João Apolinário – Poeta descalço, por Serafim Ferreira (Escritor e Crítico Literário)

 

João Apolinário – Poeta descalço, por Serafim Ferreira (Escritor e Crítico Literário)



Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário



Vinte anos passados sobre a morte de João Apolinário (1924-1988), sabemos como este poeta transportou consigo uma camaradagem franca e aberta: antes, pelos cafés e ruas do Porto, depois na distância entre São Paulo e esta cidade portuense nos recados chegados do Brasil por outros amigos e no regresso desse “exílio” voluntário em 1975 para redescobrir o país em vagas de alegria triunfante. E assim depressa o convívio se refez em horas de protestos e anseios, no mesmo sentido desencanto de as coisas terem mudado tão pouco ou quase nada, nas portas que se fecharam ou na desilusão de não embarcar em novas aventuras pelos jornais. Depois, na solidão sofrida no hospital de Portalegre, na derrota final, João Apolinário ficou sepultado no cemitério de Marvão, a vila fronteiriça que escolheu para viver os últimos anos como refúgio mais tranquilo dos sobressaltos vividos numa Lisboa mais insuportável nas horas de fadiga e cansaço.

 

Nascido em Belas – Sintra (Janeiro de 1924), o poeta de Morse de Sangue passou a infância e adolescência nas terras transmontanas dos avós maternos e dessas paragens guardou boas recordações: A roca da minha avó / fiava os carneiros todos / sentada ao sol das manhãs / ou à sombra dos poentes.

 

Viveu durante largos anos no Porto, esteve ligado ao Teatro Experimental do Porto em 50 e 60, publicou nesse domínio dois importantes trabalhos: Esboço de Orientação ou o Inicio de uma Prática de Teatro (1960) e Arte de Dizer (1963). Foi um dos directores do Grupo de Teatro Moderno, que fundou ainda no Porto com Alexandre Babo e outros. Depois de se radicar no Brasil a partir de Dezembro de 1963, foi redactor, colunista, crítico teatral e editor de artes no jornal Última Hora (São Paulo), chegou a ser presidente da Associação Paulista de Críticos de Arte (teatro, música, cinema, televisão, literatura), prolongando a sua actividade intelectual interessado nos problemas da cultura, sobretudo do teatro e da poesia. Publicou vários livros de poemas entre 1955 (Morse de Sangue) e 1974 (Apátridas), que reuniu depois num volume intitulado O Poeta Descalço (1978), mas nos últimos anos ainda enriqueceu a biblioteca pessoal com mais quatro títulos, como Poemas Cívicos e Amor Fazer Amor.

 

Companheiro de geração de Daniel Filipe, Veiga Leitão, Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Alexandre Pinheiro Torres, António Reis, Aureliano Lima e outros que, no Porto, em 50 e 60 souberam dar à nossa poesia um importante contributo no empenhamento e luta contra o fascismo salazarista, a obra poética de João Apolinário revela o trajecto de quem se empenhou nas formas de expressão que deram um espírito renovador à chamada “segunda vaga” de poetas neo-realistas que, alargando as perspectivas poéticas do Novo Cancioneiro, de outro modo testemunharam o mesmo grito de resistência corajosa e persistente contra a ditadura salazarista.

 

Na intencional atitude e simplicidade de querer ser uma poesia eficaz nos limites da sua expressão, desde Morse de Sangue que o sentido lírico de João Apolinário se afirmou pelo modo de ser uma poesia simples e directa:

 

A poesia não basta

com ela dentro de mim

nem a vida se gasta

nem a alma tem fim.

 

Porque nessa descoberta o que se jogava era o mesmo sentido denunciador de quebrar, em todas as circunstâncias, a muralha de medos que se erguia em redor ou um certo silêncio vidrado e depois quebrado de outras suspeitas:

 

Tínhamos a suspeita da suspeita

suspeitávamos até de suspeitar

a insuspeita suspeita que era feita

para ninguém poder acreditar.

 

E, na recusa de não ficar amordaçado, o protesto se levantou tantas vezes na raiva de outros instrumentos e opções, fazendo o poeta, gritar na voz dolente e cantante de Luís Cília:

 

Recuso-me a ficar amolecido

tragicamente cilindrado

e muito antes de lutar – vencido

e muito antes de morrer – violado

 

ou ainda na forma e no clamoroso desejo de “avisar toda a gente”, no nítido propósito de terem sido os seus versos o “santo e a senha” de outros gritos e desafios:

 

É preciso avisar toda a gente

dar notícia informar prevenir

que por cada flor estrangulada

há milhões de sementes a florir,

 

porque nesse tempo de pânico colectivo e de palavras surdas, só o Poeta poderia impor por entre alguns sarcasmos ou escondida ironia a sua condição de jogral:

 

Com a vilania

dessa condição

o Povo morria “A Bem da Nação”

 

Na imediata fulgurância dos versos para que as palavras não escondessem a própria “realidade” sempre condenada e denunciada, a poesia de João Apolinário desdobra-se em planos convergentes, onde se sucede o modo de aferir a vida ou de sentir o mundo por entre uma secreta alegria na descoberta da poesia e das variadas “evidências” que não deixou de revelar. Mas, nos sobressaltos do seu coerente “discurso” poético, tantas vezes se redescobriu de mãos vazias e o coração cheio, na importância e raiva de ter sido um poeta descalço”, e hoje tão esquecido, que não entendeu esse sentimento do mundo e clamava ainda com desdém quase no fim do caminho:

 

De mim para cima

está tudo dito

De mim para baixo

falta dizer tudo.

 

Assim, na intencional concisão expressiva, na força rítmica dos versos, o que sobra, no acto de aqui relembrar o poeta de Primavera de Estrelas, é tão só no sentido de nada valer a pena (só quis fazer / o que não fiz) ou essa conveniência apelativa e serena em forma de epitáfio final nos versos de um dos últimos poemas de O Poeta Descalço:

 

Meus filhos quando eu morrer

que leve seja a vossa mágoa de pensar

naquilo que de mim sobra para lhes dar

que o dar-me inteiro foi todo o meu viver.

 

Mas, em tudo e por tudo, devo ainda reflectir este seu aviso à navegação:

 

É preciso avisar toda a gente

que há fogo no meio da floresta

e que os mortos apontam em frente

o caminho da esperança que resta.

 

Talvez com a certeza de que a voz poética de João Apolinário ainda se escuta para lá dos limites do tempo e da morte, por ter sabido utilizar numa linguagem simples e quase jogralesca, na intenção de comover os leitores pela denúncia que nunca deixou de fazer ou nos combates que foi possível travar.

 

In: a página da educação – junho 2008 – pág. 36

 

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Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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