Memorial do Coração - Biografia de António Manuel Couto Viana escrita a quatro mãos, por António Cândido Franco

 

Memorial do Coração - Biografia de António Manuel Couto Viana escrita a quatro mãos, por António Cândido Franco

Intervenção de António Cândido Franco na sessão de apresentação do livro, que teve lugar na Feira do Livro de Lisboa, em 4 de Maio de 2012



António Cândido Franco



Quero, antes de mais, agradecer ao autor presente, Ricardo de Saavedra, e à editora do livro, na pessoa da Dr.ª Lúcia Pinho Melo. Quero depois agradecer a duas pessoas que de forma especial contribuíram para a forma final deste livro, o filho do poeta António Manuel Couto Viana, Juan Soutullo, que enriqueceu o conjunto com uma preciosa iconografia, e a esposa de Ricardo de Saavedra, a Dr.ª Helena Briosa e Mota, que deu um contributo inestimável no apoio técnico e na revisão do livro, além de ter sido a voz que pela primeira vez me convidou a estar aqui presente.

Quero dizer, antes de mais, que este é um livro raro. E é um livro raro, porque, ao contrário daquilo que habitualmente acontece, tem dois autores. Temos entre nós um dos deles, Ricardo de Saavedra, mas não infelizmente o outro, António Manuel Couto Viana, entretanto falecido. De qualquer modo é um livro de autoria dupla, que não se entende sem os dois. Por isso o livro apresenta como subtítulo Conversa a Quatro Mãos.

Um livro a quatro mãos é sempre um livro que exige um pacto entre os dois autores. Tal pacto pode ser de natureza muito diferente. No nosso caso, a convenção é simples: Ricardo de Saavedra pergunta e António Manuel Couto Viana responde. Mas tal pacto entre os dois não vai sem que se acrescente que as perguntas do primeiro são direccionadas para que António Manuel Couto Viana nos conte a sua vida.

Não é preciso mais para percebermos que uma convenção entre Ricardo de Saavedra e Couto Viana deste tipo implica necessariamente um livro muito extenso. Couto Viana viveu 87 anos e publicou mais duma centena de obras em domínios tão diversos como a poesia lírica, o teatro, a gastronomia e o ensaio, isto para não falar das antologias que organizou, das dezenas e dezenas de prefácios que escreveu, das muitas traduções e adaptações que fez, das intermináveis colaborações que deu aos jornais e das centenas e centenas de desenhos que assinou e que constituem só por si uma rica manifestação do seu esmero criador.

Além desta vasta obra, Couto Viana viveu em vários sítios do planeta, percorreu as sete partidas do mundo, viveu três anos no Oriente, viajou por quase todos os continentes, conheceu milhares e milhares de pessoas, fez teatro, foi encenador, cenógrafo e actor. Teve em resumo uma vida rica e cheia. Contar um tal itinerário, mesmo resumidamente, demora muito tempo; era pois forçoso que este livro acabasse volumoso, com mais de 500 páginas, tal como ficou.

Se quisermos agora perceber um pouco a morfologia interna do livro, a primeira constatação a fazer é que as perguntas são muito mais curtas do que as respostas. Nesse sentido, à primeira vista, Ricardo de Saavedra teve um papel muito menor do que o de Couto Viana. Dava apenas o pretexto, em geral duas ou três linhas, para Couto Viana se alongar nos seus casos, por vezes ao longo de várias páginas.

Isto é todavia a aparência. Há um facto neste livro que não pode ser esquecido: Couto Viana não se deixava entrevistar – é dum livro-entrevista que aqui tratamos – com registo mecânico. Logo para se obter o seu discurso foi preciso neste livro tomar notas escritas daquilo que o entrevistado dizia e posteriormente reconstruir com elas o fluxo das respostas. O papel de Ricardo de Saavedra deixa assim de ser o do transcritor ou o do relator fiel daquilo que se encontra numa fita magnética para passar a ser o do re-construtor.

Ricardo de Saavedra, o entrevistador, teve assim um protagonismo de primeiro plano neste livro, qualquer coisa como setenta a oitenta por cento do trabalho total. Elaborou as perguntas, ouviu Couto Viana, tomou nota das suas palavras e a seu modo teve de colaborar na elaboração das respostas. Era inevitável. Não havendo fita magnética com registo gravado, Saavedra não pôde evitar este papel de reconstruir, modelar e ajustar o discurso de Couto Viana.

Isto quer dizer que em vez de estarmos diante de uma autobiografia, estamos diante de uma biografia. Razão teve pois a editora, fazendo jus à natureza do trabalho que editou, em colocar na badana da contracapa a seguinte indicação: Biografia de António Manuel Couto Viana (e não Autobiografia de António Manuel Couto Viana).

Sublinho a importância que Ricardo de Saavedra teve na construção do conjunto. Com isto não quero dizer que a voz e a palavra de Couto Viana não estejam vivas neste livro. Estão. Mas essa vida, dadas as circunstâncias que relatei, deve mais ao entrevistador do que ao entrevistado.

Couto Viana é trabalhado por Ricardo de Saavedra como uma personagem; ele apropria-se de Couto Viana como duma construção sua. Não uma personagem de romance, mas uma personagem de biografia, uma personagem real, personagem que não é ficcional nem ficcionada, mas apenas restituída à realidade. Fá-lo na construção do discurso de Couto Viana, já que não houve registo mecânico de voz. E talvez valha a pena acrescentar que uma parte importante do livro foi elaborada numa altura em que Couto Viana já não pôde sequer fazer a revisão do texto.

Podíamos pressupor que esta entrevista, não tendo registo magnético, tinha obrigatoriamente de passar pelas mãos do autor entrevistado. E assim se fez até ao ponto em que isso foi possível. Com o falecimento de Couto Viana em 2010 houve uma parcela significativa do texto que ficou à responsabilidade de Saavedra, quer para fazer a montagem do discurso de Couto Viana, a partir das notas escritas, como se faz para uma personagem de ficção, quer para a revisão posterior, que o entrevistado já não pôde acompanhar. Dupla ou tripla responsabilidade de Saavedra pois na construção do livro.

Para terminar, gostaria de dizer duas palavras sobre Ricardo de Saavedra e António Manuel Couto Viana, que são os dois mentores do livro que temos entre mãos.

Em primeiro lugar, Ricardo de Saavedra. Este livro é fiel a todo o seu percurso anterior. Diria até que ele é uma síntese feliz do trabalho anterior de Ricardo de Saavedra, primeiro no registo jornalístico, a que dedicou uma longa vida, de Moçambique a Lisboa, depois no registo poético e ficcional, antes de mais o romance Os Dias do Fim, dedicado aos últimos meses de domínio português em Moçambique antes do Acordo de Lusaka, de Abril a Setembro de 1974.

Este novo livro, tão seu por direito largo, querendo restituir um documento vivo, a vida de António Manuel Couto Viana, faz uma síntese feliz entre os dois registos anteriores, criando um documento real e ao mesmo tempo intransmissível. Recordo que momentos há em que Saavedra trabalha Couto Viana como se fosse uma personagem sua, uma personagem do seu próprio discurso.

O que é digno de nota neste livro é que ao lermos as intervenções de Couto Viana, mesmo aquelas que ele já não reviu, nós temos a verosimilhança da voz que fala, aceitamos sem qualquer dúvida que é a voz do autor de Mancha Solar que ali está a falar. Isso é notável! E mostra que Ricardo de Saavedra soube trabalhar neste livro a sua personagem de forma pessoal, sem nunca trair aquilo que aqui era essencial, a verosimilhança do discurso de Couto Viana.

Deixem-me dizer, a biografia, a biografia como género literário – e reafirmo que a editora fez muito bem em considerar este livro como uma biografia –, a biografia como género literário é o mais documentado e o mais documental dos géneros ficcionais mas é também, ao mesmo tempo, o mais imaginativo e o mais ficcional dos géneros documentais. É uma síntese muito feliz do documento humano e ao mesmo tempo da necessidade que o biógrafo tem de recortar a sua personagem, de a individualizar como se fosse uma criação sua. E é isso que o leitor encontra plenamente realizado neste livro.

Uma última palavra para António Manuel Couto Viana. Pego numa passagem do livro que está no Memorial do Coração (p. 360), em que Couto Viana (ou Saavedra por ele) recorda um passo crítico de João Bigotte Chorão, que com muito gosto eu vejo hoje entre nós. Diz ele que o ano do nascimento de Couto Viana foi ano de colheita excecional. Nesse ano – falo de cor e por certo me falhará alguém –, para além de António Manuel Couto Viana, nasceram em Portugal Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, Urbano Tavares Rodrigues, Natália Correia, Mário Cesariny, Luís Amaro, António Quadros ou Fernando de Passos. De qualquer maneira nesta amostra todos nós percebemos que 1923 foi de facto um ano cheio, gordo, duma excelente colheita em todos os sentidos.

Gostava de juntar aqui dois nomes ao de Couto Viana, num triângulo, numa tríade, que me parece muito pertinente para se perceber o lugar de Couto Viana na poesia portuguesa do seu tempo. Eis os três vértices desse triângulo equilátero, em que nenhum se afasta ou se aproxima, sempre equidistantes, sempre equilibrados entre si: Natália Correia, Mário Cesariny e Couto Viana. São três grandes poetas do séc. XX, dos maiores de sempre.

Ligar Couto Viana a Cesariny e Natália é dar destaque a um Couto Viana muito particular, o do Relatório Secreto (1963), que nem sempre é tido na conta que merece. Couto Viana é um poeta tão variado, tão múltiplo, tão rico, que o risco é, ao escolher uma parte em detrimento da outra, esquecer aquilo que nele em conjunto mais importa.

João Bigotte Chorão viu muito bem na nota que escreveu para a contracapa do livro 60 Anos de Poesia, publicado em 2004 pela Imprensa Nacional, que Couto Viana com esse Livro deixou de ser um simples poeta para passar a ser um autêntico vate, um vaticinador.

O Relatório Secreto é um livro maior. Não é por acaso que na entrevista a Ricardo de Saavedra, Couto Viana escolhe o Relatório Secreto como o seu livro capital. É de facto um livro desmedido, que o liga ao surrealismo e lhe permite triangular com Cesariny e Natália uma das mais belas e majestosas constelações da poesia portuguesa do tempo.

Com isto, quero dizer o quê? Que Couto Viana é um grande poeta. É só isto que quero afirmar. Ao chamar a ligação entre Couto Viana e o surrealismo de Mário Cesariny, quero apenas dizer esta coisa simples: Couto Viana é um dos grandes prestidigitadores da poesia portuguesa de sempre.

Ao contrário do que parece, e por vezes nos fazem crer, Couto Viana não é apenas um poeta lírico. Não por acaso tivemos entre nós, aqui, há pouco, alguém que nos chamou à atenção para a importância que a dramaturgia teve na escrita e na vida deste homem. Trata-se, de facto, de um poeta dramático no sentido fundo e até trágico que Aristóteles deu à palavra. É um poeta que está muito para além do simples lirismo quotidiano, realista e fotográfico. É dum vate que estamos a falar, meus senhores!

Todas as homenagens a Couto Viana são justas e merecidas. Recordo aqui uma homenagem que foi feita já este ano ao Poeta, em Janeiro de 2012, numa pequena editora de versos, a Averno. Manuel de Freitas e Luis Miguel Gaspar, em parceria, o primeiro com uma nota, o segundo com cinco desenhos, deram à estampa um pequeno livro chamado Cinco Rosas para António Manuel Couto Viana. É um preito inteiramente merecido, que dignifica também o poeta pela qualidade que tem.

Este livro que temos hoje nas mãos, o Memorial do Coração, é também uma homenagem merecida e esperada, que nobilita além disso sem mancha a memória que guardamos do Homem, esse com quem ainda convivemos e com quem aprendemos uma lição de generosidade e de amor à vida, que sempre agradeceremos com penhor e gratidão.

 

António Cândido Franco

António Cândido Franco (nascido em Lisboa, 1956) fez um doutoramento em Literatura Portuguesa e uma agregação em Cultura Portuguesa. É professor de Cultura e de Literatura Portuguesas na Universidade de Évora. Poeta, romancista e ensaísta com mais de 30 obras editadas. A sua poesia entre 1977 e 2002 está publicada no volume Estâncias Reunidas. Considerado um dos maiores especialistas na obra de Teixeira de Pascoaes, tem dedicado a este poeta diversos ensaios. No seu romance Viagem a Pascoaes, já traduzido em Espanha, retratou Couto Viana na personagem Souto Lima.

Com notável obra na área do romance histórico, onde a teatralidade do imaginário se casa na perfeição com a vida real, alguns dos seus títulos constituem referência incontornável, tais como A Rainha Morta e o Rei Saudade, A Saga do Rei Menino, A Herança de D. Carlos, Vida Ignorada de Leonor Teles ou Os Pecados da Rainha Santa Isabel. Em 1993 recebeu o Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores.

 

Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 28, de Junho de 2012

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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