António Manuel Couto Viana: Para quem o futuro se chama esperança e para quem Portugal é eterno - entrevista publicada no jornal aRua, em 22 de Novembro de 1979
É verdadeiramente um sinal dos tempos que um nome como o de António Manuel Couto Viana possa apresentar-se ao eleitorado como candidato a deputado. Por se tratar de um poeta – de um dos maiores poetas portugueses contemporâneos? Por se tratar de um homem de teatro – a quem o teatro, como autor, actor e encenador tem absorvido a vida inteira? Certamente que não por isso. Embora ele próprio nos recorde nesta entrevista as palavras de Antero de Quental a esse respeito, a verdade é que, desde que se inventou o chamado Poder Legislativo muitos poetas e homens de teatro têm tomado assento nos Parlamentos, ou Cortes, ou Assembleias Nacionais ou da República e alguns deles com indiscutível mérito.
Esses, porém, além de poetas ou de dramaturgos, eram também políticos, políticos no sentido parlamentarista do termo. Ora António Manuel Couto Viana é e foi sempre, nesse sentido, o homem menos político do mundo. Um pouco por aristocracia de espírito, incompatível com a maior ou menor dose de vulgaridade que está implícita nos jogos da democracia parlamentar, e muito, sem dúvida, por uma profunda raiz de portuguesismo integral, que mais de século e meio volvido sobre o início do processo de estrangeiramento de Portugal subsiste na alma do nosso povo, mais temente a Deus do que aos decretos-leis, mais confiante em Nossa Senhora do que no Parlamento, mais amante da Pátria perene do que dos efémeros Governos. Quando alguém como ele se decide a aceitar uma candidatura política, isso significa, pura e simplesmente, que o que está em causa não é uma razão política, é uma razão nacional.
– E todavia – digo-lhe eu, logo a iniciar a entrevista – a designação de candidato "independente da Direita", fica-lhe a matar, fica-lhe como uma luva...
Couto Viana quer saber porquê. E eu explico-lhe:
– Porque V. foi sempre o independente por excelência, em toda a sua vida e em relação a tudo e a todos. Nunca o conheci diferente. E também sempre o conheci da Direita.
– Direita e Esquerda são palavras que me fazem lembrar António Sardinha quando falava dos mitos que nada valem referindo-se ao binómio Monarquia-República. Só há Direita em termos nacionais. Em Portugal, toda a crescente atracção que a Direita exerce resulta dela se identificar com Portugal e com as tradições portuguesas. Só assim há Direita.
– Talvez por isso mesmo, por essa preocupação tradicionalista, é que o menos que se diz das candidaturas da Direita independente é que são candidaturas saudosistas, que pretendem voltar a 24 de Abril…
Em tudo o que até hoje escrevi dei sinais claros do meu pensamento e da minha fé
– Como seria possível? Como e quando alguém pode voltar ao passado?
A ideia diverte-o. O poeta desperta nele uma imagem poética:
– Regressar à infância. Ou voltar a ter vinte anos. Ou ter vivido tempos que se não viveram. Mas isso são sonhos que toda a gente pode ter na sua vida pessoal! Na vida política, todo o saudosismo é um erro. O Manuel Maria Múrias tem posto essa questão com muita clareza e ninguém pode ter dúvidas a tal respeito. Construir o futuro é a única coisa que interessa. Foi sempre.
– E talvez – arrisco eu – ajudar um pouco a defender o que resta do passado.
– Evidentemente. A História é a vida de um povo. A vida de um povo não pode ser cortada sem deixar de ser vida. Quiseram e querem cortar a nossa. Não o consentiremos.
– E se V. for eleito…
– Desculpe. Não se trata de eu ser eleito. Trata-se de as pessoas como eu poderem afirmar agora e a partir de agora o seu protesto e a sua esperança.
– Por meios políticos?
– Por todos os meios e inclusive a política, pois assim tem que ser. "A política nunca foi muito para poetas", reconhecia Antero de Quental, desalentado, ao abandonar a presidência da Liga Patriótica do Norte – essa bem intencionada reacção ao ultimatum inglês, que os políticos logo fizeram gorar, aproveitando-se ardilosamente da juventude e ingenuidade dos promotores. Com este desabafo do "génio que era um santo" estou de acordo, se é que não vou até mais longe na afirmativa: a política não é para os poetas; eles suportam um excesso de carga idealista e envolve-os um nefelibatismo incompatível com sórdido chiqueiro onde a "grande porca" bordalesca chafurda. Quero pois dizer que, sendo eu poeta, não posso ser político. E, no meu caso pessoal, não o quero ser! Ora quem isto ouvir disto se espanta ao saber-me candidato a um posto essencialmente político. Incoerência da minha parte? Não, forçosamente.
– Creio, Couto Viana, que essa é uma posição a explicar melhor, não a mim, mas aos leitores.
– É que, embora não seja político e alimente qualquer ambição política (são outras, confesso, as minhas ambições, de ordem literária ou artística), sou, isso sim, um português patriota, de formação e convicções direitistas, segundo esta designação convencional. Desassombradamente. Sem tibiezas. Em tudo quanto até hoje escrevi dei sinais claros do meu pensamento, da minha fé nas verdades que me ensinaram a amar. Orgulho-me, em confronto com tanto oportunismo e cobardia que vi medrar desde a grande perdição do 25 de Abril, como aquele retrato de provinciano erguido por Sá de Miranda: "Homem de um só parecer/De um só rosto, uma só fé/De antes quebrar que torcer"... Esta inteireza de carácter não me medalhou com prisões, é certo, mas privou-me, em nome da liberdade, de trabalhar durante cerca de dois anos, negando-me a pena e o palco, meus únicos meios de subsistência, minha vocação e ofício.
E todavia isto – prossegue António Manuel Couto Viana - isto não era, não foi o mais insuportável. Ferida profunda, dolorosíssima, foi a de ver a minha pátria dia a dia degradada, vendida, humilhada, decepada, ao som dos gritos de triunfo da traição, do vandalismo, da mediocridade. A "descolonização exemplar" encheu-me a cabeça de brancas. A minha pátria vivia também ali, naquela terra africana, que eu conhecera, deslumbrado, que eu pude cantar em verso porque a minha alma me exigia beleza para retratar beleza. O êxodo pavoroso dos portugueses escreveu-me no sangue "Foste às praias de outrora ver partir um navio? /Vai vê-lo regressar sem glória aos aeroportos. /Antes fosse vazio e viesse vazio. /Mas nas entranhas traz cinco séculos mortos."
Entre o poeta entrevistado e o jornalista entrevistador veio pôr-se, agora, algo que a ambos distrai da entrevista, algo da angústia que ambos partilham, como se alguém tivesse entrado aqui entretanto e houvesse começado a projectar sobre a parede branca da redacção as imagens de um filme que não foi feito, o filme da "descolonização exemplar". A entrevista interrompeu-se, esquecida a sua razão de ser imediata, transformada em simples retrospectiva da tragédia que abalou Portugal. António Manuel Couto Viana recorda "a delapidação de todos os nossos bens culturais, a barbárie que assolou o nosso ensino, os autos-de-fé a Camões e a Santo António... a tudo quanto dissesse aos portugueses do seu génio e da sua glória". Por mim, limito-me a ouvi-lo, sem apontar sequer o que ele me diz e que é, afinal, o que todos nós dizemos. E, pouco a pouco, a entrevista com este candidato a deputado pela Direita Independente retorna ao ponto de partida, que é o porquê e o para quê dessa candidatura.
– Dia após dia a degradação de uma pátria que amo e que busco servir fez-me estremecer de indignação. Entretanto, durante dois anos, proibido de escrever e de representar, a "nova ordem" procurava eliminar-me, render-me pela fome, a mim que nada tenho de meu, a mim que em nada fora privilegiado pelo antigo regime, antes pelo contrário.
– Antes pelo contrário?
– Não me queixo. Registo, apenas, ter sido preterido a favor de muitos que depois se revelariam oportunistas e traidores a Portugal. Mas nem isso, nem muito menos o que depois aconteceu, me poderia impedir de continuar fiel aos meus credos. Em dada altura, com o surgimento de "a Rua", comecei a ter uma trincheira para lutar (à minha maneira e com as minhas armas...) a favor de um futuro português. Do "Nado Nada" de 1975, desesperado, passei a uma poesia onde já há relâmpagos de esperança, por que reconheço agora que nem tudo estará perdido, se alguém puser um dique a esta corrente caudalosa de desonestidade. Aceitei candidatar-me não por mim, mas pelo que isso pode significar de crença nos valores espirituais de Portugal e na coragem de os defender e salvar.
– Temo-nos esquecido até aqui de que V. é candidato pelo círculo de Viana do Castelo. E se reparássemos, agora, essa omissão, cuja culpa, aliás, é apenas minha?
– Ao escolherem-me pelo círculo de Viana do Castelo rejubilei e aterrei-me. E a minha terra, onde nasci, naquele prédio na Praça da República, que depois de 1974 foi ocupado pelo MES, enodoadas as vidraças de vermelho, cartazes maculando aquela fachada nobre a austera. Viana do Castelo é a Pátria Pequena de meu avô e de meu pai, que tanto a amaram e a serviram. Meu pai, que não tem o nome perpetuado em nenhuma rua vianesa, numa toponímia onde é insulto, além de outros, o nome de um Ramiro Correia, que uma edilidade comunista plantou e ninguém teve a coragem de varrer. Fui forçado a vender uma pequena casa em Caminha, de traçado manuelino, onde sonhara instalar um pequeno museu com os trabalhos de meu pai (todos os seus estudos artísticos sobre Viana do Castelo e a região), mas uma câmara manipulada pelos comunistas obrigou-me a vender essa casa. Fui forçado a isto para poder subsistir. Isto não é uma queixa pessoal. É só uma prova, entre muitas, do que o 25 de Abril representou e representa para a destruição cultural do distrito de Viana do Castelo. Outra prova, muito mais recente, estaria na forma como a inépcia de uma Câmara Municipal fez malograr a deslocação a Viana do Castelo da Companhia do Teatro de S. Carlos…
Não posso, não sei, nem quero fazer galopinagem
– As suas reivindicações eleitorais vão circunscrever-se ao campo cultural?
António Manuel Couto Viana, pela primeira vez em toda esta conversa, demora a sua resposta. Mas, quando responde, é terminante:
– Eu não tenho reivindicações eleitorais. Não projecto, sequer, uma campanha eleitoral. Profissionalmente, não poderia ausentar-me de Lisboa para a fazer. Materialmente, concorro pelo partido mais desfavorecido de meios financeiros e concorro como independente. Não posso, não sei, nem quero entregar-me a galopinagens, à pedincha de votos. Confio no bom senso e no patriotismo da gente da minha terra. Não peço a ninguém que vote em mim, mas peço a todos que votem naquilo que significa a minha candidatura de Independente de Direita. Tudo dito? António Manuel Couto Viana acena que sim. Mas antes que eu recolha o bloco e a esferográfica – talvez por não confiar muito na memória dos jornalistas, mesmo dos jornalistas seus amigos, o autor de "Nado Nada" conclui pelo seu punho a entrevista com estas palavras finais:
"Confio que comigo votem todos aqueles a quem repugnam a baixa política e os jogos partidários e aqueles para quem o 25 de Abril foi uma catástrofe mas também aqueles para quem o futuro se chama Esperança e para quem Portugal é eterno.
A. M. Z.
Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 38, de Junho de 2014
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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