Itinerário Inédito do Séc.º XVIII dum Caminho de Santiago, com passagem por Ponte de Lima

 

Itinerário Inédito do Séc.º XVIII dum Caminho de Santiago, com passagem por Ponte de Lima



João Alarcão Carvalho Branco
Irmandade de Peregrinos a Santiago por Terras de Basto



O documento que a seguir se transcreve relata a peregrinação a Santiago de Compostela efectuada em 1723 por João Monteiro Valente da Silva, Senhor da Casa de Telhe, em Soalhães, Marco de Canavezes que dela saiu em Julho desse ano. Do caminho percorrido, a que mais adiante nos referiremos em pormenor, deixou uma relação que, no entanto, só terá sido escrita por volta de 1746, data que apôs no frontispício da obra que deixou manuscrita e a que chamou “Jardim de Apollo para tardes de verão…”.

Trata-se de um grosso volume, em papel, de cerca de 867 folhas numeradas e mais 22 em branco e com índices, com uma encadernação setecentista em inteira de pele.

O conteúdo temático é semelhante a tantas outras obras do género dos séc.ºs XVII e XVIII. Memorialistas, nelas deixavam os seus autores manuscritas notícias singulares, receitas, orações, episódios históricos, apontamentos genealógicos, etc.

Essas miscelâneas, pela diversidade de temas que abrangiam, como tal nunca muito aprofundados, se nunca parecem ter merecido dos historiadores uma especial atenção, constituíram ao longo dos séculos um repositório de tradições, locais ou nacionais, que serviam de base à educação e erudição familiares. E são hoje vistas como contendo elementos da maior relevância para um mais completo esclarecimento de episódios históricos muitas vezes vividos e testemunhados por quem os escrevia.

Foi uma destas miscelâneas que o Senhor da Casa de Telhe deixou manuscrita. E é, como as outras, muito rica em informações históricas de bastante interesse.

Uma, no entanto, se destaca. Pela profusão de informações directamente recolhidas, e aqui prestadas, por João Monteiro Valente sobre um dos Itinerários portugueses de peregrinação a Santiago de Compostela. E porque no seu conjunto, isto é, na descrição de um trajecto completo de ida e vinda a Santiago, se trata do mais antigo destes testemunhos deixado por um peregrino português.

Efectivamente, as informações que aos nossos dias chegaram de peregrinações feitas por portugueses são menções insertas em crónicas ou obras biográficas. Como é o caso das empreendidas por alguns dos nossos soberanos, com destaque para as que realizaram a Rainha Santa Isabel em 1325 e El-Rei D. Manuel I em 1502.

Mas, a nível de definição de itinerários, os dados históricos destas retirados ou as tradições mantidas em determinadas terras atestando a passagem dessas personagens, são pouco relevantes para a definição dos itinerários de peregrinação. São meros afloramentos a locais atravessados por esses ou outros importantes peregrinos, e ainda que deixem adivinhar que era por eles que teriam passado outros devotos, anónimos, a caminho de Compostela, não nos ajudam, no entanto, por serem pontos isolados, a definir o traçado completo.

Os relatos mais completos são os de estrangeiros, que, talvez por fazerem parte de trajectos mais extensos e aventurosos, pretendiam não só pôr em destaque a grandeza e sacrifício do peregrino, ou o seu espírito de cavalaria, como também fornecer a futuros peregrinos indicações úteis sobre os melhores itinerários a percorrer. Vontade esta, nascida no séc.º XII com a obra atribuída a Aimery Picau, Liber Sancti Jacobi, o V que compõe o Códex Calixtinus, conservado na catedral de Compostela.

Tais relatos de estrangeiros deixam também muitas dúvidas quanto ás exactas vias porque eles seguiram entre as Vilas ou Cidades que atravessaram, já que nas suas descrições apenas se referem ás localidades principais, ás quais, aliás, muitas vezes adulteram os nomes ao fazer a transcrição da fonética portuguesa para a grafia da sua língua de origem ou para latim, de onde muitas vezes são, posteriormente retrovertidas por investigadores, igualmente estrangeiros.

Adulterações que se acentuam quando sabemos que muitas das informações recolhidas, escritas em apontamentos avulsos, ou, pior, conservadas na memória, apenas são ordenadamente transcritas anos ou até décadas depois dos relatores terem efectuado a peregrinação.

Para já não falar de outro tipo de razões ocasionais que, eventualmente determinavam a passagem desses peregrinos por umas e não outras localidades. Como sejam razões de segurança, motivadas pelos inúmeros conflitos armados que assolaram a península e que eles procuravam contornar, ou razões de cariz diplomático que os levariam a demandar as cidades em que os monarcas se encontravam á época. Como sucedeu em 1465 com Iaroslav Lev Rosmithal, Barão de Blatna, que, entrando por Torre de Moncorvo, atravessou o Alvão e as Terras de Basto, para, a caminho de Santiago, atingir Braga onde nessa altura se encontrava D. Afonso V para quem trazia cartas da Imperatriz da Alemanha, irmã desse nosso soberano.

Por outro lado, a generalidade desses relatos sendo, repita-se, de peregrinos célebres, de grandes personagens que vinham da restante Europa para Compostela, começavam em Lisboa, pois sendo aí que estava a Corte era para aí que se dirigiam primordialmente. Para iniciar a peregrinação, como sucedeu em 1581 com o embaixador veneziano Bartolomé Bourdelot, em 1594 com Giovanni Batista Confalonieri, Colector do Papa Clemente VII, em Lisboa, em 1669 com Cosme III de Médicis, Príncipe da Toscana, em 1691 com o sacerdote bolonhês Domenico Laffi, ou para terminar a peregrinação com uma viagem de aventura e conhecimento como em 1457 Georg von Ehingen, da Baviera, ou em 1743 o napolitano Nicola Albani, que permancendo em Lisboa até 1745, volta nesse ano a Santiago por ser Ano Jacobeu.

Dado este condicionamento, relacionado com a cidade capital de Portugal, o itinerário que a generalidade dos peregrinos estrangeiros deixa descrito é, com algumas variantes, muito semelhante.

Variantes que acentuam as dúvidas a que atrás aludimos, relacionadas com os extensos intervalos entre as localidades deixados por alguns dos autores que deixam em aberto a possibilidade de esses trajectos poderem ter sido feitos por diferentes vias alternativas. E nesses casos é frequente encontrarmos nos estudos dos investigadores contemporâneos elementos fortemente probabilísticos. Razoáveis, aceitáveis, mas probabilísticos. Nos quais se diz, referindo-se á ligação entre essas localidades: Daqui para tal terra terão ido pela estrada tal, pelo caminho tal, atravessando na ponte de tal. Afirmações certamente respeitáveis, muito prováveis, mas não seguras. Por não estarem escudadas nos relatos dos seus autores.

Aliás, dúvidas essas que, mesmo no pormenorizado relato do Caminho para Santiago que faz o Senhor da Casa de Telhe ele deixa em aberto. Não nos dizendo, por exemplo, por quais das vias possíveis seguiu de Ponte da Barca para os Arcos de Valdevez e daí para Monção, ou já na Galiza, no troço entre Salvaterra do Miño e Porriño.

Um outro aspecto a ter em conta, e que no relato que se reproduz também se verifica, é que o caminho de regresso dos peregrinos não era quase nunca o mesmo que seguiam para atingir Santiago de Compostela. Poderíamos dizer que se o itinerário de ida é, primordialmente religioso, com uma marcada preocupação de passar por Santuários e locais de culto onde existiam relíquias, que determinam muitas vezes desvios acentuados a vias mais rápidas ou seguras, o de regresso já é determinado por outras razões. Razões que hoje poderíamos chamar turístico-culturais, a fim de visitarem terras e lugares celebrados mas desconhecidos, ou mesmo acederem a um mais rápido transporte marítimo. 

Muito mais havia a dizer sobre o manuscrito que a seguir se reproduz, analisado nos diferentes aspectos que a sua natureza jacobeia permite e impõe. No entanto, dada a exiguidade de espaço, mais do que compreensível numa publicação periódica, limitamo-nos a aflorar e destacar estes aspectos no contexto geral dos Relatos de peregrinações por itinerários portugueses a Caminho de Santiago de Compostela.

 

O Autor

 

João Monteiro Valente da Silva, foi Senhor da casa de Telhe, em Soalhães, Marco de Canavezes, onde nasceu a 25.2.1696, filho de Domingos Monteiro Teixeira e de sua mulher D. Páscoa Valente da Silva.

A 14.7.1732, já depois, portanto, de empreender a sua peregrinação a Compostela, casou com D. Antónia Maria de Noronha, filha de João Cabral de Azevedo Pinto e de sua mulher D. Jerónima de Noronha e Menezes.

De entre os seus filhos, apenas teve sucessão a sua filha mais velha D. Antónia Teresa Joana de Noronha e Menezes, nascida a 12.6.1733 na casa de Telhe, de que veio a ser herdeira, que casou, a 25.3.1752, com José Soares da Mota Pereira Vieira Carneiro, Senhor da vizinha grande Casa de Quintã, filho do Dr Bento Soares da Mota, Sr da dita casa e de sua mulher D. Catarina Josefa Carneiro de Magalhães, herdeiro da casa dos Carneiros, da de Rio de Galinhas, etc.

Todas estas Casas vieram a ser herdadas pelo filho destes casal e neto do autor do manuscrito, António de Vasconcellos Pereira Vieira Carneiro (1755-1823) que casou na Igreja de Constance, Marco de Canavezes, com D. Angélica Amália de Magalhães e Menezes, da Casa da Torre de Vila Cova da Lixa.

Destes foi bisneto paterno Pedro de Vasconcellos Vieira da Mota (1896-1969), Senhor das Casas de Quintã e de Telhe, em Soalhães, das dos Carneiros e de Rio de Galinhas, etc, todas em Marco de Canavezes, que casou a 11.8.1910 no Porto com D. Carlota de Sousa Cyrne Guedes Infante de Almada e Lancastre, do Paço de Guminhães, que entre outras filhas tiveram D. Maria Luísa da Anunciação Cyrne de Vasconcellos (1916 – 2000) casada com o General António Maria Malheiro Reymão Nogueira, Visconde de Mozelos, dos quais foi neto paterno António Maria da Costa Lobo Reymão Nogueira, Visconde de Mozellos, herdeiro das Casas de Quintã e de Telhe, casado com D. Joana Maria de Barros Alarcão de Carvalho Branco, e actual possuidor deste manuscrito.  

 

O manuscrito e o seu conteúdo

 

Acentuem-se, por último, alguns aspectos extraídos do manuscrito.

O autor faz a peregrinação, no Ano Jacobeu de 1723, escolhendo o Dia de Santiago para sair de sua Casa e não para chegar a Compostela.

O percurso fá-lo em constante espírito de Romaria, termo que usa com frequência para aludir ás visitas que faz para se dirigir a Santuários e outros locais de culto ou de existência de relíquias, e que constituem desvios a vias mais directas e menos acidentadas. O que fortalece a ideia de que de entre as razões para a definição dos itinerários, vias directas, seguras, locais de abrigo, pontes para cruzar os rios, e santuários, estas duas últimas seriam as que mais contribuíam para as opções a tomar.

Descontadas algumas imprecisões históricas, é de notar a atenção dedicada pelo autor ao património arquitectónico religoso e ao paisagístico que vai encontrando ao longo do Caminho. E mesmo aos festejos populares quando faz menção das Festas do Cavalo nos Arcos de Valdevez e das Gualterianas em Guimarães.

Curiosas ainda as notas gastronómicas pondo em destaque tanto o peixe e os pastéis ( Empanadas) de Ponte Vedra, como as laranjas oferecidas pelas Freiras de Redondela e a retribuição dos biscoitos que o autor e levava, como a excelência da estalagem de Ponte de Lima onde comeram.

De notar, por último, o Picaresco no Caminho a que tantos autores se referem. Também João Monteiro Valente com os seus 27 anos aparenta não ter ficado incólume á beleza duma rapariga que não duvidava fazernos companhia que hera de apettecer pela sua bizarria…  

 

Resumo do Caminho percorrido

 

O Caminho percorrido pelo autor do manuscrito, desde Soalhães, Marco de Canavezes teve, pois, as seguintes jornadas:

 

Itinerário de ida:

1.º Dia: de Marco de Canavezes a Várzea do Marão (hoje Aboadela) e a Amarante; 2.º Dia: Daí à Lixa, ao Rio de Pombeiro, à Penha e a Guimarães; 3.º Dia: Daí à Serra da Falperra e a Braga, e de Braga ao Rio Prado, por Vau do Bico, e a Ponte da Barca; 4.º Dia: Daí a Arcos de Valdevez e Aboim das Chossas; 5.º Dia: Daí a Monção (sem mencionar porque pontos passaram); 6.º Dia: Daí por Salvaterra do Miño, já na Galiza, até Porrinho (de onde seguiram o principal Caminho Português que aqui conflui desde Valença ou La Guardia); 7.º Dia: Daí a Redondela; 8.º Dia: Daí a Pontevedra e Caldas de Reys; 9.º Dia: Daí a Padrón; 10.º Dia: Daí ao Milladouro; 11.º Dia: Daí a Santiago de Compostela ( Onde chegaram ás 8 da manhã de Sábado); 12.º Dia, Domingo, permaneceram em Santiago.

 

Itinerário de volta:

13.º Dia, Segunda Feira: De Santiago a Padrón; 14.º Dia: Daí a Pontevedra; 15.º Dia: Daí a Redondela; 16.º Dia: Daí a Piñeiro (Tuy); 17.º Dia: Daí a Valença e a Coura; 18.º Dia: Daí a Ponte de Lima e a Prado; 19.º Dia: Daí a Braga e a Guimarães; 20.º Dia: Daí a Amarante (1); 21.º Dia: Daí á casa de Telhe, em Soalhães, onde chegaram ao meio dia.

 

BREVE ITTENERARIO COM O COAL SE DA RELASAM DA VIAGEM QUE FIZEMOS EM ROMARIA A VIZITTAR O CORPO DO GLORIOZO APPOSTTOLO SANTTYAGO Á CIDADE DE COMPOSTTELLA, NO REYNO DE GALIZA, NO ANNO DE 1723.

 

Resolvidos pois em ir vizitar o corpo do gloriozo Appostolo S. Tyago, por ser estte anno o dos perdois, e por Anttonomazia divino, preparamos besta para o fatto e dois mossos para o nosso serviço.

E com o nosso Bordam na mão como he costume, feito o preparo da consciência naquela forma que pode um pecador grande, e para huã jornada dilattada, na forssa dos maiores calores coando o Sol no seu Zénite costuma empregar os seus rayos nos caminhantes que lhe não podem rezesttir, demos principio a peregrinação saindo de nossa no dia 25 de Julho pelas 7 horas da manhã; e pelas 9 chegámos á Quinta da Ribeira cittuada ao pé da Igreja de Várzea nas amenas margens do Rio de Ovelha que com sua delicioza correntte já detendo o cristalino aljôfar de suas águas em saudozos meandros para recrearnos já movendose com impetuozo ruído a procurar seu ocaso nas aguas do grande Tamaga onde, perdendo o seu nome, entra desconhecido a povoar as auríferas desse Douro e ao depois a pagar seu tributo ao grande Oceano.

Nestta amenidade, pois, pasamos o maior rigor do sol, e pelas 5 da ttarde nos pozemos ao caminho e chegando ao Convento de S. Gonçalo lhe pedimos quizesse interceder  por nós a Maria Santíssima para que nos alcansase feliz sucesso nestta derrota;

Na manham seguinte, 26, fomos continuando nossa viagem, pasando pela Vila da Lixa, fomos fazer Romaria, e ouvir Missa á Capella de S.tª Quitteria em cujo cittio tomamos alguã refeisam para o caminho e vendo com miudeza a nobre fabrica do seu sunttuozo edeficio, desemos costa abaixo emtte o Rio de Pombeiro(2) onde descansamos. E passando os mais calores do sol que sobido no zenit mayor deste dia do céu colhe ttam vigorozos rayos contra os caminhantes que ttopava que so lhes rezestiam bem aqueles que como nós se abrigavam debaixo das copas das arvores de que aquela amena e fresca ribeira he povoada servindonos desses cassifos para nosso repouzo a inmensidade de cheirosas flores que aly se achavam com sua fragrância, e os ruisenores com sua Melodia nos suspendiam os senttidos de tall sortte que coázi enagenados vierão a cahir em hum suave sonno. Acabado o coal nos levanttamos e proseguindo nosa viagem ttopamos a Ermida de Nª Srª da Penha de Fransa em a coal fizemos orasam e lhe pedimos o seu amparo para a jornada. E descobrindo daquy a nobre Vila de Guimarães tam soberana pelas coalidades do seu bom terreno, bom ttemperamento e benigna influencia do seu ceo como por não saber dar ventagens a outra na Europa. E não somente antiga morada dos Reis Lusitanos mas esclarecido bersso e generoza pátria daquele Santto e Magnânimo guerreiro tterror de Mouros, asombro de Castalhanos, o grande D. Affonsso Henriques 1º Rey de Portugal.

Chegando pois á Vila fomos fazer Romaria a Stº Antonio e ver o que nele havia digno de versse. Aquy levava eu os pés tam lastimados do caminho que com lágrimas de sangue misturadas com muitas dores me obrigaram a acaricialos com muitos lavattorios mas eles queixosos pelo discosttume me obrigavam a doerme muito das suas pennas com algumas. Por estte motivo pasamos a noutte e de manhã não podendo continuar a pé me pus a cavalo e fomos pasando a Serra da Falperra almossar a Braga, fundassam dos povos Bracanos e sempre grande mayormente no tempo dos Romanos. Aly vezittamos o corpo do gloriozo São Marcos que enttão florecia em milagres e vendo o que na cidade havia digno de versse como era a Sé Arcebispal reformada de novo e ttambém o Passo do Arcebispo e seu jardim corioso e mais compostos e ligeiros fomos continuando a nossa derrotta pasando o Rio de Prado no barco de Vau de Bico e dormir á Vila da Barca e no Domingo levantandonos ouvimos missa na Misericórdia e fomos caminhando emthe a Vila dos Arcos em a coal se fazião huãs festtas de cavallo(3) ao Anjo Costtodio do Reyno(4) que era o seu dia e vendoas fomos seguindo nosso inttenerario emthe as Chossas aonde dormimos e ao depois de ter andado alguãs legoas no seguinte dia chegamos a Vila de Monsam, prasa de Armas portugueza e fazendo Romaria a huã Milagroza Imagem que resplandecia em milagres.

Esta imageem he de pedra ttosca, e jaz no frontespicio de huã arruinada igreja que algum tempo serviu de mizericordia, e querendo os devottos pinttala não admittiu ttinta mas cada vez se fez mais clara, he visittada de muito concurso da parte asim portuguesa como galega; Ttem esta prasa muittos soldados de guarnisão com seus ofeciais e governador com juis de fora. Os muros sam muy forttes e dilattados, ttem hum convento de freyras franciscanas, ao coal  fomos pedir esmolla, e dipois de comversarmos, nos deram muito perfeitas cabacas e dipois de tter visto ttudo pasamos o Minho defrontte de Salvatterra prasa castelhana frontteira á nossa e fomos dormir a Vila de Porrinho na coal não achey em que detterme; e continuando nosso caminho fomos dormir a Vila de Redondela, huas que se ttopam em Galiza com seu Convento de religiosas e portto de már porem não achamos abundância de peixe; e seguindo nosa viagem fomos dormir as Caldas de rey hum lugar arruado e muito bom cuyo nome ttem por sahir nele hum borbulham de agoa muito quente em que a gente da terra fazem suas barrellas e alguns ttomam seus banhos mas só pela manhã sedo. São bons e a ttodo o mais ttempo muy nossivos, Aquy chegamos á noutte dipois de ttermos pasado por hua grande Vila chamada Pontte Vedra coasi de ttanttos vezinhos como Guimarães e na verdade grandioza tterra e dizem que sendo do domínio de Portugal esta Vila fora trocada por Guimarães que hera do de Casttella e que em Portugal se conserva a magoa de a deixarmos neste riffam Pontte Vedra quem tte vira não tte dera; aludindo a que os Reizes de Portugal quando a trocarão a não conheciam.

Ttem ela seu brasso de mar e muitos Conventos; muy abundância de peixe e se fazem nella os melhores pastteis que vistto. E continuando o nosso giro, chegamos a Vila de Padram, que he murada e está cittuada em hum Montte; vezittamos os lugares em que o Santo Aposttulo fes a sua primeira habittassam e fizemos Romaria em hua Capela que lhe serviu de scela(5), pasando por dois buracos que esttam em hua penha por onde o Santto andou fogindo aos ttiranos que o querião mattar. Bebemos de hua milagroza fontte que ahy esttá(6), a coal brottou com pressa, ttanto que o Santto feriu a tterra com seu bordão para converter á nosa Ley hua Senhora daquela tterra. E vezittando huã Igreja dedicada ao sagrado appostolo que ahy esttá ttendo caminhado emthe aquy com a cara no Norte, a viramos agora para o Orientte esttas 4 legoas que nos resttavam da jornada, porem não podendo chegar á Cidade ficamos attras huã legoa e na manhã seguinte de 23 de Julho demos vista(7) á Cidade a coal saudamos com mil júbilos de alegria por vermos o fim á nosa peregrinasão; e o sittio aonde nos esttava em cobertto o ttezouro que procurávamos; chegamos a ella pelas 8 horas.

He Composttella huã grande cidade muy abundante de ttodos os mantimentos muy pousadas de ttodas as Ordens. Chamouse aquele campo aonde estta edeficada a cidade anttigamente campo esttrella, por rezão de huã esttrela que sempre cursava naquele desttritto aquando o sagrado Aposttolo aportou a Padram foi a que o guiou para aquele cittio como a dos Magos quando serviu de guia aos Santos Reizes emtthe Bettlem, e chamandose como dise Campo Esttrella, com o tempo e corrutto o vocabolo, se ficou chamando Compostella, o que bem se mosttra nas Armas da cidade que sam hum campo e por cima huã esttrela e a huã partte hum calis de ouro com huã hosttia meya de denttro.

Chegados pois á cidade fomos vezittar o corpo do sagrado Aposttolo, abrasando a sua imagem que estta senttado vesttido de rromeyro e pasamos pela portta dos perdois que não se abre mais do que nestte anno. Feitta Romaria, ouvindo missa e rezadas alguãs orasois e esttassois mettendo hum dedo em huã argolinha que estta na portta emquantto nela se ttem o dedo ttantos padrenosos se rezão; e avemarias valem cada hum mil. Tudo istto feito fomos procurar cómodo que pella infenitta gente não foi fácil de achar, e so a poder de pattacos se descobriu cazas, esttivemos o restante destte dia e o domingo vendo a Sé e mais Conventos da cidade que ttodo o encaresimentto fica curtto á Medida da verdade pois abaixo da Bazilica Romana dizem muittos não haver ttemplo mais Magestozzo e rico e sunpttuozo do que he a Sé, com mayor tthezouro, mayor serviço de pratta e ouro, ornamenttos coberttos de finíssima pedraria, mayor numero de serventtes, sacristtãos coreyros, cónegos, cardeais, Arcebispo, ttudo com o mayor preparo e aseyo, que se pode em grande ser; A nobre archittettura das ttorres, e grandeza dos sinos; obrou á ponta de pico nos edifícios daquela cidade tais dilicadezas que a molher mais peritta apenas poderia discursar na sua almofada. Vimos o Hospital Real(8) que he huã das grandes obras de Espanha na grandeza do edifício na conttidade das rendas, numaro de ofeciais, liberalidade para com ttodo o género de peregrinos, obra digna de seus esclarecidos Autthores os Cattolicos Reyzes D. Fernando e D. Izabel.

Em ttoda a mais cidade nottamos a grandeza e aseyo dos ttemplos e sobrettudo rouba as admirações a sacrestia dos padres Bentos que por não ter palavras com que emcaressa a sua espaciosidade, altturas, fresttas, espelhos, coadros, caixois, gavettas, ttapettes, ttudo dourado, prateado, e finalmentte goarnecido no ulttimo primor que só quem a viu pode ser ezemplo do que digo; Admiramos ttambém hua ttorre moderna, que ttem no seu Conventto os frades Dominicos na coal lansarão ttres escadas em caracol com advertimento que só a do meyo sobe asima da ttorre e as duas ficam sem sahida em cima ver a dezordenada forma dos que sabiam e não acertando com a que sobia asima ttornavam a descer abaixo, dando a emttender nestta confuzam ser semelhantte esta á ttorre de Babel.

Visttas pois as grandezas da cidade e as grandiozas festtas de ttouros e fogo, que era em forma de huã cidade a que se havia de dar fogo a seis castellos, ttudo de madeira e cobertto de estopa pinttada e oleada, com pintturas de casas, janelas, Igrejas, ttorres e ttudo mais que se requeria em huã pouvasam grande e certamente que nestte reyno me persuado não se veria outtro semelhante. No Domingo nos confesamos e comungamos para alcansar o Santo Jubileu e no outro dia voltamos caras a amada pattria e viemos dormir a Vila do Padram de que já fizemos mensam; no dia seguinte viemos dormir a Vila de Redondela, ou Pontte Vedra, e no seguinte dia viemos janttar a Vila de Redondela, e aly nos dettivemos no Convento das religiozas da Comceysam que aly há que nos hospedaram com carinho dandonos excelentes laranjas e nós a ellas dos nossos confittos, mimo português, entre ellas o mais apettecido, e sertamentte que sam as freyras de lindo aggrado, e dipois de me despedir tterno de huã menina que aly achamos que não duvidava fazernos companhia que hera de apettecer pela sua bizarria, nos parttimos e viemos dormir ao Pynheiro(9), e no dia seguinte chegamos pelas 8 horas á Cidade de Tuy; Foi estta fundada por Diomedes, famozo Cappitam grego que dipois de acabada a guerra troyana, não podendo volttar á sua pattria, por sua molher se lhe ter namorado de outrem veyo aporttar a esttas partes; e ao pé do Rio Minho fundou huã cidade a que, por memoria de seu pai Tydeu chamou Ttide, e agora corrompendoselhe o vocábulo chamase Tuy.

Ao dipois que janttamos pasamos a Valensa fortíssima Prasa darmas portugueza, bem goarnecida de muros, ttorres e soldadesca, e dahy seguindo nosa viagem, viemos dormir a Coira e gentar a boa Vila de Ponte de Lima, pequena mas aceada, com huã boa pontte sobre o rio Lima famozo e decantado rio; ttem a Vila bons ttemplos e he murada. E janttamos em hua bem aseada e primoroza estalayem e nesse dia viemos dormir a Prado, e genttar a Braga e vendo nestta cidade o que ainda nos ficou por ver, viemos nouttro dia pela manhã genttar a Guimarães e indo ao Convento de Santo António o achamos hum ceo abertto com a festa solene de S. Goalter, aonde ouvimos hum Magistral Sermão; e no outtro dia chegamos a Vila de Amarante e dormindo ahy, no outtro dia pelo meyo dia chegamos a nosso desejado Ttelhe, que dis o rifam que bom ttelhe mau ttelhe, ttornatte ao teu ttelhe. E assim finalizamos a nossa viagem com muita saúde e Félix ssusesso. Porem não será justto não darmos notta das grandiozas relíquias que há naquele Magesttozo tthezouro de S. Thyago da Galiza que sam as seguintes.

 

Segue-se um curiosíssimo, mas muito extenso rol de relíquias que existiam em 1723 na catedral de Compostela o qual, pelo seu ineditismo justifica, só por si, um estudo mais aprofundado.

 

Notas

(1)  oi mantida a grafia mas desdobradas as abreviaturas para tornar o texto mais perceptível.

(2)  O Rio Vizela, que passa junto a Pombeiro.

(3)  Estas Festas do Cavalo ainda hoje se realizam nos Arcos a 26/27 de Julho, promovidas pela Associação Nacional dos Criadores de Raça Garrana.

(4)  As festas ao Anjo Custódio do Reino, solenes e reais, foram instituídas em Portugal em 1504, por D. Manuel I, que obtivera Bula do Papa Leão X para que se realizassem no 3º Domingo de Julho.

(5)  Santiagiño do Monte.

(6)  A Fonte del Cármen na base da Igreja de Nª Srª do Carmo.

(7)  João Monteiro Valente, a exemplo do que muitos peregrinos ainda hoje fazem pernoitou no Milladouro, lugar de onde pela primeira vez se avistam as Torres da Catedral de Santiago.

(8)  Hoje o Hostal dos Reys católicos.

(9)  Piñeiro é uma paróquia do Concelho de Tomiño, a sul de Redondela e poucos km a norte de Tuy.

 

Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 20, de Dezembro de 2010

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

Sugestões