O Dr. Carlos Lima e o Caso do Bispo da Beira

 

O Dr. Carlos Lima e o Caso do Bispo da Beira



José Pereira Fernandes



 

O Dr. António Carlos dos Santos Fernandes Lima foi um dos mais brilhantes advogados portugueses de todos os tempos, que se notabilizou, entre muitos outros, pelo Caso do Bispo da Beira, um processo de vincadas incidências de natureza religiosa e política que foi objecto de denúncia pública e que teve como protagonistas D. Sebastião Soares de Resende – primeiro Bispo da Beira – e altas figuras do regime de então, como o Governador-Geral de Moçambique, o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, o Ministro do Ultramar Joaquim da Silva Cunha e os Presidentes do Conselho de Ministros António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano. 

 

 

D. Sebastião Soares de Resende, primeiro Bispo da Beira

 

Designado primeiro Bispo da Beira por Pio XII, D. Sebastião Soares de Resende desenvolveu naquela diocese, desde a primeira hora, um pontificado exemplar, marcado pela defesa intransigente dos direitos humanos e por uma preocupação constante pelos problemas sociais dos moçambicanos, com notório desagrado do regime salazarista que o tentou intimidar e silenciar, nomeadamente através da PIDE, onde o seu processo atingiu as 400 folhas, e do recurso à censura, como aconteceu no Caso do Bispo da Beira, processo em que foi exemplarmente representado pelo Dr. Carlos Lima.

Sebastião Soares de Resende era natural da freguesia de Milheirós de Poiares, concelho de Santa Maria da Feira, onde nascera em 14 de Junho de 1906.

Foi ordenado sacerdote em 21 de Outubro de 1928, com 22 anos de idade, depois de ter frequentado o curso de Teologia no Seminário Maior do Porto. As qualidades demonstradas pelo novo sacerdote permitiram que, ainda nesse ano, iniciasse a frequência da Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, onde fez o doutoramento em Filosofia e preparou o doutoramento em Teologia, grau que, no entanto, não viria a ser oficializado, por ter deflagrado a II Guerra Mundial na altura em que se preparava para regressar a Roma, onde deveria apresentar a respectiva tese, que, no entanto, viria a ser publicada em 1941.

D. Sebastião frequentou ainda o curso de Ciências Sociais do Instituto de Scienze Sociali, de Bérgamo, preparação que haveria de revelar-se essencial para a análise da realidade de Moçambique.

Regressado a Portugal, foi nomeado professor do Seminário Maior do Porto em Outubro de 1933, vice-reitor do mesmo Seminário em 1934 e Cónego da Sé do Porto em 1936, passando a integrar o respectivo Cabido.

Depois de ter sido designado Bispo da nova Diocese da Beira em 21 de Abril de 1943, e sagrado Bispo na Sé do Porto em 15 de Agosto de 1943, com 37 anos de idade, D. Sebastião Soares de Resende partiu para Moçambique, onde tomou posse daquela Diocese em 8 de Dezembro de 1943.

Ali chegado, fez o diagnóstico da Diocese e passou imediatamente à acção com força interior e firmeza impressionantes até aos seus últimos dias de vida, terminada prematuramente em 25 de Janeiro de 1967, por força de doença implacável.

Para dar maior dimensão à difusão da mensagem evangélica, criou em 1950 o jornal diocesano Diário de Moçambique, que seria suspenso por três vezes em consequência da acção exercida pela censura, uma das quais esteve na origem do Caso do Bispo da Beira, que foi apenas um entre outros casos.

Numa homenagem prestada com grande dignidade a D. Sebastião Soares de Resende na sua terra natal, em 17 de Junho de 2006, para comemorar o 100.º aniversário do seu nascimento, foi-lhe erigida uma estátua junto à Igreja Paroquial e organizada uma cerimónia evocativa da sua vida e obra, em que participaram grandes figuras religiosas e civis, nomeadamente os Bispos D. Armindo Lopes Coelho, D. Carlos Alberto Moreira de Azevedo e D. Augusto César, o Arcebispo D. Jaime Pedro Gonçalves, o Prof. Doutor Adriano Moreira, o Investigador Dr. David Simões Rodrigues e o então Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, Alfredo Oliveira Henriques.

Do significativo testemunho prestado nessa homenagem por D. Jaime Pedro Gonçalves, Bispo e Arcebispo da Beira de 1976 a 2012, transcrevemos a seguinte passagem:

Sebastião Soares de Resende é insigne pelas suas corajosas intervenções nas questões sociais de Moçambique de então. Ele encontrou um Moçambique que era uma colónia com todo um labirinto de problemas sociais, tais como, o trabalho forçado dos indígenas, a cultura de algodão mal paga, salários baixíssimos, mentalidade esclavagista para com os indígenas, exploradores de riquezas, políticas mais de domínio que de governo. Havia discriminação social, que às vezes tinha sabor rácico.

Nos anos sessenta as colónias africanas clamavam pela independência nacional e por ela organizavam movimentos e guerras de libertação.

Esta situação de Moçambique feriu a alma de D. Sebastião que começou a sua revolução. Denunciou estas injustiças e foi propondo soluções. Porque esta sua acção tocava os poderosos e os governantes de então, D. Sebastião engoliu amarguras e suportou perseguição humildemente.

Muito significativa foi também a intervenção do Prof. Doutor Adriano Moreira, Ministro do Ultramar de 13 de Abril de 1961 a 4 de Dezembro de 1962, da qual extraímos o seguinte excerto:

Sebastião fez a leitura do tempo, ele que seria padre Conciliar, e não hesitou em assumir que a justiça dos Evangelhos andava arredada de muitas das circunstâncias que marcaram o tecido social e político da relação entre o poder político e as populações, entre as populações nativas e os interesses económicos dominantes, entre a submissão ao saber tradicional e o acesso à sociedade da informação e do saber, entre o amor à terra nativa, e a perda da terra, entre o dever do trabalho em liberdade e o trabalho forçado pelo condicionamento das culturas agrícolas obrigatórias, ou pelo recrutamento abusivo da força de trabalho. Por isso claramente foi enunciando as premissas da sua intervenção, destacando-se a Pastoral sobre a nova «Missão Colonizadora», de 1 de Dezembro de 1946...

Foi muito apoiado na sua doutrinação que procedi à revogação do Estatuto do Indigenato, à publicação do Código do Trabalho que o BIT considerou o mais avançado de África, que suprimi as culturas agrícolas obrigatórias, que multipliquei os liceus, que instituí os Institutos de Serviço Social, que criei, depois de ultrapassar severas dificuldades, os Estudos Gerais Universitários, dificuldades que os executores e beneficiários da lei não conheceram ou não esqueceram.

Se refiro estas circunstâncias é para tornar claro que a intervenção de D. Sebastião se deu num tempo em que não havia apelo aos princípios sem cólera de interesses feridos, nem crise de valores que não despertasse um conflito de entendimentos sobre a sua hierarquia e as suas exigências.

 

 

O Caso do Bispo da Beira

 

Por despacho de 21 de Maio de 1965, o Governador-Geral da então província de Moçambique determinou a suspensão do Diário de Moçambique pelo período de dez dias, com fundamento em que o jornal publicara, na sua edição do dia 10 desse mês de Maio, sem previamente submeter o respectivo texto à Comissão de Censura, uma homilia proferida no dia anterior por D. Sebastião Soares de Resende na Catedral de Lourenço Marques (actual Maputo), em Missa concelebrada pelos oito Bispos de Moçambique para assinalar o 25.º aniversário do Acordo Missionário celebrado em 7 de Maio de 1940 entre a Santa Sé e o Governo Português.

Nessa homilia, intitulada “Meditação sobre o 25.º Aniversário do Acordo Missionário”, o Bispo da Beira começou por aludir aos malefícios que advieram para o ensino em Portugal e nas Colónias com a expulsão da Companhia de Jesus, determinada pelo Marquês de Pombal em 1759, e com a extinção, em 1835, das ordens religiosas, enaltecendo de seguida o Governo Português pela assinatura do Acordo Missionário, que constituiu o reconhecimento oficial da Igreja missionária com todos os seus direitos e deveres.

Na segunda parte da homilia, D. Sebastião referiu-se ao direito inalienável de ensinar conferido à Igreja pelo Acordo Missionário, enquanto que na terceira e última parte começou com uma meditação sobre a acção educativa e social da Igreja, concluindo com o seguinte pensamento: Lançando o olhar em retrospecção sobre Moçambique, nós todos sentimos a dor imensa ao verificar que ele podia e devia ser hoje não uma terra subdesenvolvida, mas uma região como qualquer outra normalmente civilizada. Esta perda, com ser irreparável na ordem do tempo, corre perigo de se tornar irreparável no existencialismo dos factos. É que deixámos de fazer muito num tempo em que tudo era facílimo de realizar: e agora temos de fazer tudo, numa época em que o pouco é dificílimo de conseguir. Todavia os homens, todos os homens, mostram o que são nas horas difíceis…

Logo após a publicação da homilia de D. Sebastião, o Governador-Geral de Moçambique entendeu por bem colher a opinião prévia do Governo Central sobre o procedimento a adoptar, Governo que não se coibiu de intervir no processo, transmitindo ao Governador-Geral, por telegrama de 20 de Maio de 1965, do então Ministro do Ultramar, Prof. Doutor Joaquim da Silva Cunha, a opinião de que era grave a atitude sistemática do Senhor Bispo se considerar isento da censura prévia e que, por isso, deveria ser aplicada ao jornal a sanção de suspensão sem multa.

Posto perante o problema de patrocinar o recurso contencioso a interpor do referido despacho, o Dr. Carlos Lima aceitou sem a mais leve hesitação pois, como viria a referir em carta de 18 de Novembro de 1967 dirigida a Salazar, afigurou-se-lhe desde logo ser o despacho de todo em todo insustentável de um ponto de vista jurídico, o que só por si seria suficiente para o levar, como profissional da advocacia, a acompanhar o caso, mas também por concretizar uma grave violência contra a liberdade religiosa consagrada na Constituição e na Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, que vigorava como direito interno português, onde se previa claramente que não estavam sujeitos a censura prévia os escritos reproduzindo palavras proferidas pelas Autoridades Eclesiásticas em exercício do seu ministério pastoral.

O recurso contencioso foi interposto para o Conselho Ultramarino, órgão permanente de consulta do Ministro do Ultramar em matéria de política e administração ultramarina, que funcionava também como Tribunal Administrativo para as províncias ultramarinas e que era presidido pelo próprio Ministro, embora o exercício efectivo da presidência competisse ao Vice-Presidente, que era, na altura, o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, médico de profissão.

Ciente de que este tribunal não dava garantia de independência e imparcialidade, como viria a confirmar-se no desenrolar do processo, e das dificuldades que um caso desta natureza comportava, o Dr. Carlos Lima preparou o recurso contencioso com o máximo profissionalismo e pragmatismo, obtendo e juntando ao processo um exaustivo e brilhante parecer do Prof. Doutor Guilherme Braga da Cruz, distinto docente da Universidade de Coimbra, que, com luminosa clareza, sustentava as posições por si defendidas e que não deixava a menor dúvida quanto à manifesta ilegalidade do despacho do Governador-Geral de Moçambique cuja anulação era peticionada, por enfermar do vício de violação da lei.

Estávamos, porém, num época em que os tribunais administrativos se recusavam sistematicamente a tomar posição sobre o fundo das causas, refugiando-se na apreciação de simples pressupostos processuais, principalmente quando estavam em causa situações incómodas para a Administração.

Foi, assim, sem surpresa que o Dr. Carlos Lima recebeu o acórdão de 11 de Maio de 1967 da 1.ª Subsecção do Contencioso do Conselho Ultramarino em que foi decidido não tomar conhecimento do recurso por se ter considerado que o despacho punitivo do Governador-Geral não constituía acto definitivo e executório, posição que não tinha fundamento jurídico, como foi claramente demonstrado em pareceres emitidos pelos Professores de Direito Administrativo Doutor Afonso Rodrigues Queiró e Doutor Diogo Freitas do Amaral.

Apesar de D. Sebastião Soares de Resende ter falecido em 25 de Janeiro desse ano, o Dr. Carlos Lima decidiu prosseguir com o processo, interpondo recurso daquela decisão para o Plenário da Secção de Contencioso do mesmo Conselho, que funcionava como Supremo Tribunal Administrativo para o Ultramar, tendo posto a nu e demonstrado até à saciedade, nas respectivas alegações, a falência do acórdão recorrido, que classificou de desajeitada ofensa à lei. Sobre as alegações apresentadas no âmbito deste recurso, emitiu o Prof. Doutor Guilherme Braga da Cruz a seguinte opinião, em carta de 27 de Agosto de 1967:

Já li tudo, com o cuidado e com o interesse que pode calcular. Está primoroso! Acho extraordinariamente feliz a análise jurídica do problema fundamental que o acórdão recorrido suscita: não há aspecto que não tenha sido focado; e sempre com argúcia e em profundidade, sem palavras a mais nem a menos. Creio que, como peça de advocacia, não se pode fazer melhor; e não sei com que «artes» possam os colendíssimos magistrados fugir ao que aqui está, claro, evidente e irrefutável. Os meus parabéns muito sinceros.

 

No julgamento do recurso, que começou por realizar-se no dia 4 de Abril de 1968, intervieram apenas quatro Juízes, por então existir um lugar vago naquela Secção e um dos seus membros se encontrar ausente. Dois desses Juízes acolheram a argumentação e os fundamentos invocados pelo Dr. Carlos Lima, pronunciando-se no sentido de ser dado provimento ao recurso, enquanto que os outros dois se manifestaram em sentido contrário.

Face ao empate verificado, o processo foi entregue nesse mesmo dia ao Vice-Presidente do Conselho Ultramarino para o efeito de ser desempatada a votação, conforme previa o respectivo Regimento.

Porém, o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, que mais tarde viria a ser nomeado, sucessivamente, Governador-Geral de Moçambique, Ministro das Corporações e Previdência e da Saúde e Assistência e Ministro do Ultramar, encontrou uma solução engenhosa, mas também ilegal, que consistiu, contrariamente àquilo a que estava vinculado, em não tomar posição sobre o recurso e reter o processo até à modificação da composição do Tribunal, devolvendo-o de seguida para que fosse feito outro julgamento, que viria a realizar-se em 3 de Julho de 1969. Nesse julgamento foi negado provimento ao recurso, desta vez apenas com o voto desfavorável de um dos Juízes, que continuou a aderir às posições defendidas pelo Dr. Carlos Lima.

Com fina ironia, plasmada na “Arguição de Nulidades” que se seguiu, o Dr. Carlos Lima referir-se-ia à solução adoptada pelo Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, nos seguintes termos:

É de presumir, assim, que, como cumpre a um juiz escrupuloso dominado pelo anseio de fazer sempre da melhor Justiça, Sua Excelência deve ter entrado em largas e penetrantes cogitações de natureza jurídica, e outras, procurando dissecar com o bisturi da fria objectividade do Presidente de um Tribunal os problemas que tinham dividido os Senhores Juízes.

Tanto cogitou Sua Excelência, que se operaram, entretanto, modificações na composição deste Tribunal: regressou o Desembargador que estava ausente; deu-se uma nova vaga no Tribunal; foram preenchidas as duas vagas existentes…

Consumada nos termos expostos a recomposição deste Tribunal, nela se inspirou o Senhor Vice-Presidente para dar ao caso uma solução sugestiva e também curiosa, precisamente por se traduzir em não desempatar aquilo que para efeitos de desempate lhe fora submetido.

Sua Excelência resolveu a «coisa» com o seu mini-ofício de fls. 188, em que, invocando o «argumento» consistente nas modificações operadas no Tribunal, concluiu «não subsistirem as razões que davam lugar à [sua] intervenção no processo, nos termos do art.º 90.º do Regimento do Conselho».

 

Sem surpresa, o Tribunal, por Acórdão de 6 de Novembro de 1969 em que apreciou a “Arguição de Nulidades”, considerou não existir qualquer irregularidade processual ou de julgamento ou da decisão, rejeitando a reclamação.

Combativo até ao limite do que era admissível no âmbito do processo judicial, o Dr. Carlos Lima apresentou ainda um “Pedido de Aclaração” deste Acórdão, no qual, de modo contundente, denunciou o incomensurável atropelo processual e as gritantes contradições que o marcaram desde o início, deixando ainda consignado, em nome das mais elementares exigências da Justiça e do Direito, o mais veemente protesto conta o arbítrio processual que reinou no processo.

Também sem surpresa, o “Pedido de Aclaração” foi igualmente rejeitado, por Acórdão de 4 de Dezembro de 1969, assim terminando a parte judicial do Caso do Bispo da Beira, dominada por um silêncio profundo e eloquente quanto à incómoda questão de fundo do processo: a ilegalidade do despacho do Governador-Geral de Moçambique proferido sob orientação do Governo Central, através do Ministro do Ultramar, cuja anulação havia sido peticionada, e a grave violência cometida contra a liberdade religiosa.

Na opinião do Dr. Carlos Lima, a sanção aplicada ao «Diário de Moçambique» teria tido em vista exercer uma acção pedagógica junto do Bispo da Beira, incutindo-lhe no espírito e levando-o a aderir à «boa doutrina» que a lucidez ministerial dizia decorrer da Concordata relativamente à publicação de textos emanados de autoridades eclesiásticas. Mais simples e directamente: as observações doutrinais do Ministro não passavam, seguramente, de um tosco ensaio de explicação para dar cobertura a uma grosseira manifestação de força, que, tudo leva a crer, visava intimidar – um tanto ingenuamente – o Bispo da Beira.

 

 

O recurso a Salazar

 

O Dr. Carlos Lima nunca teve ilusões quanto ao desfecho do recurso contencioso que interpôs para o Conselho Ultramarino, não só porque este Tribunal não dava garantia de independência e imparcialidade, mas também porque o Caso estava muito longe de se esgotar num problema jurídico-judiciário, assumindo, pelo contrário, vincadas incidências de natureza religiosa e política.

Em carta dirigida ao Prof. Doutor Guilherme Braga da Cruz em 17 de Maio de 1967, seis dias após ter sido proferido o primeiro Acórdão do Conselho Ultramarino, Carlos Lima deixou bem clara a sua coragem e determinação sobre o caminho a seguir:

Não tenho dúvidas quanto ao caminho que devo seguir.

Considero uma violência inqualificável sujeitar a censura prévia os escritos emanados das Autoridades Eclesiásticas, designadamente dos Bispos.

Está em causa uma das pedras angulares em que assenta a liberdade religiosa.

A posição do Estado sobre o assunto tem de ser definida com clareza.

De outro lado, foi-me confiado um mandato, cuja extensão e exacto sentido procurei precisar em vida do Senhor D. Sebastião. Creio firmemente que esse mandato transcende a estreita perspectiva judicial do assunto.

Bater-me-ei nos Tribunais enquanto puder, tentando levá-los a tomar posição quanto ao fundo do problema.

Se o não conseguir, nem por isso me considerarei vencido.

A «causa» permanecerá em aberto. Continuarei a esforçar-me por cumprir o mandato, batendo-me em outros planos para que os «príncipes que nos governam» entendam que a Religião não pretende os seus favores ou pretensos favores materiais, cujo «preço», aliás, ainda não pode determinar-se neste momento, embora venha a ser seguramente elevado. Pretende, sim, antes e acima de tudo que a respeitem naquilo que realmente é essencial.

Menos vénias, menos banquetes, menos «larachas». Mais verdade, mais lealdade, maior limpeza de «processos» …

A morte do Senhor D. Sebastião tornou mais pesadas as minhas responsabilidades neste assunto. Julgo que o meu dever é lutar, não parar, tal como Ele o faria.

 

Assim, por considerar que o Caso não se podia circunscrever no plano judicial, e apesar do recurso contencioso ainda se encontrar pendente, o Dr. Carlos Lima decidiu levar a questão ao conhecimento do Presidente do Conselho de Ministros, Prof. Doutor António de Oliveira Salazar, por carta de 18 de Novembro de 1967, na qual denunciou aquela grave violência contra a liberdade religiosa e o flagrante atropelo à lei cometido pelo Acórdão de 11 de Maio desse ano, manifestando-lhe o propósito de recorrer ao tribunal da opinião pública, através da publicação das peças do processo, caso não fosse reparada a injustiça cometida, mediante a inutilização jurídica do despacho do Governador-Geral de Moçambique. Por entender que o problema de fundo dizia respeito a toda a Igreja, o Dr. Carlos Lima deu conhecimento desta carta ao Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, oficializando a existência do Caso no plano religioso.

Talvez pelo facto de o Dr. Carlos Lima não lhe ser totalmente desconhecido, devido ao modo como desempenhara o mandato de Deputado da Assembleia Nacional, entre 1957 e 1961, Salazar não tardou a responder-lhe, o que fez por carta manuscrita do dia 29 do mesmo mês de Novembro.

Nessa carta, que o Dr. Carlos Lima considerou de teor um tanto enviesado, Salazar comunica-lhe que em nada o poderia aconselhar, nem ao Governo da Província, e que não via objecção alguma a que mandasse publicar as peças do processo que lhe interessasse fazer conhecer do público. Depois de reconhecer a existência de divergências com o Bispo da Beira, Salazar termina com a seguinte afirmação: O senhor Dom Sebastião tinha o seu feitio e foi sempre tratado, até pessoalmente por mim, com a maior consideração. Mas pareceu-me não ter algumas vezes razão.

Numa segunda carta dirigida a Salazar, em 7 de Dezembro de 1967, o Dr. Carlos Lima entendeu ainda oportuno assinalar alguns aspectos complementares, nomeadamente sobre a personalidade de D. Sebastião Soares de Resende, referindo que se tratava de um prelado e homem de excepção e que uma das notas salientes da sua extraordinária personalidade era a intransigente coerência com os princípios, iluminada por uma inteligência rara e servida por uma vontade tenaz.

 

 

O recurso a Marcello Caetano

 

Com a nomeação do Prof. Doutor Marcello Caetano, em 27 de Setembro de 1968, para substituir Oliveira Salazar, por este ter ficado fisicamente incapacitado para governar, na sequência da queda de uma cadeira, foram criadas algumas expectativas quanto ao desfecho consensual do Caso do Bispo da Beira, face às boas relações pessoais existentes desde os tempos da Faculdade de Direito de Lisboa entre o Dr. Carlos Lima e o novo Presidente do Conselho de Ministros.

Por carta de 22 de Novembro de 1968, o Dr. Carlos Lima deu conhecimento a Marcello Caetano da existência do Caso e das suas vicissitudes, alertando-o de que tivera indicações dignas de confiança sobre a existência de diligências junto dos juízes – ou de alguns deles – com o intuito de os levar a proferir uma decisão desfavorável à posição por si defendida.

Na resposta a essa carta, em que trata o Dr. Carlos Lima por “meu prezadíssimo amigo”, Marcello Caetano assevera que de si ou com o seu assentimento nunca um juiz receberá qualquer indicação do Poder para deixar de julgar segundo a sua consciência e a justiça devida às partes.

Seguiram-se dois encontros entre Carlos Lima e Marcello Caetano, em 23 de Maio de 1969 e em Julho do mesmo ano, nos quais foram abordados todos os aspectos do Caso, sem que se conseguisse aquilo que se impunha – a revogação administrativa do despacho do Governador-Geral de Moçambique que suspendera o Diário de Moçambique –, apesar da compreensão manifestada por Marcello Caetano que, contudo, sempre manteve uma atitude de reserva em relação à questão.

Posteriormente, numa reunião realizada em Setembro desse ano com o Ministro do Ultramar Silva Cunha, que se transformou numa conversa dura, Carlos Lima fez-lhe sentir a necessidade de se revogar o despacho que suspendera o referido jornal, acabando o Ministro por afirmar peremptoriamente que tinha que manter a sua posição.

Depois do Acórdão de 6 de Novembro de 1969, Carlos Lima dirige-se novamente a Marcello Caetano, por carta de 28 desse mês, exprimindo-lhe a maior indignação pela maneira vergonhosa como o processo se estava a desenvolver, anunciando-lhe que, face à evolução do «caso» nas suas múltiplas incidências, se sentia como que empurrado para as alternativas que lhe restariam, no contexto político do País.

A resposta de Marcello Caetano não se fez esperar: numa carta dura e incisiva do dia seguinte, em que acusa Carlos Lima de pretender hostilizar o governo ou a sua política, Marcello Caetano termina com as seguintes palavras: Lastimo vê-lo tão cego pela paixão neste caso, pela estima que tenho por si e que tantas vezes procurei demonstrar-lhe. E sobretudo lastimarei se perder o amigo – pela consciência de que é injustíssima a culpa que quer lançar sobre mim ou sobre o governo neste caso.

Era o acentuar da degradação das relações entre Carlos Lima e Marcello Caetano.

A reacção de Carlos Lima foi também imediata. Numa extensa carta do dia seguinte – 30 de Novembro de 1969 –, mostra-se profundamente perturbado pela interpretação dada à sua posição e refere sentir agudamente a necessidade de precisar o seu pensamento e de vincar os verdadeiros dados do problema, que reafirma serem mais de natureza política e religiosa do que do foro judicial, pelo que a respectiva solução não poderia deixar de ser política. E termina essa carta com o seguinte parágrafo:

Sei que não sou um homem fácil, e também sei que não faltam homens fáceis. Estes são cómodos, aparentemente não criam dificuldades. O conceito ou, pelo menos, a metodologia da amizade das duas categorias de homens são diferentes. Vossa Excelência tem seguramente larga experiência esclarecedora a esse respeito.

Na manhã do dia seguinte – 1 de Dezembro de 1969 –, Marcello Caetano sugeriu por telefone a Carlos Lima que fosse falar com ele à sua residência nessa mesma manhã. Na demorada conversa que então tiveram, Marcello Caetano exprimiu o seu sincero desejo de encontrar uma solução, mas que não o conseguira, apesar do esforço de imaginação que fizera nesse sentido. Não foi difícil a Carlos Lima compreender que a razão dessa dificuldade residia no facto de Silva Cunha continuar a ser o Ministro do Ultramar.

Renovando, no entanto, o seu desejo de resolver o problema, Marcello Caetano sugeriu a realização de uma homenagem a D. Sebastião Soares de Resende, como que a título de reparação. Colhido de surpresa com esta sugestão, Carlos Lima não tomou qualquer posição sobre ela no decorrer deste encontro, até porque admitia a possibilidade de o Ministro do Ultramar vir a ser substituído numa esperada modificação do Governo, o que poderia abrir as portas à revogação do despacho.

Porém, face à continuidade de Silva Cunha no Governo, Carlos Lima dirige-se novamente a Marcello Caetano, por carta de 18 de Janeiro de 1970, dando abertura à referida homenagem – por considerá-la aceitável à falta de melhor –, desde que a mesma fosse articulada com o Caso, e fosse proferido por si o discurso ajustado a essa finalidade.

Passados vinte dias, Carlos Lima escreve novamente a Marcello Caetano, transmitindo-lhe que supunha ser legítimo interpretar a falta de resposta no sentido de que já não era de considerar a hipótese da homenagem a D. Sebastião Soares de Resende e que, por isso, e com o objectivo de poupar ao Presidente do Conselho o incómodo de ter que voltar ao assunto tomava a liberdade de presumir ser essa a sua posição, dando, assim, por encerrado o assunto no plano em que tinha vindo a ser tratado.

Quatro dias mais tarde – em 12 de Fevereiro de 1970 –, Marcello Caetano dirige-se pela última vez a Carlos Lima, criticando-o por ter achado excessivo o prazo de vinte dias em que estivera sem resposta e repetindo que via com desgosto a sua impaciência em alinhar com aqueles que tomam todos os pretextos para criar dificuldades ao governo.

E terminou com estas que foram as suas últimas palavras dirigidas a Carlos Lima: Faça o que entender, visto que se julga tão premido pela sua consciência de advogado e tão liberto de outros problemas de consciência também.

Reagindo ainda a essa carta, Carlos Lima dirige-se também pela última vez a Marcello Caetano, em 15 de Fevereiro de 1970, refutando todas as acusações de que fora alvo e pondo em relevo as exigências de ordem moral e de dignidade associadas à sua posição no Caso do Bispo da Beira, bem evidenciadas nas suas últimas palavras dessa carta de 15 de Fevereiro:

Desde que o Prof. Doutor Marcello Caetano assumiu a chefia do Governo, tem constituído este «caso» para mim uma rude e dolorosa prova, justamente porque, além do que considero ser o meu dever, passou a interferir nele o factor amizade. Todavia, em definitivo, esta não pode redundar no sacrifício daquele. Creio que pensaria do mesmo modo se Presidente do Conselho fosse meu Pai.

 

 

O recurso ao tribunal da opinião pública

 

Definitivamente encerrado o processo judicial pelo Acórdão de 4 de Dezembro de 1969 e esgotadas as possibilidades de se alcançar a revogação do despacho de 21 de Maio de 1965, que determinara a suspensão do Diário de Moçambique, o Dr. Carlos Lima decide prosseguir o caminho anteriormente traçado e anunciado a Salazar, na sua carta de 18 de Novembro de 1967: denunciar publicamente, através da divulgação das peças do processo, a grave violência cometida contra a liberdade religiosa.

É então publicado, em meados de 1970, o livro a que deu o título de “aspectos da liberdade religiosa – caso do bispo da beira – peças de um processo”.

Continuando a vigorar a censura em Portugal, Carlos Lima vê-se condicionado a inserir no livro apenas as peças do processo, sem quaisquer comentários, como esclareceu numa breve nota introdutória onde refere estar indicado que a presente publicação se limitasse a englobar somente as peças do processo judicial em que o «caso» foi debatido. Conseguiu, no entanto, fazer “passar” ainda nessa nota o seguinte “aviso”:

Quem se der ao trabalho de folhear esta publicação aperceber-se-á imediatamente de que o «caso do Bispo da Beira» está muito longe de se esgotar num problema jurídico.

São várias as perspectivas por que tem de ser encarado, diversificadas e profundas as suas incidências, elucidativas e graves as tomadas de posição que lhe estão subjacentes.

Só o conhecimento dos diversos elementos existentes relacionados com o «caso» permitirá apreender todo o seu significado.

Já depois do “25 de Abril”, com o objectivo de permitir o conhecimento dos diversos elementos existentes relacionados com o «caso», o Dr. Carlos Lima publicou novo livro sobre o assunto, intitulado “Caso do Bispo da Beira – documentos – introdução e notas”, no qual divulga, entre outros documentos, a correspondência trocada com D. Sebastião Soares de Resende, o Prof. Doutor Guilherme Braga da Cruz, o Prof. Doutor António de Oliveira Salazar, o Prof. Doutor Marcello Caetano e o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira.

Com a nobreza de carácter que o caracterizava, Carlos Lima deixou-nos nesse livro o seguinte testemunho, inserido em nota à última carta que escrevera a Marcello Caetano, em 15 de Fevereiro de 1970:

Assim terminaram as minhas relações com Marcello Caetano.

Sei que afirmava ter-me portado mal com ele.

Nunca mais tive qualquer contacto, directo ou indirecto, com o Doutor Marcello Caetano.

Após o «25 de Abril» pensei escrever-lhe. Hesitei, adiei. Acabou por se tornar tarde.

Por paradoxal que possa parecer, creio que estaria na lógica da minha actuação anterior dirigir-lhe uma palavra nesses tempos para ele difíceis.

Estou convencido de que teria apreciado essa palavra.

E poderia ter sido talvez a ocasião para o reencontro do professor e do aluno na pureza de uma amizade que as turbulências da política puseram em causa.

 

Concluímos com palavras do Dr. Augusto Lopes Cardoso, Bastonário da Ordem dos Advogado de 1987 a 1989, escritas no seu testemunho sobre o Dr. Carlos Lima publicado na revista Limiana n.º 32, de Abril de 2013:

Inscrito no currículo do grande Bispo que foi D. Sebastião de Resende estará por certo a extraordinária e corajosa defesa daquele que foi o seu Advogado. As suas peças são de uma beleza luminosa e comovente, revelam um alicerce cristão numa firmeza jurídica difíceis de igualar na objectividade, serenidade e antecipação conciliar, e arrostam com o que de mais politicamente incorrecto havia na altura.

 

 

Bibliografia:

- LIMA, A. Carlos, aspectos da liberdade religiosa – caso do bispo da beira – peças de um processo, Empresa do Diário do Minho, 1970;

- LIMA, A. Carlos, CASO DO BISPO DA BEIRA – documentos – introdução e notas, Livraria Civilização Editora, 1990;

- AZEVEDO, Carlos A. Moreira, Perfil Biográfico de D. Sebastião Soares de Resende, Lusitania Sacra, 2.ª Série, 6, 1994;

- Vila da Feira – Terra de Santa Maria, ano VII, n.º 19, Junho 2008;

- Limiana – Revista de Informação, Cultura e Turismo, Ano VII, n.º 32, Abril de 2013.

 

Publicado em “O Anunciador das Feiras Novas” n.º 32, do ano de 2015

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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