qual na altura, por impulso, escrevi, e hoje repetiria, o livro recentemente reeditado sobre o cardeal D. António Ribeiro, das edições Paulistas, trabalho feito em parceria com José António Santos, não deixou de me surpreender. Por ignorância minha, verifico agora, pois, entretanto, li o livro. E também sobre este não resisti a escrever.
Por conhecer a grande imparcialidade de Ricardo de Saavedra sem atender a influências, unanimidades, tendências, modas ou simpatias, por um lado, e ao seu extraordinário “faro” jornalístico, por outro, tive a certeza que algo de interessante e para mim novo, iria encontrar, o que se confirmou e mudou a minha opinião sobre esta figura.
Fiquei a saber que este cardeal, ainda no Seminário, e pertencendo ao coro do Seminário de Braga, esteve na origem de uma greve de silêncio como protesto face à deficiente alimentação que lhes era fornecida. Quando questionado o grupo pelo director, foi o primeiro a assumir-se como responsável pela decisão. Isso valeu-lhe a expulsão, mas o facto de ser um aluno brilhante fez com que tivesse sido readmitido. Outro seminarista que na altura assumiu idêntica responsabilidade, sendo igualmente expulso, foi o vianense Abílio Lima de Carvalho, que depois deixaria para sempre o seu nome ligado ao ensino superior em cidades de Angola, Lisboa, Braga e sobretudo nas terras da sua Ribeira Lima.
Mais tarde, já formado, e tendo um programa de televisão semanal, António Ribeiro foi impedido pela censura, no final do ano de 64, de falar sobre um dado tema relacionado com Bombaim, por Portugal estar de relações cortadas com a Índia, o que valeu nova greve de silêncio, neste caso do programa, que não fez durante várias semanas.
Não tendo um perfil revolucionário ou claramente rebelde, ao contrário de alguns outros bispos que com suas públicas posições corajosas e críticas ganharam a admiração da população, antes sendo um homem de consenso, diplomacia e moderação, nem por isso deixou de obedecer preferencialmente à sua consciência, sempre que a questão se lhe pôs. Como acabámos de ver, desde muito cedo.
Mais tarde, o Papa Paulo VI nomeia-o Bispo da Beira, o que é vetado pelo governo português, um veto passível de acontecer, mas sem precedentes. Desde muito cedo se mostrou persona non grata, e este gesto governamental cria um ambiente tenso entre Portugal e o Vaticano.
Muito eloquente é o documento que constitui a sua carta de princípios, tanto mais se tivermos em conta que a revolução, nesta data, ainda fazia parte do futuro. Aí se defende «o pluralismo das opções políticas» e relativamente à comunicação social, o «reconhecimento da liberdade de expressão das opiniões legítimas dos indivíduos e dos grupos».
Aquando do episódio da capela do Rato, ordenou, contrariando a decisão da polícia, que fossem celebradas as missas no dia seguinte, e tendo dois padres sido presos, postou-se à porta das instalações da PIDE/DGS e não saiu de lá enquanto estes não foram libertados. Apesar das pressões da Assembleia Nacional e do governo de Marcelo Caetano para que os cristãos fossem punidos e a capela fechada, por decisão sua nada disso aconteceu, a capela continuou aberta, e os presbíteros que dirigiam o culto mantiveram-se no seu lugar.
Entretanto, encontrou-se secretamente com Mário Soares, que afirma, em declaração neste livro, estar persuadido que D. António era uma das personalidades sob vigilância e não seria, certamente, persona grata.
Outros episódios no livro relatados poderiam ser contados a confirmar a sua determinação, coragem e isenção, nomeadamente um importante conflito com Marcelo Caetano a propósito do branqueamento do governo sobre o massacre de Wiriyamu, em Moçambique, em 72, perpetrado por tropas portuguesas, chegando a ameaçar com uma comunicação lida nas homilias em todas as igrejas portuguesas, se não houvesse um esclarecimento no sentido da reposição da verdade dos factos, mas limito-me, para concluir, a nomear algumas personalidades que no livro dedicam amáveis palavras ao cardeal, relativamente à sua verticalidade e defesa dos direitos fundamentais, como Adriano Moreira, Sousa Franco, António Guterres, Mário Soares, Jorge Sampaio. A extensa entrevista não deixa de fora assuntos polémicos, e pinta um retrato profundo de um homem inteligente e sereno que não evita temas difíceis. Talvez o engenho de quem entrevistou tenha ajudado o propósito.
O que me interessou, sobretudo, neste livro, foi a arte de mostrar o labor oculto de alguém com uma posição proeminente, mostrar como um homem da Igreja, defensor da separação das instituições, consegue, sem deixar de cumprir o que sente como o seu dever para com a Instituição que representa, pôr os pontos nos iis relativamente ao que considera socialmente intolerável, sem grande espavento, mas com firmeza. Estou à vontade para o expressar, porque a educação que recebi me manteve à parte e crítica em relação às religiões, mas isso não me impede de reconhecer quando alguém tem um comportamento decente, ainda que condicionado pelas organizações, como é o caso, como não me impede de admirar alguém como S. Francisco, que por fidelidade a princípios, origens e ética põe tudo em causa, nomeadamente o seu próprio conforto e segurança. São duas formas de estar. Da primeira não reza muito a história, outras há de que a história, pelos piores motivos reza. Por isso é importante este trabalho de Ricardo de Saavedra e José António Santos, mostrando, sem preconceitos, como a inteireza pode ser discreta e a dignidade silenciosa.
Agosto de 2021
(*) Risoleta C. Pinto Pedro
RISOLETA C. PINTO PEDRO é escritora nas áreas do romance, novela, conto, poesia, teatro, crónica periodística e radiofónica (Antena 2), ensaio, cantata, ópera, musical, canção, dança, conto infantil e BD, tendo-lhe sido atribuídos prémios literários a: "A Criança Suspensa", Prémio Ferreira de Castro e "O Aniversário", Prémio Revelação APE/IPBL. Duas vezes premiada na poesia pela Sociedade de Língua Portuguesa. Mais de vinte obras publicadas em várias editoras, sem contar as parcerias, revistas, catálogos, manuais e colectâneas. Foi professora de literatura em várias escolas, nomeadamente a Secundária Artística António Arroio.
Publicou, sob a chancela da Zéfiro, “A Literatura de Agostinho da Silva, Essa Alegre Inquietação” e “António Telmo – Literatura e Iniciação".
Pelas Edições Sem Nome saíram, recentemente, dois livros de poesia e uma novela, "A Vontade de Alão".
Faz parte do Projecto António Telmo. Vida e Obra (PAT.VO), sobre cuja obra tem escrito, assim como tem feito conferências sobre este filósofo e ainda Fernando Pessoa, Agostinho da Silva, Sebastião da Gama e outros escritores, personalidades e temas.
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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