Carlos Miguel de Araújo, venerando limiano, meu amigo – Testemunho de Beja Santos

 

Carlos Miguel de Araújo, venerando limiano, meu amigo – Testemunho de Beja Santos



Beja Santos



Conheci pessoalmente Carlos Miguel de Araújo em 1983, ao tempo eu era Diretor de Serviços no Gabinete de Defesa do Consumidor (Ministério da Qualidade de Vida), fora-me dada a incumbência de Secretário Executivo do Conselho da Publicidade, eu representava um departamento ministerial e o Carlos Miguel era o representante da RTP. Um compadre meu, o escritor Luís Cajão, amigo dos dois, fizera-me previamente uma observação: “É homem de grande cultura, generoso, imagine, conserva ideais miguelistas, tenho a impressão que vocês se vão dar muito bem”.

Acamaradámos prontamente, tudo começou por um debate controverso acerca de publicidade inserida numa telenovela, o representante da televisão cumpria cabalmente o seu dever mas não escondia o seu desconforto perante o descabelado da situação. Gostei muitíssimo da seriedade dos seus procedimentos, palavra puxa palavra, encontrámos autores comuns que tanto nos interessavam, passámos a almoçar e a cavaquear, convidou-me a aparecer nas tertúlias que ele frequentava. Daí a um passo, íamos juntos a lançamentos de livros, frequentávamos as nossas casas. Ainda hoje guardo a recordação de um almoço em minha casa, em junho de 1985, comia-se gaspacho, o Carlos Miguel veio com o Luís Cajão, almoço de regalo, em dado momento toca o telefone, era um convite da FAO, Roma oferecia-me a oportunidade de participar numa missão em São Paulo num projeto de educação do consumidor, a vigorar em São Bernardo do Campo, a terra de Lula. Experiência inolvidável, voltámos ao convívio em janeiro do ano seguinte.

Tem sido uma gratificante amizade, e que não dá tréguas, convívios, eventos de índole cultural, novas amizades. Pois foi graças ao Carlos Miguel que recebi a estima do musicólogo Filipe de Sousa, tive o privilégio de frequentar a sua tertúlia no Chiado, era a denominada Mandíbula de Aço, de saudosa memória. O Conselho da Publicidade desaparecera das nossas vidas, era mesmo a amizade a massa lubrificante. O Carlos Miguel conheceu a penosidade da perda de visão, posso imaginar o que representou esta limitação para o infatigável devorador de livros que ele é, com a agravante de adorar as suas secções temáticas, amplíssimas, abarcando a genealogia, Ponte de Lima, Camilo e Eça de Queirós, o miguelismo, o integralismo lusitano, uma curiosidade infatigável quanto a novos escritores, a par da confirmação dos seus ícones, que ele guarda zelosamente nas estantes pejadas da sua casa, com as paredes polvilhadas de belíssimas obras de arte. Recordo que já limitado o Carlos Miguel me pediu para eu ir ao lançamento de um livro de um amigo seu, o pintor Noronha da Costa, quando abordei o artista dizendo-lhe que era um prazer conhecê-lo pessoalmente já que fazia leituras a um amigo dileto cercado de algumas das suas obras-primas, ele indagou de quem eu estava a falar e quando lhe disse quem ali me trouxera estampou-se-lhe no rosto a grande consideração que ele guardava do Carlos Miguel e na hora de apor assinatura no seu livro, lançado na Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva, Noronha da Costa foi perentório, há amigos de elevada estima, seria ofensa sair dali com livro comprado.

São dezenas de anos de farto convívio, é uma amizade onde aprendo muito, solicita-me para leituras de dimensões culturais a que era alheio, há por vezes obras empolgantes que fascinam os dois. Recordo a leitura de “Juízo Final”, de Franco Nogueira, que tanto nos motivou e onde aprendi que as bases do anti-iberismo são um leito profundo da identidade pátria, com plena justificação, descobri que Franco Nogueira era um dotadíssimo escritor. Recordo igualmente que a escassos dias deste depoimento para o Portal “Ponte de Lima Cultural”, lhe li um artigo de Stefan Zweig sobre a obra de Arthur Rimbaud, o genial poeta francês, ambos rejubilámos.

O amor invencível de Carlos Miguel por Ponte de Lima é uma das facetas do seu caráter, ali vai regularmente, sente-se atraído pelos cheiros que emanam da Ribeira Lima, está amplamente informado de tudo quanto ali se passa e de tudo quanto ali se publica, ouve atentamente a leitura de jornais e depois pede a um primo que lhe adquira os livros ou catálogos, estou habituado há muitos anos a ler-lhe “O Anunciador das Feiras Novas”, conheço os grandes vultos do Minho (neste caso de Viana do Castelo), caso de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, e os limianos ilustres, desde o Cardeal Saraiva até ao poeta António Feijó. Outra projeção desta amizade que me rasgou horizontes.

Tenho todo o orgulho em dizer que este meu amigo é um indefetível limiano na sua cultura universal, no seu modo de ser português onde se espelham algumas das maiores virtudes lusitanas, a sua aprimorada fidalguia e o cuidado com os desvalidos, um sentido da gratidão e uma valorização da amizade que lhe conquistou tantas estimas, e ainda conquista, ele que caminha para nonagenário.

Não há duas amizades iguais, não concebo a minha existência sem este lauto convívio, acompanhando-o nos percalços da saúde que o assediam, e assim nos dessedentamos conversando e eu lendo a quem me escuta tão atento, tão agradecido com a companhia que damos um ao outro.

É com satisfação que aqui deixo no Portal “Ponte de Lima Cultural” a história de uma amizade onde a vivência limiana tem tanto peso e ganha tanta ternura, Carlos Miguel de Araújo é um minhoto e um zelador de recordações familiares como não conheço outro, interrogo-me tantas vezes o grande escritor que se perdeu deixando a nu um coração de ouro, uma memória vibrante, para além da profunda amizade que nos solidifica, este homem tem qualquer coisa de Heródoto, um contador de peripécias sem rival, pois quando a conversa retorna à ancestralidade o seu Minho é o Rossio do nosso mundo.

Lisboa, 3 de abril de 2019

 

Mário Beja Santos

Licenciado em História, foi alferes miliciano de infantaria na Guiné, de 1968 a 1970. Toda a sua vida profissional, entre 1974 e 2012, esteve orientada para a política dos consumidores, sendo autor de mais de três dezenas de títulos relacionados com esta temática.

Foi professor do ensino superior; colaborou durante mais de duas décadas em emissões radiofónicas ligadas à defesa do consumidor, foi autor e apresentador de programas televisivos e teve uma participação ativa no consumerismo europeu.

Colabora em blogues, revistas digitais, na imprensa diária e regional.

Alguns dos seus últimos livros foram dedicados à Guiné: Diário da Guiné – Na Terra dos Soncó, Diário da Guiné – O Tigre Vadio, Mulher Grande, A Viagem do Tangomau, Adeus, até ao meu regresso, um levantamento da literatura sobre e de combatentes na Guiné, e, posteriormente, foi co-autor da obra Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro, História(s) da Guiné Portuguesa e História(s) da Guiné-Bissau.

Presentemente ultima um livro de investigação – Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné.

Ao nível da sua participação cívica e associativa, Beja Santos mantém-se ligado à problemática dos direitos dos doentes e da literacia em saúde, domínio onde já escreveu algumas obras orientadas para o diálogo dos utentes de saúde com os respetivos profissionais, a saber Quem mexeu no meu comprimido?, 2009, Tens bom remédio, 2013, e Doente mas Previdente, 2017.

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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