No dia 4 de Março de 2009, no Teatro Diogo Bernardes, recebi, das mãos do Eng.º Daniel Campelo, a Medalha de Mérito Cultural da Câmara Municipal de Ponte de Lima. Respondi à honra do galardão com o seguinte agradecimento em verso:
Não sei de verso que exprima
Toda a minha gratidão
De vir a Ponte de Lima
Receber tal galardão.
À vila que sempre trago
No coração sensitivo
Com a meiguice do afago
Que me mantém são e vivo.
Sinto a alma peregrina
Por velhos tempos e datas,
Quando, de capa e batina,
Louvava a musa divina
Do poeta das Bailatas. (1)
Que na inspiração faceta
Que tão alto o consagrou
Chama cidadão poeta
Ao meu tio-bisavô. (2)
Quando passava o Estio
Numa aldeia aqui à beira
E pelo frescor do rio
Rumava ao calor da feira. (3)
Quando, na Cadeia Velha,
Visitava José Rosa,
Essa diligente abelha
A fabricar mel em prosa. (4)
Quando, pelas Feiras Novas,
Vinha dançar, sem cansaços,
Com trovas, atrás de trovas,
E abraços, atrás de abraços. (5)
E quando, na bicicleta,
Vinha, a galgar vale e monte,
Comer à Maria Preta
O sarrabulho de Ponte. (6)
Depois, no Largo Camões,
Era ao fidalgo letrado
Que escutava as tradições
Da vila e do seu passado. (7)
Por fim, no clima romântico
Da Alameda, em sombra e luar,
Nascia a letra de um cântico
Que nunca quis revelar.
Só Feijó e mais Ferreira
E Teófilo também
Cantaram esta Ribeira
Como um filho beija a mãe. (8)
Por isso é que me interrogo
Porque mereço esta graça,
Pois, tendo a memória em fogo,
O que escrevo é cinza … e passa.
Não, não há verso que exprima
Toda a minha gratidão
De vir a Ponte de Lima
Receber tal galardão!
Notas à Poesia
(1) – Nos meus quinze, dezasseis anos, quando aluno do Liceu Vianês de Gonçalo Velho, era hábito participar numa visita de estudo fora da cidade, em excursão jovial, até às quedas do Ermal ou à Electra del Lima, no Lindoso.
Se era esta última a escolhida, havia uma paragem por Ponte de Lima e pretexto para uma fotografia junto ao monumento de António Feijó, poeta que, pelo menos, um professor nosso nos ensinara a prezar: o Dr. Mendes Carneiro, nascido em Viana, mas primo do poeta pontelimês Teófilo Carneiro (foi ele o primeiro a reunir-lhe a obra póstuma), bem como o dramaturgo e poeta Salvato Feijó (sobrinho do autor de “Sol de Inverno”), ensaiador das nossas récitas do 1.º de Dezembro, no Teatro Sá de Miranda, onde os estudantes mais dotados recitavam “Pálida e Loira”, “O Amor e o Tempo” e o “Romance da Linda Pastora”, repertório indispensável no sarau.
Rapazes e raparigas, envergando a capa e batina da praxe académica, buscavam pose adequada junto ao belo busto criado por Teixeira Lopes.
E eu recordava que, quando da sua solene inauguração, a 1 de Julho de 1938, minha irmã Maria Manuela ali lhe declamara versos de louvor, da autoria de Virgínia Vitorino, poetisa então no auge da sua vida literária.
(2) – Em 1907, António Feijó edita o seu livro “Bailatas”, um conjunto de poemas satíricos, assinados pelo heterónimo Inácio de Abreu e Lima, que, sobretudo, visavam ridicularizar o Simbolismo trazido a Portugal por Eugénio de Castro.
Algumas destas composições eram enviadas de diversas partes do mundo (onde Feijó tinha quem lhas metesse no correio), de modo a despistar aqueles que lhas recebiam. Um dos destinatários era a “Aurora do Lima”. Certa vez, remeteu-lhe a poesia “Urbana”. O jornal agradeceu da seguinte forma, a 12 de Outubro de 1886:
“Inácio de Abreu e Lima… honra-nos novamente com as suas mimosas produções endereçando-nos uns… versos sob o título “Urbana.”
O adjectivo mimosa indignou o poeta “com solar no Minho”, motivando a graça da poesia “Mimosa”, dedicada aos redactores da “Aurora”.
A dado momento, escreve:
“Que o diga o Manuel Roças/Que também é poeta e cidadão!/Fomos há anos juntos a Barcelos/Ver a festa das Cruzes/Chapéu à banda, butes amarelos,/E cacetes na mão como lapuzes./Logo ao partir o bom Manuel logo dizia:/“Vai bem esse disfarce à varonil poesia/Que o teu chapéu de Braga, às três pancadas, tapa,/Como um pote a ferver de onde o génio se escapa…/É o hábito que o monge engrandece ou apouca;/Que diriam (como eu) se te vissem de touca!”
Quem era este Manuel Roças? Nascido em Barcelinhos, não sei em que data, era irmão da minha bisavó, mãe da minha avó paterna, e de Isabel, casada com o milionário vianês Sebastião Neves, sogro de Guerra Junqueiro, proprietário da maior rede de diligências de Entre-Douro-e-Minho. Emigrante no Brasil, instalou-se em Viana do Castelo, colaborando na “Aurora”. É ele o primeiro “recoveiro amoroso” entre a sobrinha Filomena e o cantor dos “Simples”.
Manuel da Graça P. Roças publica em 1894 o seu único livro de versos, “Rosas d’um dia”, reflectindo o seu anti-clericalismo epocal e os seus ideais humanitários. Celebrou, em sonetilho, a morte prematura da minha tia Henriqueta, “anjo de luz, d’inocência”.
Procurei retratá-lo em dois poemas que seria fastidioso reproduzir aqui.
(3) – Em Setembro de 1939, pouco antes do início da 2.ª Guerra Mundial, a família Couto Viana instalou-se na aldeia de São Martinho da Gândara, na Casa da Cachada, propriedade do abastado lavrador António Guimarães, que lha cederia até 1945, data em que meu pai, Delegado do Instituto Nacional de Trabalho em Viana, se retirou para Lisboa, como Secretário da Junta Central das Casas do Povo. Aí, todos nós gozámos as belezas da paisagem e da vida agrícola, participando nos mais festivos trabalhos do campo: as vindimas, as desfolhadas… Os prazeres de sulcar o Lima, a partir do Carregadoiro (“Hei-de ir de Ponte de Lima/Até ao Carregadoiro” – verseja Pedro Homem de Mello), levava-nos até aos areais da vila, nos dias daquela feira que minha irmã Maria Manuela descreveu no seu romance “Raízes que não secam…” Feira centenária, nessa altura de um comércio singular e farto.
(4) – José Rosa de Araújo era natural de Viana, onde fez os seus estudos e se empregou como funcionário da Caixa Geral de Depósitos. Arqueólogo e historiador, foi discípulo de Abel Viana, que muito lhe admirava o talento. Reformado, aceitou o convite da Câmara Municipal de Ponte de Lima para dirigir o seu Arquivo, na restaurada Torre da Cadeia Velha. Aí, ia várias vezes encontrá-lo para uma conversa culta e saudosa. Conheceu-me de menino (ele nascera em 1906 e faleceu em 1992) e era grande amigo e admirador de meu pai, que lhe desenhou capas e lhe ilustrou algumas obras. A última vez que com ele contactei, na companhia da minha irmã Maria Manuela, foi nos começos dos anos 80, precisamente na Cadeia Velha. Os dois irmãos deixaram, a seu pedido, algumas impressões sobre a vila, que ele reproduziu nas páginas de um jornal (qual?)…
(5) – Durante a minha estada em São Martinho da Gândara, em sucessivos Setembros, pude visitar as Feiras Novas, que, então, considerava bem mais autênticas que as d’Agonia (a festa vianesa é para o turismo: é a cidade que a oferece; a de Ponte é o povo que a faz para seu próprio divertimento). Tinha gosto em bailar no areal, em noites de folia e de fogo de artifício; de escutar a inspiração e atrevimento dos desafios; os galanteios dos namorados…
(6) – Pelos dias já outoniços, vinha frequentemente a Ponte, a partir de São Martinho, numa bicicleta alugada no Barros, com comércio variado no largo da aldeia, “homem das Arábias”, topa-a-tudo, que nos guiava a “limousine” encerrada na garagem da Cachada, à disposição da família.
Por esse tempo, se queria ir almoçar o sarrabulho típico da região, amesendava-me na “Maria Preta”, onde, muitos anos depois, ficara instalado José Rosa de Araújo, com quem partilhei, várias vezes, o rei dos pratos da matança, tão suculento e saboroso. Mas não me ficava por aqui, e apreciei-o com o Amadeu Costa no “Gaio”, e, com familiares, na Encanada e na Clara Penha. E, ainda, em taberninhas da beira-rio, cujo nome esqueci, menos o paladar soberbo da iguaria.
(7) – O “fidalgo letrado” é, como é óbvio, o 3.º Conde d’Aurora, amigo fraterno de meu pai, de quem tive a honra de herdar a estima. Sempre a sua conversa, erudita e irónica, me fascinou, quer à mesa do Café Central, quer nos salões do Solar de Nossa Senhora d’Aurora, que (no dizer do 4.º Conde) recebem, hoje, a minha “amizade histórica”.
(8) – António Feijó, António Ferreira e Teófilo Carneiro. Qualquer destes poetas pontelimeses renderam uma sentida homenagem, em verso, à Ribeira-Lima, sobretudo ao Rio Lethes do esquecimento, “todo cristal” em Feijó; com “maviosa fala” em Ferreira; como “lira dágua” em Teófilo.
Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 12, de Abril de 2009
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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