Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima - Cinco Séculos de Dedicação e Espírito Solidário

 

Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima - Cinco Séculos de Dedicação e Espírito Solidário



João Maria Carvalho



  As necessidades profundas e as situações de dificuldade por que passam muitas pessoas que connosco se cruzam não são exclusivas da história do presente. Desde sempre foi necessário acudir a pessoas com mais carências e socialmente desprotegidas.

Na Idade Média, o povo representava o elo mais fraco de uma sociedade dominada pela força da nobreza e do clero. Muitas pessoas viviam abaixo do limiar da pobreza, escravizadas, dominadas. Mesmo assim, o teocentrismo vigente alimentava-lhes a fé e a crença num Deus carinhoso que mais cedo ou mais tarde retribuiria a cem por um.

Muitos percorriam os caminhos da sua devoção em busca desse amor mais alto que os poderia compensar depois de uma peregrinação a um lugar sagrado. Outros eram atormentados por doenças sem cura. Outros, ainda, viviam uma vida de miséria, muitas vezes envergonhados no nada da sua existência.

Para minimizar todo este quadro de desgraça, começaram a aparecer albergarias, hospitais e outras ofertas que, pelas mãos da Igreja, sobretudo das ordens religiosas apoiadas pela nobreza, iam ao encontro das carências de um povo em desgraça.

É neste contexto assistencial que surgem as Misericórdias em Portugal. Foi decisiva a intervenção de D. Leonor, irmã de D. Manuel I, que em 1470 se tornou Rainha ao casar-se com D. João II.

D. Leonor de Portugal (ou D. Leonor de Lencastre) esteve na origem do hospital termal das Caldas da Rainha, destinado a continuar a assistência a quem dela precisasse, independentemente da classe social a que pertencia. Mas a obra de maior envergadura, de assistência aos mais necessitados, consistiu na fundação, em 1498, das Misericórdias de Lisboa, perseguindo os ideais cristãos de ajuda ao próximo. Crê-se que a cerimónia da fundação terá decorrido nos claustros da Sé de Lisboa, na capela da Nossa Senhora da Piedade da Terra Solta, onde hoje podemos ver, para além da dita capela, uma lápide a assinalar a efeméride, aí colocada em 1985 pela União das Misericórdias Portuguesas, por altura do seu 2º Congresso Internacional.

A partir daí, muitas outras Misericórdias foram criadas em Portugal, sempre orientadas por pessoas de boa vontade que se sujeitavam às regras do Compromisso, atentas aos princípios cristãos de amor e ajuda ao próximo. O Compromisso estabelece regras, princípios e orientações destinadas ao bom funcionamento das Misericórdias e a ele foram aderindo todas as Misericórdias.

É neste contexto que nasce a Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima, fundada em 2 de Agosto de 1530 por alvará de El-Rei D. João III, escrito pela pena de André Pires, como comprova a cópia do documento existente no arquivo da Instituição.

Como muito bem refere o ilustre historiador limiano António Matos Reis, na sua obra Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima no passado e no presente – cuja leitura vivamente proponho - Ponte de Lima foi espaço privilegiado para passagem de romeiros e peregrinos que demandavam Santiago. Terra geograficamente bem posicionada, bem cedo foi contemplada com espaços de assistência como hospitais e albergarias, como o Hospital de S. Vicente dos Gafos (1177) ou o Albergue dos Peregrinos fundado em 1480 por D. Leonel de Lima, Alcaide Ponte de Lima e primeiro Visconde de Vila Nova de Cerveira. Estes vieram a tornar-se, no tempo de D. João III, espaços de serviço e assistência a peregrinos e pessoas necessitadas, agora sob a orientação da Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima que, para o assegurar, se valia da ajuda de pessoas de bem que contribuíam com esmolas e doações.

Assim foi crescendo a Instituição. Porque orientada pelos princípios de Deus e da Igreja, também foi ampliando os espaços de culto: a Igreja da Misericórdia actual, situada naquele que era o todo do Hospital da Praça, cortado pelas obras de 1924-1925 para que a rua Cardeal Saraiva pudesse chegar ao rio, é o produto de ampliações sofridas ao longo dos anos sobre a capela da Misericórdia. Gostaríamos que não passassem despercebidas duas peças aí existentes: um relevo em madeira policromada representando N. S. da Misericórdia e o retábulo também em madeira policromada que representa a multiplicação dos pães: o primeiro ao fundo da Igreja e o segundo situado no frontal do altar-mor. 

A Misericórdia alargou o seu campo de acção proporcionando assistência aos presos e neste contexto surge no início do séc. XVII aquela que agora dá pelo nome de Capela de N. S. da Penha de França, junto ao Arco da Porta Nova, por Provisão do Arcebispo de Braga, D. Frei Agostinho de Jesus, de 24 de Abril de 1592, mandada construir para que aqueles presos, instalados na cadeia em frente, pudessem assistir aos atos de culto.

O património foi crescendo face à justiça da causa que a Instituição abraçara: a de concretizar para os mais necessitados os princípios articuladores da doutrina social da Igreja resumida nas Obras de Misericórdia, estimulando benfeitores que lhe foram doando e transmitindo todos ou parte dos seus bens.

Para além destes dois imóveis, património cultural de carácter religioso, outros merecem destaque no conjunto do património cultural da Instituição: o palacete e quinta Villa Moraes, o Consistório, a antiga Casa da Roda no parque da Lapa, a Casa da Fonte do Pinheiro, a Casa da Cavada na Facha, a Casa do Outeiro em Moreira do Lima e muitas alfaias religiosas e telas de cariz religioso e de benfeitores com datas registadas desde o séc. XVIII atá aos nossos dias.

O palacete Villa Moraes, mandado construir no princípio do séc. XX por João Francisco Rodrigues de Morais (1851-1936), constitui uma réplica do palácio do irmão Miguel Rodrigues de Morais, em Salvador da Baía, e foi integrado na Misericórdia em 1978, por extinção da Oficina de S. José, nessa altura a funcionar na Villa Moraes, que tinha sido comprada pelo seu fundador, o Cónego Manuel José Barbosa Correia, “à filha e aos netos do fundador do palacete (filha Noémia e seus filhos Teresa Maria, Rosa Maria e Duarte Belfort Cerqueira Rodrigues de Morais, residentes em Lisboa) em 1960 por cerca de 1500 contos”, como bem explica Tito de Morais, sobrinho bisneto do fundador.

Em 1978 foi também integrado na Misericórdia o antigo Asilo de Infância Desvalida D. Maria Pia, obra fundada e presidida pelo Dr. António Magalhães, agora restaurado e a funcionar como lar de acolhimento de jovens, com capacidade para 40 utentes.

O Consistório, espaço anexo à Igreja da Misericórdia, continua a ser um espaço nobre de reuniões e exposição de telas de amigos e beneméritos da Misericórdia.

Imponente, com largo olhar sobre a Vila, ergue-se a Casa da Roda. A antiga Roda de Ponte de Lima, no largo da Lapa, que foi criada em 8 de Outubro de1787, por decisão camarária, para promover a assistência ao grande número de crianças vítimas de enquadramentos familiares mais desfavoráveis. Consulte-se, a este propósito, o pormenorizado e profundo trabalho apresentado na obra No Limiar da Honra e da Pobreza. A Infância Desvalida e Abandonada no Alto Minho (1698-1924), de Teodoro Afonso da Fonte, na pág. 158. Já na pág. 153 da referida publicação, complementada com desenho da Casa, diz-se que “A obra foi concluída em 1853 (…) ficando localizada na parte superior do calvário da vila, fora do perímetro amuralhado e num local bem acessível, tendo as suas armas reais sido executadas pelo mestre pedreiro Tomás Gonçalves (…)”. Estas armas reais encontram-se, no momento, no Museu dos Terceiros, nesta Vila. Ponte de Lima proporcionou, assim, acolhimento a muitas crianças que, abandonadas, ali eram “expostas”.

A Casa da Fonte do Pinheiro - sede administrativa da Santa Casa – é o espaço mais próximo da praceta Dr. Álvaro Vieira de Araújo, também ele um grande conjunto habitacional e comercial, propriedade da Misericórdia limiana que, para além de muitas famílias, acolhe e instala, por exemplo, o Instituto Britânico e um polo de uma Escola Profissional.

O Hospital Conde de Bertiandos dignifica a Instituição pelo alto contributo dado à prática dos serviços assistenciais de saúde no concelho. Tem a sua origem nos serviços prestados pelo Hospital da Praça e depois transferidos para o edifício que hoje dá pelo nome de Paço do Marquês, em pleno centro da Vila, que, segundo Tito de Morais, foi deixado em testamento à Misericórdia pelo seu proprietário, Francisco António da Cunha de Magalhães, para que aí viesse a ser instalado o hospital depois do usufruto concedido às irmãs até 1927. Mais tarde, em 29 de Junho de 1953, em tempo do Provedor Dr. Filinto de Morais, iniciou-se a obra da construção do actual hospital Conde de Bertiandos, nome que presta homenagem ao grande benemérito da Instituição que foi o Dr. Gonçalo Pereira da Silva de Sousa e Menezes, 3º Conde de Bertiandos, através da doação à Misericórdia de mais de metade dos seus bens, em 1946, com um valor de aproximadamente 800 contos.

A um valioso património cultural de conjuntos arquitectónicos como a Casa do Outeiro, em Moreira de Lima, ou a Casa da Cavada, na Facha, e muitas alfaias religiosas, telas a óleo com motivos bíblicos e/ou benfeitores da Instituição, datadas do séc. XVIII até à actualidade, acrescem os bens que permitem à Instituição, através de meticulosa e cuidada administração, praticar a assistência social para que se propôs no seu Compromisso e sintetizada nas sete obras de misericórdia corporais e em outras tantas espirituais. Estão neste rol muitas e grandes propriedades agrícolas e florestais em freguesias do concelho como Arca, Bertiandos, Facha, Fontão, Moreira do Lima, Sá, S. Martinho da Gândara e Vilar do Monte.

Durante o ano de 2015, verificou-se um aumento significativo do número de colaboradores com a entrada em funcionamento do Centro Comunitário de Arcozelo da Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima, em construção desde 2010, através de uma parceria com a Junta de Freguesia de Arcozelo que, para o efeito, ofereceu o terreno onde se encontra implantado. Aí foram investidos quatro milhões e meio de euros, mais propriamente 4.458.470,02 euros (valor da adjudicação da obra), num projeto que foi comparticipado pelos programas ON2, MODELAR e PRODER e, ainda, apoiado pela Segurança Social. O Município de Ponte de Lima colaborou, também, com 20% do valor elegível da obra. Foram acrescidos custos do equipamento, com valores que rondaram o milhão de euros, de forma a serem prestados serviços de assistência social e educação, através de quatro valências, a cento e trinta e cinco utentes: a Creche, o Centro de Dia e a Unidade de Cuidados Continuados de Longa Duração e Manutenção (UCC-ULDM), cada um com capacidade para 30 utentes, e a Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI), com capacidade para 45 utentes.

No final do ano de 2015, integrado numa candidatura ao Portugal 2020 (POISE), foi assinado um protocolo entre a Instituição e a Segurança Social, com o objectivo de descentralizar os serviços de acção social do concelho, através da Rede Local de Intervenção Social (RLIS). No protocolo estabelecido também está prevista uma parceria e articulação com Comissão Nacional de Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens, possibilitando o acompanhamento de crianças e jovens em situação de perigo e contribuindo para o trabalho de prevenção nesse âmbito. A RLIS é responsável pelo Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social (SAAS), através do qual se pretende assegurar o atendimento e o acompanhamento de pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade e exclusão social, bem como intervir em casos de emergência social.

Em Ponte de Lima, na casa-mãe, continuam a ser disponibilizados os serviços já existentes em parceria com a Segurança Social. Para além do apoio social do Rendimento Social de Inserção (RSI) a, aproximadamente, 100 famílias do concelho (na margem esquerda do Rio Lima), continuam a ser prestados os serviços às crianças, aos jovens e aos idosos, mais concretamente, através das valências da Creche, com capacidade para 96 utentes, do Jardim de Infância, com acordo de cooperação para 62 crianças, do Lar de Jovens D. Maria Pia/S. José, com capacidade para acolher 40 crianças e jovens, e do Lar de Idosos Cónego Manuel José Barbosa Correia (ERPI), que presta cuidados a 85 utentes.

Ainda num acordo com a Segurança Social, a Instituição disponibiliza o serviço Cantina Social que faz parte do Programa de Emergência Social e do Protocolo de Cooperação 2011-2012, através do Programa de Emergência Alimentar. Ao abrigo deste Programa, a Instituição, dando resposta a “situações de grave carência social”, serve cerca de meia centena de refeições diárias que, na sua maioria, são gratuitas ou custam ao utente até um euro, em função do grau de carência verificado.

 Hoje, a Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima constitui-se como uma Instituição que presta altos serviços de assistência social e de educação, através de uma equipa diversificada de colaboradores que, pelo número, ocupa o segundo lugar dos empregadores do concelho, logo a seguir à Câmara Municipal, com um total de 153 colaboradores, distribuídos pelas várias valências e serviços. A gestão está a cargo de uma Mesa Administrativa, constituída por 11 elementos (7 efectivos e 4 suplentes) que, sob a orientação do Provedor, e de forma graciosa, produzem um trabalho de misericórdia (miseris+cor+dare = dar o coração aos mais necessitados) através de um trabalho de gestão bem orçamentado e cumprido com rigor.

Desta forma, a Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima, Instituição com protocolos firmados com a Segurança Social, ARS, Município de Ponte de Lima, União das Misericórdias Portuguesas, Instituto de Emprego e Formação Profissional e Junta de Freguesia de Arcozelo, continuará a fazer jus à causa que abraçou e que o seu Compromisso, no Artigo 1º, define como “(…) uma associação de fiéis constituída na ordem jurídica canónica com o fim de satisfazer carências sociais e outras, e de realizar actos de culto canónico (…).

 Pelo bom desempenho e pelo excelente trabalho realizado, de que se vai fazendo informação pública através do seu Boletim Informativo, editado semestralmente, a Instituição foi agraciada em 1997 com a Medalha de Ouro de Mérito Municipal entregue no Dia de Ponte de Lima, 4 de Março, ao Provedor de então, Fernando Augusto Vasconcelos Calheiros de Barros.

 

 Bibliografia:

  •  MATOS REIS, António – A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA NO PASSADO E NO PRESENTE – Ponte de Lima, SCMPL, 1997
  • FONTE, Teodoro Afonso da – NO LIMIAR DA HONRA E DA POBREZA – A INFÂNCIA DESVALIDA E ABANDONADA NO ALTO MINHO (1698-1924) – Ed. Ancorensis Cooperativa de Ensino, CRL-NEPS (Universidade do Minho), V. P. Âncora, Dezº 2005
  • MORAIS, Adelino Tito de - BOLETIM INFORMATIVO – SANTA CASA DA MISERICÓRDIA, SCMPL – NºS 4, 11, 12, 13, 15, 17.
  • ARQUIVO da SCMPL.

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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