1. Pórtico
Quando iniciamos a leitura de o rosto, o mais recente título de poesia de david f. rodrigues (2018), percebemos imediatamente estar perante uma voz poética amadurecida, com um percurso de escrita anterior. Não é muito provável que um jovem autor iniciante escreva deste modo, usando esta forma de linguagem, esta imagética e esta tópica recorrente, como veremos adiante.
De facto, e como não existem leitores adâmicos, que se aproximem de um texto literário totalmente desprovidos de informações ou de um determinado horizonte de expectativas, também aqui podemos já ter dados prévios sobre o poeta; como também somos informados, em breve nota “sobre o autor” (Rodrigues, 2018: 36) do perfil do autor, com uma panorâmica sobre a sua obra literária, iniciada no já distante ano de 1971, incluindo ainda nesse trabalho de escritor a assídua colaboração com a imprensa, numa actividade de escrita que não se reduz à poesia[1].
Dentro da mesma ideia do horizonte de expectativas, a escrita deste título o rosto aparece-nos sob a égide de dois clássicos — Luís de Camões e Herberto Helder, um clássico quinhentista e intemporal, a par de um clássico da nossa contemporaneidade. Mais concretamente, as epígrafes citadas peritextualmente destes poetas remetem para duas linhas de força da escrita poética de David F. Rodrigues (2018: 7), a saber: os conhecidos versos finais da Canção V da lírica camoniana concluem um pensamento iniciado na primeira estrofe, quando lemos algumas observações em torno da capacidade de expressão e os seus efeitos (no sujeito e no objecto do poema):
“Se este meu pensamento,
como é, doce e suave,
d’alma pudesse vir gritando fora,
mostrando seu tormento
cruel, áspero e grave,
diante de vós só, minha Senhora:
pudera ser que agora
o vosso peito duro
tornara manso e brando.
E eu que sempre ando
pássaro solitário, humilde, escuro,
tornado um cisne puro,
brando e sonoro pelo ar voando,
com canto manifesto,
pintara meu tormento e vosso gesto.”
(Camões, 1994: 211)
E depois destes versos, em que o sujeito aborda o tema da luta pela expressão (Fidelino de Figueiredo) ao nível da tópica da pintura do retrato feminino da mulher amada, a superior e atraente “Dama delicada”, somos confrontados pouco depois com uma conclusão metapoética, em que a voz fala teatralmente (monólogo) com o próprio poema. Esta reflexão equivale a uma sintética arte poética, em que se traça a apologia de uma certa forma de escrita reescrevendo um velho preceito da velha e sempre actual lição poético-retórica — se se pode dizer em menos palavras ou em versos “pequenos”, deve-se privilegiar esta forma contida, evitando toda a prolixidade:
“Canção, não digas mais; e se teus versos
à pena vêm pequenos,
não queiram de ti mais, que dirás menos.”
(Camões, 1994: 213)
Esta oportuníssima e significante invocação de Camões articula-se semanticamente com a citação de Herberto Helder (1968: 18), concretizada num verso de Apresentação do Rosto: “Gostaria de escrever o livro de que tenho medo”. Ainda que aparentemente os breves excertos dos dois poetas não pareçam ter nada em comum, une-os a meditação em torno da própria escrita poética, pelos desafios que isso implica, como adiante se retomará.
Afinal de contas, na escrita poética todo o autor vai construindo uma imagem de si, um rosto singular que o diferencia de outros autores — ao ponto de poder dizer: esta escrita sou eu, esta palavra define-me; e (subentende-se) esta poesia perdurará depois de mim. No tratado De Oratore, Cícero escrevera uma imagem que perdura no tempo, com algumas variantes: “O rosto é o espelho da alma”.
Cumprindo o desiderato expresso no final da Canção camoniana, mas também na senda de tendências inscritas há muito na poética deste autor, tal como expressa em obras anteriores, estes 26 poemas breves e originais[2] que compõe o livro aparecem-nos moldados por uma grande contenção, precedidos de uma dedicatória muito sóbria, simplesmente numerados e despojados do título, além de se mostrarem distantes de uma tessitura intertextual explícita. Deve ainda acrescentar-se, à laia de rápida introdução, que também estamos perante uma poética que prescinde de qualquer sinal de pontuação, sem com isso perturbar (antes pelo contrário) a expressividade literária. Também aqui, algumas das enunciadas opções compositivas se mantêm fiéis a um programa poético que recua às primeiras obras, como no livro o rito do pão (1981).
2. Linguagem
Como seria expectável, nesta escrita sobressai o fascínio pela linguagem verbal, mais especificamente pelas belezas ocultas da palavra poética. Do primeiro ao último poema, são muitas as manifestações sobre as exigências da dicção poética, desde logo presentes num vocabulário marcado por essa obsessão: livro, página, poesia, dizer, dito, regra, palavra(s), sintaxe, verso, discurso, folhas, sintagma, soneto, manuscrito, cesura, crítico, rimas, chave d’ouro, meta-discursivo, etc. Nesta enumeração aleatória e não exaustiva, deparamo-nos com um léxico que pertence assumidamente ao campo semântico da escrita literária, remetendo para o labor que ela implica. O dizer poético supõe, desde séculos remotos, muito mais do que capacidades naturais e inatas, uma arte ou técnica que se aprende e se treina, tendo como epicentro a polissemia da palavra.
Nesta atração quase sôfrega e sensorial pelas palavras e pela sua infindável riqueza de sentidos, destaca-se uma confessada e central atitude de demanda por parte do sujeito poético. Essa sintomática procura perpassa vários textos com destaque para um dos poemas centrais de o rosto, em cuja primeira estrofe pode ler-se: “tivesse eu encontrado já / a palavra única que procuro há / volta de meio século / para compor o simples verso” (Rodrigues, 2018: 14). Deste modo, o poema tem uma gestação lenta, pensada e laboriosa, sempre em busca da palavra exacta — “por natureza o poeta / não é um fala-barato” –, concluindo de forma bem assertiva e confessando que a criação implica sempre o suor do rosto, para usarmos a conhecida expressão popular: “sai muito cara sempre / ao poeta toda a palavra” (Rodrigues, 2018: 24). Em outro poema, o sujeito insiste no significado de “fazer versos atrás de versos / sejam santos ou travessos” (Rodrigues, 2018: 28).
Na “folha virgem”, a busca da “palavra única” para compor o “verso simples” constitui a grande obsessão, de quem busca dizer o que ainda não foi dito com a propriedade e a inovação desejáveis. E todos os meios são usados pelo poeta nessa interminável busca pela palavra certa e ímpar, na sua laboriosa e “gasta banca de aprendiz de poeta”, sempre em busca da palavra certa, do verso exacto e do “sintagma feliz”[3]. Por isso, em outros textos sobrevém a confissão dessa procura ou “aprendizagem” contínua, tanto mais intensa quanto a poesia representa uma atração irresistível desde muito cedo, sempre em demanda do “efeito imponderável” e inesperado.
Ao mesmo tempo, em registo hipotético e modesto, o poema inaugural lança o desafio que dá forma ao título do volume, em formulação incerta: “se um dia der // a minha vida um livro / uma só página há de ter // o rosto” (Rodrigues, 2018: 9). Equivalendo a um ambicioso programa poético, que culmina circularmente no último poema do livro, o que parece afirmar-se é, em primeiro lugar, a centralidade axial do rosto na escrita poética — desde logo, porque quem escreve, escreve-se. E a individualidade poética de um rosto só se alcança quando se atinge determinada maturidade, como os traços de um rosto revelam uma existência vivida.
Por outras palavras, mesmo pressupondo todo o trabalho de ficcionalização, a voz poética compõe sempre (ou visa esse desiderato) um determinado perfil que se pretende único, o mesmo é dizer uma escrita que condensa um rosto. Com este significado, não estamos tanto a falar em rosto no sentido plástico ou físico, mas antes num sentido psicológico e sobretudo estético, a meio caminho do conceito antropológico e filosófico de rosto, tal como veiculado pelo pensamento de Emmanuel Levinas. Uma coisa é certa: escreva o que escrever, independentemente das obras publicadas, o poeta é sempre um incansável “lavrador da terra” e um permanente “aprendiz”, tentando decifrar o mistério contido na esfinge da palavra, afinal uma das formas de conhecimento de si e do mundo, de inegável alcance gnoseológico.
3. Metapoesia
Como salientado por Vítor Aguiar e Silva (2008), há uma forte presença da poética na tradição literária ocidental, de reflexão sobre o fazer poético, e, durante séculos, dotada de forte pendor normativo. Em todo o caso, depois da grande ruptura da estética romântica, a poética abandona essa multissecular normatividade, para se concentrar na meditação sobre o próprio trabalho da poesia.
Uma outra dimensão complementar do afirmado sobre a linguagem e a palavra literária é a atitude manifestamente metapoética que a escrita de vários destes textos assume: “eu gastarei ainda uns largos minutos / a queimar folhas e folhas de versos inúteis / que a impertinente aprendizagem / do pobre ofício do poeta com os mestres / durante o dia de boa vontade me impus” (Rodrigues, 2018: 25).
Em diversos textos de o rosto, o foco concentra-se obsessivamente no próprio acto de “fazer versos”, numa clara reminiscência do poiein clássico. Na sequência do afirmado, não surpreende a modéstia reiterada e a permanente insatisfação do poeta no exercício continuado do seu ofício, aprendendo sempre com a natureza:
“se eu fosse poeta de ofício experiente
e garantido faria como este melro
dos meus encantos vespertinos e matinais
só entregaria á alva luz dos dias o poema
que seguro e consciente soubesse inteiro
de composição sólida e sábia interpretação
este singular solista por natureza dispensa
pautas ensaios maestros e regências
de seu canto exclusivo é
autor compositor e intérprete”
(Rodrigues, 2018: 27)
Como vemos, não deixa de ser muito significativo que uma das palavras mais reiteradas seja a de “ofício”, como sinónimo de acto de celebração, mas sobretudo como trabalho oficinal do poeta-aprendiz — ou seja, poesia como “ofício” dedicado, labor contínuo, aprendizagem, com o fito da “aprendizagem do ser”, permanentemente incompleta e insatisfeita.
Simultaneamente, a poesia é apresentada como um “vício” ancestral, quase congenial: “a mim a poesia faz-me / um mal terrível vício / contraído na juventude / incorrigível devora-me”. Porém, afirma-se como vocação absorvente, na radicalidade da pulsão para a poesia: “noite e dia horas a fio / sem descanso” (Rodrigues, 2018: 23). Porque, como sugerido, a dicção poética rima com extrema selecção da palavra, num gesto comparável à busca do ouro por entre enormes camadas de minério inerte e insignificativo, no incansável crisol: “todas as palavras à sombra / me perseguem em disputa acesa / por um lugar ao sol num poema / ou tão só num simples verso” (Rodrigues, 2018: 15).
Para enfatizar esta dimensão oficinal e laboriosa da poesia, o sujeito recorre a analogias mais ou menos inesperadas, mas sobretudo imagens dotadas de manifesta expressividade, tendo sempre como pano de fundo o ofício do poeta: a formiga obreira, analogia indirecta do poeta; a poesia como alimento que cuidadosamente se prepara — “é com poucas e vulgares palavras / como géneros de pura subsistência / que cuido e preparo os alimentos / que maior prazer à língua me dão” (Rodrigues, 2018: 12)[4]; o perfume da poesia, cujas fragâncias insólitas o poeta persegue; o mar como “experiente e exigente mestre” da poesia, apagando as “desalinhadas linhas” escritas na efemeridade da areia; o “canto enamorado” do melro repetido nestes poemas (sucedendo a outras aves poéticas ancestrais, do rouxinol à cotovia e ao cisne) — “o melro é de longe o meu preferido / poeta como justificarei em quinze ponto três”[5].
Ocasionalmente, como sugerido antes, o poeta também associa metaforicamente o seu dedicado labor ao do lavrador da terra, mesmo quando a poesia é uma “terra mais que ingrata”. Em todo o caso, a terra aparece genérica e simbolicamente como húmus vital, mesmo quando a mão do poeta necessita extirpar “todas as ervas daninhas”, sublinhando o vigor com a mãe-terra ou a Natureza, fonte de toda a vitalidade, numa indirecta recriação do mito de Anteu.
Desde tempos imemoriais, a Natureza sempre se constituiu como repositório ou “thesaurus” inesgotável de imagens poéticas — sobretudo ao nível das mais profundas estruturas antropológicas do imaginário (Gilbert Durant) –, também para abordar, simbólica e alegoricamente, o próprio fazer da poesia enquanto trabalho ou artefac-to verbal. Afinal de contas, tanto no cultivo da terra como no cultivo da palavra poética se busca afanosamente a colheita de “frutos únicos” (cf. Rodrigues, 2018: 17).
Como se este programa de escrita não fosse suficientemente explícito para a elaboração de uma verdadeira arte poética, elogiosa do dizer da poesia, ainda surge a referência a “regras” de composição. Estes e outros elementos remetem-nos para a vexata quaestio — exemplarmente abordada por Horácio, na sua Arte Poética, com ecos multisseculares[6] — de saber se a génese da poesia reside mais na inspiração ou no trabalho, como nos recorda exemplarmente o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto (1982).
É verdade que encontramos nestes versos alusões ao “fogo”, ao sopro e ao “vento” da inspiração (o “ingenium” dos Antigos, de Platão a Horácio); porém, a grande ênfase vai directamente para o trabalho (a “ars” dos clássicos). Dito de outro modo, reafirma-se neste canto metapoético de o rosto, sob a forma de panegírico da própria poesia, a importância do ofício laborioso do poeta. Não é por acaso que esta voz poética não fala de criação, mas muito mais de artefacto poético, pois, como nos recorda Vítor Aguiar e Silva (1986: 208 ss.) essa é uma tendência da modernidade: afastar-se de uma teoria do génio criador, envolto num misterioso processo de inspiração transcendente; e, por oposição, insistir na ideia de trabalho de construção, árduo e tenso, de contínua luta pela expressão. Afinal, num interminável e sempre insatisfeito labor, o poeta é um artífice consciente do seu ofício.
À maneira dos clássicos antigos, também o poeta contemporâneo se interroga sobre a função ou utilidade da palavra poética, quando fala expressamente em “versos inúteis” ou em “canto inútil” (Rodrigues, 2018: 25, 29); e ainda em outra formulação bem mais explícita: “mas o que é e para que serve / hoje a poesia me perguntas // não não sei nunca saberei / com certezas responder-te” (Rodrigues, 2018: 32).
Também aqui este pensamento poético se filia numa riquíssima tradição multissecular, estendendo-se desde os clássicos gregos e latinos, com destaque para o referido Horácio, até aos poetas contemporâneos, que continuam a interrogar-se sobre a natureza (essência) e a funcionalidade da poesia para o ser humano e para a sociedade[7].
Fica bastante claro que, não cedendo a tentações fáceis, a poesia não tem de justificar a sua finalidade dentro de uma lógica meramente utilitarista, pois enquanto linguagem estética integra as artes do sentido (G. Steiner). Porém, uma certeza se mostra indiscutível: perder a poesia equivale a perder o amor ou paixão de uma vida (cf. Rodrigues, 2018: 32). Ambas, poesia e paixão (ou a paixão da poesia) preenchem o sentido de uma existência.
E o livro de David F. Rodrigues termina, circularmente, num movimento que se fecha sobre o rosto. Com efeito, depois do poema-pórtico já mencionado, esta sequência poética termina com a afirmação — desejável ainda que efémera — do rosto enquanto busca de identidade e voz próprias, expressa de modo inefável:
“quando um dia inscrever
o meu poema na pétala mais breve
da mais simples flor de incenso
consentirei que ao posto
de poeta me dês rosto”
(Rodrigues, 2018: 35)
Pela sua natureza intrinsecamente genuína e especular, a poesia é o rosto individual de um poeta. Como também pode ser de uma sociedade: “A literatura é um assunto sério para um país, pois é afinal de contas o seu rosto” (Louis Aragon). Porque, afinal, o rosto espelha uma alma ou um coração, como os escritores bem sabem: “Por cada coração, terás um rosto próprio, essa será a medida justa” (José Luís Peixoto). Por tudo o afirmado, esta obra poética é simbolicamente o rosto mais amadurecido de David F. Rodrigues.
Referências:
AGUIAR E SILVA, Vítor (1986), Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina.
— (2008), “Sin poética hay poetas: ensaio de poética histórica. Sobre a fortuna da lírica ocidental”, in Helena C. Buescu (org.), Poesia e Arte da Poesia (Homenagem a Manuel Gusmão), Lisboa, Caminho, pp. 229–251.
CAMÕES, Luís de (1994), Rimas, Coimbra, Liv. Almedina (edição de Álvaro Júlio da Costa Pimpão).
CORREIA, Hélia (2013), A Terceira Miséria, Lisboa, Relógio d’Água [2012, 2ª reimpressão].
CORREIA, Natália (2000), Poesia Completa, Lisboa, Dom Quixote.
HELDER, Herberto (1968), Apresentação do Rosto, Lisboa, Ulisseia.
HORÁCIO (2012). Arte Poética, 4ª ed., Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian (ed. de R. M. Rosado Fernandes).
NETO, João Cabral de Melo (1982), Poesia e Composição (A Inspiração e o Trabalho de Arte), Porto, Fenda Edições.
RODRIGUES, David F. (2018), o rosto, Leça da Palmeira, Eufeme (Col. “Poetas da Eufeme”, 14).
VERDE, Cesário (1992), O Livro, Lisboa, Ática.
Notas:
[1] Mais concretamente, nascido em 1949, e a par da docência e da investigação na área das Letras/Humanidades, David F. Rodrigues é autor dos seguintes títulos no domínio da poesia: grãos de poesia (Braga, 1971); Vibração de Nervos (Ponte de Lima, 1976); o rito do pão (Coimbra, 1981); Dilúvio de Chamas (Porto, 1985); O que é feito de nós (Viana do Castelo, 1988); estes cantares fez & som escarnhos d’ora (Viana do Castelo, 2015). Além de outras obras em prosa (conto, novela), entre outros géneros textuais em colaborações dispersas por antologias e publicações periódicas.
[2] Apenas temos a informação, em nota de rodapé de que dois poemas tinham sido anteriormente publicados em Eufeme — magazine de poesia, 1 (2016), mas então providos de títulos: “discurso a refeição” e “ponto final”.
[3] Por vezes, nesta preocupação com expressividade da palavra poética, parecemos ouvir em eco, a lição de Cesário Verde (1992: 57) do célebre poema “Contrariedades”, na sua conhecida reflexão metapoética: “E apuro-me em lançar originais e exactos / Os meus alexandrinos”.
[4] Esta imagem que associa a palavra poético-literária ao alimento possui uma matriz clássica, que perdura naturalmente até à poesia portuguesa contemporânea — palavra como alimento intelectual, estético ou espiritual, imagem que Natália Correia (2000) hipertofria com entusiasmo no texto intitulado “A defesa do poeta”, em cuja última estrofe lemos essa asserção sobre a absoluta necessidade do alimento poético: “Sou uma impudência a mesa posta /de um verso onde o possa escrever / ó subalimentados do sonho! / a poesia é para comer.” Acrescente-se, já agora, a nota da própria escritora sobre a circunstância da génese deste poema: “Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória. O que não fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença.”
[5] Assim remetendo para o poema seguinte, cujo terceto de abertura podemos ler: “se eu fosse poeta de ofício experiente / e garantido faria como este melro” (Rodrigues, 2018: 27).
[6] “Há quem discuta se o bom poema vem da arte se da natureza: cá por mim, nenhuma arte vejo sem rica intuição e tão pouco serve o engenho sem ser trabalhado: cada uma destas qualidades se completa com as outras e amigavelmente devem todas cooperar” (vv. 408–9). Assim medita Horácio, na célebre distinção — complementar, e não dicotómica — entre estudo (studium) e inspiração ou engenho (ingenium) (Horácio, 2012: 155).
[7] A questão revela-se verdadeiramente intemporal — na referida Arte Poética de Horácio (2012) afirma-se claramente a dupla função da utilidade (ensinar) e do deleite (agradar): “Aut prodesse uolunt aut delectare poetae” (v. 333) e “utile dulci” (v. 343). De um modo agónico, também a poetisa Hélia Correia (2013: 15), entre outros autores, se interroga sobre o lugar da poesia em tempos de acentuada crise contemporânea: “Para quê, perguntou ele, para que servem / Os poetas em tempos de indigência?”.
OBS. – Texto de apresentação de o rosto, na Biblioteca Municipal de Ponte de Lima, no dia 27-04-2018, publicado, depois, AQUI (Caliban – Revista de letras artes e ideias), e em Ponte de Lima: do passado ao presente, rumo ao futuro! (n.º4, julho 2018), pp. 113-121, com transcrição AQUI.
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Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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