Para celebrar condignamente o valor do sino, vou recorrer àquela glosa latina que Eça de Queiroz refere no seu romance O Crime do Padre Amaro:
“Laudo deum, populum evoco, congrego clerum, / Defunctum ploro, pestem fogo, festa decoro.”
O que quer dizer, em português:
“Louvo a Deus, chamo o povo, congrego o clero, / Choro os mortos, afugento a peste, alegro as festas.”
Passados séculos, as funções do sino continuam, praticamente, as mesmas.
Todavia, hoje, as pequenas e grandes metrópoles pouco ou nada o escutam, confundindo o seu badalar com a inumerável porção de ruídos que, dia e noite, as animam e perturbam.
É necessário o recolhimento de uma aldeia, perdida nas paisagens rústicas, para que ele se torne presente, no seu repique e no seu dobre, convidando à missa, às orações do angelus e das trindades (“Quando fecha a tenda a senhora Rosa / quando vem das sachas o senhor João” – musa de António Nobre) dos casórios e baptizados, da boa venda de rez em feira de gado, romarias de orago e falecimento de paroquiano.
Aldeia sem toque de sino é pássaro sem gorjeio, arvoredo sem rumorejar de folhas, fonte sem gorgolejos.
Meus campos do Alto Minho, chamais-me sempre à saudade, como um sino distante!
Poetas meus patrícios (evocarei alguns) não deixaram de escutar e acolher, na inspiração, a voz de um sino, vindo das torres das igrejas, capelas, ermidas, conventos, mosteiros, erguidos na altivez verde do monte, no aconchego do vale, junto à frescura de um rio remansado.
Assim os cita António Feijó em domingos de “Sol católicos, romanos”:
“Cantam os galos... Tocai sineiros!
É missa de alva, que lindo dia!
E como o rio se espreguiça entre os salgueiros
No seu lençol de areia aveludada e fria!”
Outro poeta pontelimês, António Ferreira, recorda dois deles da sua vila limiana:
“Das torres a voz feliz
estrondeia de alegria
desde o sino da Matriz
à sinetinha da Guia”.
E outro, ainda, que tão liricamente cantou o Lethes do esquecimento, que dir-se-ia haver herdado a lira de Diogo Bernardes, o poeta Teófilo Carneiro, também o inclui num soneto em que saúda, com aleluias, o Sábado de Aleluia:
“Meio dia de Abril. O Sol a pino
Abraça com volúpia a natureza...
Ouve-se rir ao longe a voz de um sino...
É mais alegre a gente portuguesa.”
Ali perto, em terras dos Arcos de Valdevez, Amândio César, ali nascido, vê a sua infância subir à torre sineira para abranger mais amplo horizonte, o deslizar manselinho do rio, outras torres e arvoredos, granitos de solares armoriados, na doçura da calma:
“Quando a gente subia à Torre
E ficava calada de espanto,
Ouvindo os sinos tilintar
E vendo o tocador
Cheio de gestos úteis
Dirigir tudo,
Como quem dirige a vida!”
Ali perto, em Viana do Castelo, Maria da Conceição Couto Viana, quadrista feliz, compara os sons do sino ao ritmo do seu coração apaixonado:
“O meu coração é um sino
Sempre, sempre, a badalar
Repica se estás presente.
Se partes, põe-se a dobrar.”
E o sobrinho, António Manuel, descreve-o num retrato comovido e exacto do compasso pascal:
“É tempo de Páscoa no Minho florido:
Já se ouvem os trinos dos sinos festeiros,
Na igreja vestida de branco vestido,
Entre o verde manso dos altos pinheiros.”
Ali perto, em Belinho, ao pé das Antas, o fecundo e admirável António Corrêa d’Oliveira, minhoto por adopção, interpreta-o numa quadra sua das mais conhecidas e belas:
“Sino, coração da aldeia.
Coração, sino da gente.
Um, a sentir quando bate.
Outro, a bater quando sente.”
E lá longe, em Lisboa, no aristocrático Largo do Chiado, ele embalou o berço de Fernando Pessoa, vindo-lhe a plangência da próxima igreja dos Mártires, em pleno Chiado, que, adulto, o autor da Mensagem lembra sensibilizado:
“Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.”
Quiçá para o escutar, em si, mais nítido e com maior prazer, o escritor genial situa-o numa aldeia (que eu desejo seja minhota!), pois só nelas o sino vibra mais alto e mais dolente.
Páscoa de 2008
Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 7, de Abril de 2008
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
Sugestões