O rosto, a face. Sinónimos puros ou nem tanto? Dois nomes que proliferam no nosso vocabulário, corrente e poético, denotando certas e subtis distinções de natureza semântica. O nosso filólogo e linguista Frei Francisco de S. Luís, vulgo Cardeal Saraiva, na obra Ensaio sobre alguns Synonymos da Lingua Portugueza, agrupando Cara – Rosto – Semblante – Face – Vulto, opina que, em relação às duas primeiras, «Rosto tem uma significação mais ampla; e parece exprimir a parte dianteira, que é juntamente a mais saliente, ou a que mais aparece, ou primeiro se adverte, tanto no homem, como em outros objectos.» Por sua vez, «face tem seu particular uso quando queremos falar das côres, e de outras propriedades, que se percebem pela superfície dos corpos.» (1856, págs. 25/27) Digamos que face espelha o perfil anatómico, enquanto rosto revela o nosso ser e estar mais profundo e enigmático.
Reportado ao universo poético, o rosto será, assim, uma espécie de percursor da mensagem, a sua embrionária e semioculta expressão. «O rosto com que fita é Portugal» – escreve Fernando Pessoa na Mensagem, referindo-se à Europa. Fitar é um processo de (re)conhecimento. Vários poetas e outros autores, ao longo do tempo, têm explorado, recorrentemente, em sentido mais amplo ou mais restrito, os conceitos de olhar e ver. Olhar será uma função de natureza meramente orgânica; já ver configura uma atitude consciente e ativa perante um sujeito, um objeto, um cenário; um observar e interpretar em atualidade e circunstância, rodeado, se não submerso, de / num torvelinho de seres e coisas, dinâmicas ou estáticas, num processo de desafio, assédio, provocação.
Recorro novamente à obra referida do ilustre limiano e monge beneditino. Na entrada: Olhar – Ver – Esguardar – Avistar – Enxergar – Lobrigar – Divisar -, estabelece, entre outras, a seguinte distinção: «OLHAR é lançar os olhos; aplicar o orgão da vista. VER é o efeito do olhar: é apprehender com a vista o objecto a que se lançárão os olhos: é sentir a impressão, que o objecto fez, no orgão da vista. (id. 171) José Saramago, por sua vez, epigrafa o Ensaio sobre a Cegueira (1995, 3.ª ed.) com uma máxima retirada do Livro dos Conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»
Reparar é, pois, apreender algo no seu todo, a partir da observação das particularidades e acessórios da sua constituição orgânica. É, digamos, um exercício de seletividade e interiorização, visando superar o propagado conceito do Principezinho de Saint-Exupéry quando afirma que «o essencial é invisível aos olhos; só se vê bem com o coração». Em sentido coincidente, Alberto Caeiro, criação heterónoma de Pessoa, por seu lado, leva a extremos gnosiológicos (ou anti-gnosiológicos) o processo da visão, esvaziando-o de toda e qualquer interferência racional do agente observador. Nos seus Poemas (1963, 3.ª ed.), recorrentemente, direi mesmo obsessivamente, o irracionalismo (ou a-racionalismo?) constitui uma atitude metódica e sistemática, conferindo domínio absoluto à espontaneidade e à autenticidade do sentimento projetado sobre o mundo dos seres e da natureza. Percorrendo o livro, a par e passo surpreendemos versos vinculando tal opção. Por exemplo, entre outros: «Pensar é não compreender… O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos).» (pág. 22); «Penso com os olhos e com os ouvidos/ E com as mãos e os pés/ E com o nariz e a boca.» (pág. 37), etc. As coisas na sua pura individuação e indivisibilidade, imunes a preconceitos e pressupostos. José Gil, figura cimeira do nosso ensaísmo, com trabalhos consagrados ao complexo pessoano, na sua obra Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa, comenta o objetivismo irracional e sensorial de Caeiro nos seguintes termos: «Recusando qualquer transcendência, ele vive, por assim dizer, “no plano da natureza”; aspirando à pura exterioridade, troça da metafísica e dos seus mundos “interiores”.) (1999, pág. 15) E, pouco depois, afirma: «é o único ser humano capaz de ver naturalmente, sem esforço. Todos os outros precisam de aprender a ver. Aprender a desaprender, como escreve Caeiro, para se ter acesso a uma visão espontânea e natural.» (id. pág. 17)
O rosto, pois. O que de nós é espelho, mesmo se baço, mesmo quando poliédrico. Onde aflora a substância magmática do nosso eu profundo, desagua o caudal tumultuoso de sentimentos, volições e sensações expressos em traços de serenidade, crispação, dúvida, angústia, etc. – tantos e tais consoante o estado psicossomático de cada um em cada momento. Transposto para este plano, também o exercício poético ao rosto se anuncia sempre que o poeta nele se concentra. Ecrã, expositor, retrato em negativo, nele aflui o júbilo pela palavra descoberta e transformada em fonte de emanação do ser, no seu estado de atualização e contingência, também de porfia em superar os limites que os naturais constrangimentos lhe impõem.
Existe no rosto uma dupla capacidade funcional: ler e deixar-se ler. Se tem sido dada à propriedade ativa uma maior ênfase nestes parágrafos introdutórios, não menos importante se torna poder ler um rosto na sua autêntica aparição constituída de complexidade e mistério. Se ele nos fornece «uma imagem de si à qual o indivíduo se deve conformar» (Erving Goffmam, citado por Claudine Haroche em História do Rosto (Círculo de Leitores, 1997, pág. 9); se, como afirma Johann Jakob Engel, ele se constitui em «principal morada dos movimentos da alma» (ibidem, pág. 109), é apenas por um jogo reflexo que o poderemos tomar como janela reveladora da própria interioridade. Ninguém se pode autocontemplar face-a-face, impossibilidade figurada no mitológico Janus bifacial, cujos rostos se encontram em posição diametralmente oposta. Cabe ao interlocutor, como agente externo, essa prerrogativa de poder ler um rosto na sua genuína e desnuda figuração. Tratando-se da dimensão artística essa leitura devém e é condicionada pela impressão que a obra em apreço provoca. Nela se revela, com efeito, em retrato ou caricatura, em autenticidade ou fingimento, o rosto mais ou menos acessível autor. É uma espécie de ato maiêutico o que o leitor crítico pretende exercer sobre o íntimo de uma obra, conectando-a com a correspondente intensidade explícita, insinuada ou mesmo imaginada, da fisionomia do autor, enquanto sob dependência da pulsão criativa, desta forma estabelecendo uma interação entre a essência do texto e a personalidade nele projetada.
Este rosto, portanto; o rosto de David F. Rodrigues (1), autor de algumas navegações-périplos já antes ousadas pelos mares, quase sempre procelosos e hostis, da aventura poética. Neste livro o autor reflete, perante o desconcerto do mundo e os equívocos quanto à sua possível salvação, uma atitude de desassossego e de desesperança. Abre com duas citações, uma de Camões, outra de Herberto Hélder. Do primeiro:
«Canção, não digas mais; e se teus versos
À pena vêm pequenos,
Não queiram de ti mais, que dirás menos.»
(Lírica Completa III, Lisboa – IN-CM, 1981, pág. 23.)
E do segundo:
«Gostaria de escrever o livro de que tenho medo.»
(Apresentação do Rosto, Ed. Ulisseia, Lisboa – 1968, pág. 18.)
E logo no poema de abertura («1» / pág. 9), breve e incisivo, a consciência resignada dos limites que a natureza impõe à ilimitada aspiração ao suprassumo lírico:
«se um dia der
a minha vida um livro
uma só página há de ter
o rosto»
O termo “rosto” pode conter, aqui, uma certa ambiguidade, não estranha às linhas introdutórias deste apontamento, dado que tanto pode significar a “página de rosto” (no glossário editorial correspondente à página ímpar inicial de um livro, contendo os elementos principais: título, autor, género literário, editor, local e data, etc.), como o próprio rosto do poeta, único comportável em tão exíguo - «uma só página» – campo de observação.
É nesta perspetiva que convém englobar e interpretar o conjunto de 23 poemas em apreço: como emanação reflexa do sujeito poético. Curiosamente, (sintomaticamente?) o lexema “rosto” apenas se repete no último poema do conjunto. Nele o autor, ancorado na praia da suspensa deriva, afirma o propósito tenaz de um dia merecer alcançar o rosto (o estatuto) de poeta:
«quando um dia inscrever
o meu poema na pétala mais breve
da mais simples flor de incenso
consentirei que ao posto
de poeta me dês rosto»
(«23» / pág. 35)
Que diz, do que fala o autor neste pequeno livro? É preciso, para uma resposta cabal e consequente, reportarmo-nos à sua obra anterior, sobretudo a estes cantares fez & som escarnhos d’ora - (Viana do Castelo, 2015) onde a ironia e o maldizer implicam um mais vasto e complexo mosaico de intenções e intervenções. Se nunca a poesia deve adotar uma atitude passiva, distanciada ou indiferente perante a vida da cidade, esta obra reflete-o com a veemência de quem vê e alcança para além do imediato, do superficial, do aparente. “Vi como um danado”, poderia ele dizer, citando o Alberto Caeiro atrás comentado. Referindo-me àquele livro, escrevi que o autor «foi buscar suporte trovadoresco para unir um conjunto de poemas escarninhos, de um escárnio que nada tem de gratuito entretém, de justas estéreis e floreios para regalo de palacianos ociosos. É excelente pela sua contundente dimensão interventiva num Portugal contemporâneo órfão de referências mobilizadoras, vazio de valores, mergulhado no pântano de todas as vilanias e corrupções. (Suplemento CULTURA do Diário do Minho de 16-12-2015)
Essa sua visão implacável e visceralmente pessimista perante uma realidade que o rodeia e tenta submergir; essa radiografia de um povo acrítico e subserviente num país de assimetrias e gritantes desníveis sociais, podemos dizer que, se não tão cruamente, ainda se repercute neste novo livro. «lavrador de terra mais que ingrata sou», assim se define David F. Rodrigues, metaforicamente, na luta inglória por erradicar da sementeira as «ervas daninhas» e aliviá-la «de toupeiras ratos e outros males». Depois, «mal chega o mês da colheita / já bicho de avaro bico e boca insatisfeita / saciado está em me fazer desfeita // resta-me então o restolho raseiro.» («9.» / pág. 17) Concebe a poesia como uma espécie de lavoura de subsistência e lamenta, com injustificada modéstia, a sua inaptidão para um cabal granjeio, tomando-a como a força da sua fraqueza:
«a poesia não é
o meu forte a poesia é
o meu fraco
a poesia é
a força da minha fraqueza»
(«2.» / pág. 10)
E, suspiroso, escreve no poema «6.», pág. 14: «tivesse eu encontrado já / a palavra única que procuro / há volta de meio século / para compor o simples verso».
A poesia resultará, pois, de um esforço tenaz e contínuo em aprimorar a linguagem que, por sua vez, tem como função primeira penetrar e desvelar o ser e o mistério da existência. Natália Correia, numa ousada e original noção, chega a considerar a poesia como comestível, algo que entra no sistema alimentar do nosso espírito. Também David F. Rodrigues comunga do mesmo ponto de vista quando, poema «4.», pág. 12, escreve:
«é com poucas e vulgares palavras
como géneros de pura subsistência
que cuido e preparo os alimentos
que maior prazer à língua me dão
é na irrepetível e cuidada sintaxe
dos seus aromas texturas e cores
selecionados com persistência
verso a verso discurso a refeição
busco só parcos e refinados sabores»
Noutra perspetiva, poderemos falar numa relação amor / desamor insuperável, experimentada no limite de um discurso que sempre fica aquém do desejado, provocando estados de ansiedade e angústia:
«a mim a poesia faz-me
um mal terrível vício
contraído na juventude
incorrigível devora-me
noite e dia horas a fio
(…)»
(«13.» / pág. 23)
Não por mera e balofa vaidade, antes pelo desígnio e porfia de iluminar o mundo com a mais pura claridade que dorme no interior adormecido das palavras. Nesse sentido ridiculariza quem busca fama e proveito através da mediocridade e da prosápia, como se lê neste excerto do poema «16.» / pág. 28:
«para busto teres na praça
não basta rimares de graça
precisas doutra resposta
evita a bota na bosta
nunca terás o que pedes
cheirando assim como fedes»
David F. Rodrigues vive a poesia como algo essencial para a legibilidade possível do mundo, dos seus mistérios, desafios, paradoxos. Sabe que ela estabelece a ponte entre seres irmanados nos mesmos sentimentos, medos, aspirações. Ostensivamente militante e contestatária, ou remetida a um lirismo sereno e intimista, a poesia será sempre um laço de fraternidade a unir os homens e o melhor antídoto contra as mesquinhas ambições que fazem correr tanto zoilo ao arrepio dos valores fundamentais.
«mas o que é e para que serve
hoje a poesia me perguntas
não não sei nunca saberei
com certezas responder-te
só sei que por ela foi
que um dia te encontrei
só sei que sem ela um dia
corro o risco de perder-te»
(«20.» / pág. 32)
Ao ler este poema ocorreu-me uma genial observação de Jorge de Sena que não resisto a citar: «Não chegamos a dois mil anos de entendimento crítico do que a poesia seja, para continuarmos ainda a discutir o que ela devia ser.» (Poesia e Cultura, Porto, 2006, pág. 99) De facto, filósofos, filólogos e ensaístas. De todos os tempos e de todas as latitudes têm tentado ingloriamente esse cometimento. Revolucionária da escrita, devassadora dos mais profundos e insondáveis arcanos da natureza humana e dos mais impenetráveis mistérios do mundo, cabe ao poeta, a cada verdadeiro poeta, a possibilidade de sobre ela lançar uma minúscula partícula de luz, aquela lábil faúlha que resulta do espanto de um olhar-ver-penetrar sobre a essência e a circunstância que o estimula, aquele espanto que Theodor Adorno entende ser «um longo e inocente olhar sobre o objeto». Assim a poesia de David F. Rodrigues. A sua disciplinada contensão, na sua original riqueza construtiva, com frequente recurso a tropos, elipses, síncopes, hipérboles e outros instrumentos gramaticais, propícios a leituras múltiplas e sobrepostas, ele figura de pleno direito no restrito grupo de poetas portugueses e estrangeiros que conseguem «surpreender um instante da existência, recriá-lo poeticamente como quem faz uma fotografia», como afirmou recentemente José António Gomes no jornal As Artes entre as Letras (n.º 211, 31-01-2018, pág. 11).
Por tudo quanto disse e pelo muito que deixei de dizer, aconselho vivamente leitura de O Rosto. Leitura que não pode ser apressada nem desatenta, antes digerida com o vagar que merece a fruição de boas iguarias.
(1) – Coleção «Poetas da Eufeme» n.º 14. Leça da Palmeira, Eufeme, 2018. Capa de Sérgio Ninguém.
Texto de apresentação da obra no Instituto Politécnico de Viana do Castelo em 9 de março de 2018.
OBS1. – Publicado em Cultura – Suplemento de o Diário do Minho, de 30/05/2018, pp. II-IV, acessível também AQUI, com transcrição AQUI.
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
Sugestões