Não é fácil escrever a biografia de um amigo que conheci na adolescência e com o qual convivi durante os cinco anos do curso geral dos liceus. A questão é que, por muito rigor que utilize na descrição cronológica dos principais acontecimentos da sua vida, a emoção tolda-me o pensamento e perturba o sentido daquilo que devo escrever. De facto, com muita emoção o digo, Rúben era um ser humano muito especial, genuinamente pacífico e dotado de alma de poeta e artista.
Rúben Maria Moreira Brandão nasceu no dia 16 de Janeiro de 1947, na quinta do senhor Barros, no lugar de Arestim, freguesia de Brandara, neste concelho de Ponte de Lima (1). Seus pais, José Vieira Fernandes Brandão (Arcozelo, 1916 – Brandara, 2003) e Delfina Moreira Pereira Machado (Freixo, 1912 – Brandara, 1996), tiveram uma vida difícil, austera e sem quaisquer luxos (2), cuja economia se baseava na actividade comercial de uma pequena mercearia de aldeia e numa agricultura de subsistência granjeada numa leira arrendada à Santa Casa da Misericórdia. Foi à custa destas difíceis condições que Rúben e o irmão Zeca conseguiram obter o 5.º ano dos liceus no antigo Externato Cardeal Saraiva (3).
Entrou para a instrução primária no ano lectivo de 1955/56, na escola da professora Luísa Miquelina Rodrigues, que funcionava na sua Quinta do Bom Jesus, em Canadelo (4). Foi lá, em pleno recreio da tarde, nas vésperas do exame da 3.ª classe, que Rúben manifestou, provavelmente pela primeira vez na forma escrita, a sua pujança poética, entregando um bilhetinho a uma colega no qual se lia: Minha terra pequenina / linda morena ao sol-pôr / tu és bastante pequena / para conter o meu amor!
O seu curso liceal, iniciado no ano lectivo de 1959/60, obrigava-o a percorrer diariamente cinco quilómetros a pé, desde Canadelo até ao velho edifício da Rua do Pinheiro, acrescidos de igual distância no regresso a casa. As duas horas que gastava por dia nesse percurso de dez quilómetros, que frequentemente eram objecto do seu lamento, ficaram registadas no melancólico poema O Caminheiro, que um dia veremos certamente publicado em livro. Durante os cinco anos que passou no Externato Cardeal Saraiva, Rúben Brandão forjou amigos para toda a vida, os quais recordam com muita saudade alguns aspectos particulares da sua camaradagem: o espírito de discrição, algo introvertido, que se adivinhava no seu tom de voz; o discurso filosófico com que intervinha em certas conversas (5); o sentido piadista manifestado no momento certo através de chalaças de fino recorte humorístico; o seu jeito para as artes plásticas, materializado nos esboços e pequenos desenhos que fazia quotidianamente em papel cavalinho, num qualquer pedaço de papel, na sebenta de matemática, na margem de um texto do compêndio de português, ou na contra-capa do livro de inglês; e a sua alma de poeta, plasmada nos sonetos e quadras que produzia quase diariamente sob a forma de versos de rigorosa métrica e, muitas vezes, intensamente rítmicos, registados em qualquer papel que tivesse à mão (como aconteceu com esta quadra manuscrita na página 11 do Suplemento do jornal “Público” de 1 de Setembro de 1997: Minha Terra, minha gente / onde me sinto tão bem / minha terra é bem diferente / de quantas o mundo tem!, inspirada no momento em que lia um artigo sobre o Ponte de Lima, ali publicado).
Tendo concluído o 5.º ano dos liceus em Julho de 1964, Rúben Maria foi em Setembro desse ano para Viana do Castelo fazer o curso complementar dos liceus, passando a residir num quarto alugado no Campo d’Agonia, próximo do restaurante Zéfa Carqueja. Essa fase estudantil da sua vida foi dificultada pelo relacionamento com o seu pai, que sempre tentou educar os dois filhos sob uma disciplina baseada na austeridade financeira e no diálogo difícil. Disso mesmo posso eu dar testemunho pois, durante os quatro anos que vivi na Casa do Castelo (1980/1984), tive frequentes conversas dominicais com o senhor Brandão ocorridas no final da missa das onze horas, antes de ele regressar na sua velha bicicleta a Brandara, através das quais vi nele um pai e educador profundamente inquieto com o futuro dos filhos. Esses encontros permitiram-me conhecer melhor como foi moldada a personalidade do meu amigo e condiscípulo Rúben, a ponto de compreender hoje os contextos históricos, geográficos, sentimentais e sociais que caracterizam a sua obra, parcialmente inédita. Por isso, não é de admirar que Rúben Brandão tenha ido para a tropa sem terminar o 7.º ano, razão pela qual ingressou no Curso de Sargentos Milicianos (R.I. 5, nas Caldas da Rainha), em Julho de 1969, para cumprir o serviço militar obrigatório que o levaria a terras de África como mobilizado para a guerra do ultramar, hoje designada guerra colonial.
Regressado da Guiné em Outubro de 1972 (6), ingressou nas Caixas de Previdência e Abono de Família (Segurança Social), tendo trabalhado em Viana do Castelo desde 24 de Abril até 30 de Junho de 1973 como 3.º escriturário. Nesse mês, dentro da prenda que ofereceu por ocasião do casamento do seu colega e amigo José António Amorim com Conceição Escortel (referido na nota 6), colocou a seguinte quadra: Esta prenda que ofereço / numa hora de saudade / ficou-me longe do preço / que vale a nossa amizade.
Essa interrupção laboral permitiu-lhe voltar a estudar e a concluir o antigo 7.º ano dos liceus em Setembro de 1974. Meses antes, em 27 de Junho, havia contraído matrimónio com Fernanda Maria Amorim dos Santos, de Vila do Conde, com quem esteve casado até Julho de 1984.
O regresso à Segurança Social verificou-se no dia 20/03/1975, quando reassumiu o cargo de 3.º escriturário na Caixa de Previdência e Abono e Família do Comércio, no Porto. A estabilidade laboral adquirida permitiu-lhe inscrever-se no curso superior de Psicologia (Rua das Taipas), onde completou o 2.º Ano. A sua veia filosófica levou-o a mudar-se para a Faculdade de Letras, no Campo Alegre, onde concluiu a Licenciatura em Filosofia com 14 valores, em 18 de Julho de 1983, e completou a parte escolar do Mestrado em Filosofia Social e Política, em 1988. Entretanto, em 28 de Outubro de 1983, desvinculou-se da Segurança Social em virtude de ter optado pela sua vocação de sempre: professor, pedagogo e orientador de jovens estudantes.
No ano seguinte (Outubro de 1984), casou em segundas núpcias com Maria Eugénia Marques Meixieira Brandão, natural de Lamego, funcionária pública que exerceu funções administrativas na Universidade de Coimbra e na Universidade do Porto (Reitoria, Faculdade de Engenharia e Faculdade de Economia), tendo terminado a sua longa carreira ao serviço do Estado, exercendo funções de chefia e de coordenadora técnica nesta última Faculdade.
A carreira pedagógica de Rúben Brandão foi iniciada no ano lectivo de 1983/84 na Escola Secundária de Tabuaço, onde deu aulas de História e de Filosofia. Depois, passou sucessivamente pelas escolas secundárias de Camilo Castelo Branco (Vila Real), de Santa Maria da Feira e da Maia, e pelas escolas preparatórias de Alpendurada e de Torre de D. Chama (em Mirandela, onde se encontrava no ano lectivo de 1988/1989, com 42 anos de idade). A partir do ano lectivo de 1989/90 esteve quase sempre requisitado pelo Centro de Área Educativa do Porto, onde participava no grupo responsável pela colocação de professores. Durante esse período na DREN deu aulas nas escolas de Canidelo, Valadares, Mesão Frio e Santa Maria do Zêzere, tendo concluído o curso de profissionalização em 31/08/1990. E assim prosseguiu até Julho de 2001, data a partir da qual a doença não lhe permitiu continuar a dar aulas.
Quem se debruçar sobre a sua obra pedagógica ficará espantado com o rigor do seu trabalho, traduzido em fichas de aulas, comentários e relatórios críticos em que indica “estratégias de apoio efectivo e personalizado à melhoria do rendimento escolar dos alunos, em vez de se cair no facilitismo de aprovações enganosas e injustas”. Transcrevo, a título de exemplo, a ficha onde anotou a sua estratégia para despertar nas crianças o gosto pela poesia: “Poesia para crianças: brincar com o som das palavras e com o que elas significam; dispor o poema em formas de desenho a condizer com o tema; escrever sobre as coisas mais simples e naturais do dia a dia (natureza animal, ambiente/ecologia, etc.)”. As grandes ferramentas de trabalho que usou foram as reuniões com pais e colegas de turma, que promoveu ao máximo enquanto se valorizava pessoalmente através de diversos cursos de formação em que participou. Como director de turmas organizou e desenvolveu inúmeros projectos, galvanizando colegas, directores e alunos: fundou jornais escolares, promoveu colóquios, sugeriu exposições temáticas e organizou visitas de estudo. Foi um pedagogo de corpo e alma, apaixonado pelos seus alunos!
Como grande humanista que era não deixou de intervir na sociedade, tendo sido co-fundador da comissão concelhia do Partido Social-Democrata de Vila do Conde (1975/76), co-fundador e dirigente do Rotary Clube de Vila do Conde (1982) e sócio dos Bombeiros Voluntários de Ponte de Lima (com as quotas em dia por ocasião do seu falecimento).
Embora não tenha editado qualquer livro com a sua obra literária, o Rúben deixou-nos mais de dois mil poemas (muitos deles publicados em diversos jornais e revistas, cujo estudo se começa a fazer agora) criteriosamente classificados em fichas: “Natureza/Ecologia; Amorosos/Intimistas; Prevenção Rodoviária Portuguesa; Políticos; Educação/Ensino; Solidariedade/Amizade/Natal; Concursos; Sarcásticos/Humor; e Vários Temas e Formas”. A sua temática esmaga-nos o coração, pois desperta em nós muitas das emoções que a vida nos obriga a comprimir ao longo do tempo que nos é dado viver. Entre outros assuntos fala-nos sobre a terra onde nasceu, sobre a guerra colonial, sobre o amor filial, sobre a amizade e lealdade, sobre a fé, sobre os homens, e os títulos deixam adivinhar os seus conteúdos: Minha Mãe; Hipocrisia; Vi minha Mãe partir; Levaram o meu Amigo; Guerra Colonial; a Igreja e a Guerra; Serenidade; entre muitos outros. Um deles comove-me particularmente: Eis aqui minha amargura: / a morte de minha Mãe / meu irmão que não tem cura / e o filho que não se tem! (Março/99). De que outra forma se poderia gritar o infortúnio de não viver o amor paternal?!
Os autores que se debruçarem sobre a obra deste meu companheiro de liceu vão ficar estupefactos com as cerca de duas centenas de pensamentos filosóficos que ele nos legou, a par de vários textos em prosa publicados em diversos periódicos: às vezes são versos com sentido de humor; nalguns casos sobressai a ironia; noutros há um sentimento de acusação; e em muitos é o lamento, a nostalgia e a saudade que ele nos apresenta como um estado da sua alma frequentemente inquieta. Por exemplo: A vida é um rio larguíssimo, a margem da fé bem distante da margem da razão. Meti-me no barco e ainda vou a meio… Quando se faz a ponte, meu Deus? (1997). No jornal “A Voz de Trás-os-Montes” publicou em 1989 um verdadeiro hino à alma transmontana, que termina assim: …É na dor que se ganha o desafio / de viver com mais amor. / Amo este povo, sem ser daqui, de nenhum lado; / mas amo-o por saber que sempre foi mal amado.
Além de ter o dom de brincar com as palavras, Rúben Brandão possuía uma excepcional capacidade inata para o desenho, que ficou bem demonstrada em diversos trabalhos que nos deixou, todos eles produzidos em pequenos papéis que, percebe-se bem, funcionavam como momentos de relaxe e de lazer, e não como propósitos de obra de autor. O seu potencial artístico parece ter sido tanto no domínio figurativo como no campo surrealista, embora apareçam várias interpretações naif, paisagens bucólicas, temas da Natureza e, até, manifestações de pontilhismo.
Tentando abstrair-me das emoções que condicionam este meu trabalho biográfico, manifesto desde já a minha certeza de que a obra de Rúben Brandão irá imortalizá-lo e que, não tenho dúvida alguma, muitos especialistas ficarão admirados com a diversidade da sua poesia. Se fosse eu a classificá-lo, chamar-lhe-ia um grande poeta de intervenção! A prova do que afirmo reside no acolhimento que a sua obra teve em mais de uma dezena de órgãos de comunicação escrita e nos diversos prémios que obteve, entre os quais já identifiquei: 1.º classificado/Prémio António Aleixo, no Concurso Literário Comemorativo dos 25 anos do 25 de Abril, promovido no Porto; 1.º Prémio da Universidade Popular do Porto (25/04/1999); e 8.º Prémio no Concurso das Quadras de S. João (J. Notícias, 1994).
Deixou-nos no dia 10 de Setembro de 2001, quando só tinha 54 anos, repousando o seu corpo no Cemitério de Agramonte, na cidade do Porto.
Agradeço à Senhora D. Eugénia Brandão, dedicada guardiã da obra deste nosso conterrâneo, a preciosa colaboração que me prestou.
Que os amigos não esqueçam Ruben Brandão! Paz à sua alma!
Notas
Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 25, de Dezembro de 2011
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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