Louvação de António Manuel Couto Viana, por João Bigotte Chorão

 

Louvação de António Manuel Couto Viana, por João Bigotte Chorão

Intervenção proferida na sessão de homenagem a Couto Viana promovida em Lisboa pela Casa do Concelho de Ponte de Lima e pela revista Limiana, em 17 de Abril de 2010



João Bigotte Chorão



A quem já percorreu uma longa jornada, e nela teve encontros marcantes, ser-lhe-á permitida uma página de memórias – para, por seu intermédio, falar de outros. Hoje e aqui de Couto Viana, que não conheci na sua nativa e amada Viana nem na Lisboa para onde a vida o trouxe. Sem nunca sair de si, como nas terras minhotas da infância e da juventude, em Lisboa tomou consciência de pertencer a uma geração e com os seus companheiros de viagem se reuniu na bela aventura literária da Távola Redonda (1950-1954). Não me vou deter na revista e no seu significado no contexto de outras publicações daquele tempo, porque já me foi dado apontar o compromisso sobretudo poético das “folhas de poesia”, na introdução à edição fac-similada da Távola (Contexto Editora, Lisboa, 1989).

Não foi em Viana, não foi em Lisboa que encontrei pessoalmente Couto Viana, mas na Figueira da Foz, a praia onde passava as férias com a minha família. Não tenho presente a data, mas esse encontro aconteceu já depois de a Távola Redonda ter cessado voluntariamente a sua publicação: missão cumprida. Não ia Couto Viana a banhos à Figueira, nem para uma conferência ou recital de poesia. Homem de teatro, não comparecia ali no papel de autor, actor ou encenador, mas como membro do júri de um concurso de grupos amadores. Acompanhavam-no, também nessa qualidade, Goulart Nogueira, poeta da Távola (que, ao contrário do operoso Couto Viana, optaria pelo silêncio, indiferente à publicação em livro dos seus escritos) e António José Pereira Forjaz, que voltaria a encontrar mais tarde como presidente da Câmara de Sintra, a bela vila onde então me levava o hoje silenciado romancista Francisco Costa. Na Figueira, pude acompanhar os membros do júri em algum espectáculo, mas o que a memória sobretudo conserva é uma cordial conversa numa pastelaria vizinha do Casino.

Alguns anos depois, em 1965, Couto Viana voltou ao meu convívio sob a forma de livro – aquele que reuniu os títulos publicados entre 1948 e 1963 – e recebi surpreso ainda em Coimbra. Não me apressei a escrever sobre o Poeta, não sei se por não ter oportunidade ou porque me retraía o nome daqueles que o apresentavam – David Mourão-Ferreira, co-director da Távola Redonda, e Artur Anselmo, já maduro em anos juvenis. Creio que só me abalancei a dizer de minha justiça quando, a convite do Autor, escrevi sobre o livro inédito Entretanto entre tantos, incluído no volume Uma Vez Uma Voz (Editorial Verbo, 1985).

Ainda a amável convite de Couto Viana, dei um breve prefácio, sob a forma de carta aberta, a Hospital (Viana, 2000) – essa geena em que o doente padecia a via-sacra do sofrimento. Carta que li em público, quando do lançamento em Viana do Castelo desse pungente livro. Chegou enfim o momento de fazer um estudo mais desenvolvido – um verdadeiro e próprio ensaio – sobre a poesia de Couto Viana. Nasceu esse ensaio de um convite de alunos da Universidade Nova de Lisboa para falar da obra do Poeta. O texto então lido apareceu, aqui e além retocado, como posfácio à antologia, organizada pelo próprio Couto Viana, Sou quem fui (Ática, 2000). Coube-me ainda colaborar, no Círculo Eça de Queiroz e com o meu filho Pedro Mexia, na apresentação da poesia escolhida, uma cuidada edição da Caixotim, O Velho de Novo (2000), título auto-irónico, não invulgar em Couto Viana

A sua produção poética, felizmente sempre incompleta, reuniu-a o autor em dois volumes: 60 Anos de Poesia (Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004). O meu contributo para esse imponente corpus poético limitou-se ao texto da contracapa, onde em poucas linhas procurei dar o essencial do itinerário de Couto Viana. Permito-me reproduzir aqui essa síntese.

“No seu percurso poético, Couto Viana não seguiu sempre a mesma estrada. Depois do inicial egotismo de Avestruz Lírico, conhece companheiros com afinidades electivas e literárias, que se reúnem na revista Távola Redonda. Mas o seu solar mundo estético foi subitamente perturbado por circunstâncias obscuras, que se exprimem na linguagem sibilina, e por vezes áspera, de Relatório Secreto. E quem se olhava sempre a si próprio abre os alhos ao mundo circundante, vendo, ainda que não visível, o que ele pressente: o poeta faz-se vate. A partir de Pátria Exausta ouve o ruído surdo de uma tempestade que se aproxima. O pressentimento transforma-se em lamento, quando faz o inventário do desastre. Refeito do desespero, renasce a esperança de um futuro ainda possível. No longínquo Oriente, descobre pegadas de antepassados nossos, que lhe restituem o orgulho de ser português. No Oriente descobre também outro universo e outra civilização, exóticos para olhos ocidentais. Da lírica intimidade acede ao visual e ao descritivo. Regressando à terra e a si mesmo, escreve os poemas crepusculares e, não raro irónicos, de Café de Subúrbio (1991). Uma Lisboa periférica é o melancólico observatório em que o “Velho” – assim se autodenomina o Poeta – vê, desencantado, os outros e se vê a si mesmo.”

Não é só, porém, o poeta de límpida compostura e apurada oficina que admiro de longa data – poeta a que, por isso mesmo, foi colado o fácil rótulo de “passadista”. Poeta sebástico, sim, de rosto bifronte: um que contempla o passado, outro voltado para o futuro. Também para Couto Viana vale o que defendia T. S. Eliot, isto é, uma tradição renovada pelo talento individual.

As suas firmes convicções religiosas e políticas não se exprimem em agressividade polémica que recusa a mão a quem segue coerentemente outra estrada. No fundo e sempre, um homem civilizado, fiel a valores da amizade. Convivente, bom conversador, boa memória, com todos os atributos para animar qualquer convívio.

Poeta que é também bom prosador. Nos seus livros memorialísticos, auspiciosamente inaugurados com Coração Arquivista (Editorial Verbo, 1977), ao dom evocativo alia-se o espírito crítico, que parte dos textos e por vezes do conhecimento dos autores, sem o suporte de especulações teoréticas. O bom, saboroso prosador manifesta-se exuberantemente em recentes contos pícaros (Os Despautérios do Padre Libório, Opera Omnia, Guimarães, 2008), a última e mais inesperada faceta do talento literário de Couto Viana. O lírico melindroso e saudosista, o poeta elegíaco e ferido da pátria decepada e da velhice e doença inexoráveis, como que se desafoga num riso travesso, hilariante e contagiante em histórias do arco-da-velha. O que não será porventura verdadeiro é certamente bem achado pela imaginação do Autor. Fino espectador da comédia da vida, ri-se e faz-nos rir. Pergunto-me se ele subscreve o admirável paradoxo de Almada: “A alegria é a coisa mais séria da vida.”

Se a última feição de escritor pícaro surpreendeu quem se habituara à imagem do poeta magoado pela vida e a pátria (Mon pays me fait mal, podia ele repetir o queixume de Brasillach), não menos surpreendeu o seu ânimo e o seu exemplo quando o infortúnio o pôs à prova, confinando-o ao quarto e à cadeira de rodas, reduzindo as ocasiões de convívio e privando o gourmet da boa mesa.

No seu novo lar, a Casa do Artista (em boa hora fundada), a simpatia de Couto Viana é como um bálsamo para a melancolia dos residentes, seus companheiros. Amigos batem-lhe à porta do quarto, mobilado de livros e com uma janela rasgada para um horizonte desafogado, - amigos que saem dessas visitas edificados pelo que lhes é dado ver e ouvir, quiçá um poema ou artigo acabado de escrever. A poesia não o abandona mesmo em tardos anos de prosa. Já esse milagre espantava Herculano no seu amigo Garrett, que, no entanto, não chegara, como Couto Viana, a uma idade avançada. Até quando as musas não se esquivarão ao poeta que lhes foi exemplarmente fiel? Ele mesmo reconhece que, não obstante o pesado jugo dos trabalhos e dos dias, “a vida não vai vazia: / Se hoje [lhe] falta o Teatro, / Não [lhe] falta a Poesia”. E reconhece igualmente: “Que importa a vida cruel, / Com seus danos e seus perigos, / A quem tem pena, papel / E o carinho dos amigos?”

Consinta António Manuel Couto Viana que eu, sem presunção, esteja nesse círculo de amigos, que, à amizade, associam o sentimento de admiração pela obra e o homem.

Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 12, de Abril de 2009

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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