In: Flama, n.º 842, 24 de Abril de 1964
Rubrica: “como vivem os escritores portugueses”
Se me dão licença, apresento-lhes desta vez outro escritor nortenho: o Sr. Conde d'Aurora. É alto, muito alto, magro, cabelos despenteados e esbranquiçados, um sorriso franco em todo o rosto, e os olhos, sim, tem os olhos como os dum pescador: encovados e perfurantes, habituados a descobrir o mar e o sopro das montanhas, a perscrutar os homens e as suas ínfimas reacções. Sempre que me encontrei com ele, em Viana do Castelo, Ponte do Lima, ou na sua casa de Geraz, sempre me pareceu mais um lavrador que o ilustre decano dos juízes dos Tribunais de Trabalho. Ele próprio se confessa «Juiz – debruado de lavrador». O chapéu amarrotado, o sobretudo enorme ou o casaco desapertado, a despretensão em todo a vestir dizem do homem do povo, amigo como ninguém do seu povo, com este sorriso franco que o pintor Henrique Medina tão bem lhe encontrou, e nós publicamos.
O Dr. José de Sá Coutinho (3.º Conde d'Aurora) nasceu em Ponte do Lima, no final do século XIX. Ficou sem pai aos trinta dias e sem mãe aos doze anos. «Foi educado por uma irlandesa, a quem deve muito, e pelo povo da Ribeira Lima, a quem não deve menos». Como ele próprio confessa, foi «deseducado pelos liceus dos primeiros anos da República» nos quais, conforme acrescenta, «até facadas houve, no final do seu 7.º Ano de Letras...» Em Coimbra concluiu o curso de Direito. Em 1919, durante a monarquia do Norte, esteve emigrado político na Espanha, no Brasil, e na Argentina, e «emigrado terapêutico» em França.
O escritor pensa que a infância e a juventude têm influenciado muito a sua obra. Eis porque relatei isto tudo, e ainda relembro outro facto que uma vez contou: a noite de Natal dos seus doze anos passada no colégio, «castigo do meu tutor por eu ter comprado por cinco mil réis um revólver, aliás sem balas. Esse tutor, oficial-mor do Paço e da Academia de Ciências, nunca vira um western. No dormitório álgido, entre 399 camas desabitadas: pior que uma estrebaria de Belém...» Este foi talvez o primeiro ambiente para a sua atitude literária.
MÉTODOS DE TRABALHO E MESTRES DO ESCRITOR
Quem conhece os livros do Conde d'Aurora percebe porque lhe chamei escritor combativo, vanguardista e democrata. Não só nos livros, como nos seus artigos, o Conde d’Aurora está sempre na vanguarda dos problemas, a tratá-los sem medo das palavras nem das ideias, a enfrentá-los destemida e rudemente. Se lhe falo no seu estilo original e vigoroso, diz simplesmente: «escrevo como penso e falo; é acaso antes mais uma ausência de estilo do que propriamente estilo».
E como escreve o Conde d'Aurora?
Rápida e garatujadamente, alinha o que o subconsciente ideou, acrescentando-lhe uma espécie de entrelinhas ou de apartes que vão ocorrendo durante essa escrevinhação. Corta, entrelinha, deixa espaços brancos quando se esquece do vocábulo e não se dá tempo de o lembrar, e coloca interrogações marginais para futura oportuna referenciação, espaços para citações, etc.
Depois revê o borrão passado à máquina (quando é passado à máquina, pois há os linotipistas que lhe percebem a indecifrável letra); cata os ques, as repetições e as rimas, e verifica nos dicionários se o subconsciente o não o atraiçoou em certos termos vernáculos – «caso muito raro, devo dizer-lhe.» Mas tudo se passa subconscientemente, o subconsciente encarrega-se de tudo.
Se lhe pergunto quem foram os seus Mestres, é assim que o autor do Roteiro da Ribeira Lima, com o sorriso costumado, responde: «Foi essencialmente o Povo, o Povo das feiras e romarias; das praças de touros e das terceiras dos Caminhos-de-Ferro; o das batotas e das vindimadas; das zaragatas e das peregrinações; chauffeurs de praça e ferradores: o meu maior e melhor mestre, o Povo, único seguro na escolha do vocábulo!
«E aqueloutros mestres da língua que leio e releio, todos os anos, como quem gargareja – faço todos os Verões até uma cura de Camilo, relendo uma dúzia de livros desse Mestre, de quem aliás não gosto em demasia como escritor… (Mas também não gosto do perclorato de potássio, e é muito superior, para as goelas doridas, ao Vinho do Porto e ao chá da Índia…»)
Durante muito tempo o Conde d’Aurora supôs que as penas de tinta permanente não davam vazão à rapidez da sua escrita. Há uma dúzia de anos apercebeu-se do engano. Foi dos primeiros a descobrir a esferográfica e escreve também a lápis. Tudo menos à máquina – «respeito-a imenso, mas não lhe sei tocar. Para mim é como o violino, exactamente (e não sei solfejo)». E acrescenta: «O meu outro eu pretende usar papel Whatman e tintas de várias cores (siena, púrpura) mas isso só acontece nas cartas literárias a amigos (como a de escrita circular, autógrafa, de que há umas 18 ou 20 minhas, creio eu) – pois na prática escrevo em quartelas de papel almaço, comprado no quiosque da esquina, e me serve também para a vasta correspondência pessoal diária.»
Prefere escrever onde não haja rádios. Breve, será talvez só na cidade. Mas no remanso de Geraz do Lima, quando aquele admirável povo, irmão e amigo, cala os seus 65 rádios de pilhas registados na freguesia, «por amor do meu talvez egoístico sossego» – ao som do chiar do carro de bois descendo a encosta ou do coral de sachadeiras florindo a veiga, ainda lhe é doce escrever... «Na cidade e no avião estratosférico – declara – escrevo com a mesma facilidade. Mas às alturas habitacionais modernas dos décimos e décimos quartos andares (como no meu quarto do «Comodoro» de S. Paulo) tenho vertigens e mareio-me.»
Acha que a sua profissão não é incompatível com a obra literária. Pelo contrário. Uma audiência de tribunal, verdadeira (e nada mais teatral e espectacular do que uma audiência real) – diz – é dos documentos humanos mais espantosas e ensinadores.
PREFERÊNCIAS E PROJECTOS
Gosta de viajar, mas com todo o conforto e independência, o que raras vezes lhe tem sucedido na vida. Em literatura, não segue directrizes, se não as de, «usando a forma e a linguagem menos má que posso, tentar contribuir com os meus escritos para uma sã doutrinação, no sentido de nacionalismo e de cristianismo – ou seja, tentar, como dever de Estado, «alargar a Fé e o Império, e não envenenar os meus leitores». Este é o lema, o santo-e-senha do ousado e excelente escritor. Do escritor que admira Eça, Fernando Pessoa, Lorca, Corrêa de Oliveira, Almada, Eric Linklater, Valery Larbaud, Jean de La Varende, Eugénio de Castro, Sardinha e O. Henry.
Tem projectos, claro. Entregou há quase dois meses o original do Caminho Português de Santiago de Compostela ao respectivo júri do Prémio La Peregrina, do país vizinho. Concluiu uma tradução de Cesbron. Começou nesta Páscoa a escrevinhar Guia Literária de Portugal, e anda a preparar a 2.ª edição, correcta e aumentada, do Itinerário Romântico do Porto, quase esgotado...
Passou o espaço que me era reservado. Apresentei-lhes o Sr. Conde d'Aurora, numa letra muito mais legível que a dele (as dedicatórias dos seus livros e as suas cartas adivinho-as, não as leio) e, tanto quanto me foi possível, apresentei-o tal como é: homem franco, aristocrata e democrata, estilista do melhor quilate, senhor do meu maior respeito e admiração.
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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