Na vasta e multifacetada obra de Cláudio Lima, que vai da poesia ao conto, do ensaio à crítica, da crónica à diarística, publicada em volume e antologias, em páginas de revistas e jornais, Três Cadernos é, em volume autónomo, o seu décimo oitavo livro e o décimo de poemas(1). Nesta coletânea, o poeta reúne 58 belíssimos poemas, que reparte por três capítulos: «Enquanto Espero», «As Casas» e «D’Amor».
À exceção do primeiro, os outros dois capítulos são introduzidos por epígrafes de poetas portugueses, citações que funcionam como referências hipotextuais das respetivas temáticas: a casa (com versos de Eugénio de Andrade, de António Salvado e de José Fernandes Fafe) e o amor (com 4 versos d’Os Lusíadas: 2 do canto III e 2 do canto IX).
As epígrafes prefiguram e autorizam, em princípio, os textos reunidos nos diferentes capítulos. Não obstante, o poeta epigrafa, ainda, dois poemas: «Crianças» e «Comigo me desavim». Neste, a epígrafe funciona como título. É o primeiro verso da célebre «trova à maneira antiga» de Sá de Miranda(2), que Cláudio Lima incorpora no seu poema, uma belíssima cantiga de amor. É, formalmente, um soneto, único que, respeitando a estrutura do subgénero, se lê em Três Cadernos.
Comigo me desavim
(Sá de Miranda)
Ando contigo em mim
ao longo de tantos anos
e por tantos desenganos
comigo me desavim
Não deveras ser assim
autora de tantos danos
de tantos tratos tiranos
de arbítrios sem fim
Demais sofro o desvario
por esse porte tão frio
tão ferido de desdém
Mas ai de mim!, desconfio
que por mais que apele ao brio
serei sempre teu refém(3)
Construído em versos de redondilha maior, nele, o sujeito poético canta a sua condição de eterno refém da amada, apesar de, ficticiamente, por ela não se sentir correspondido. Em desavença anda, por isso, consigo próprio. Também ele, como o poeta contemporâneo de Camões, não consegue libertar-se do inimigo que traz dentro de si. Com uma significativa diferença, porém: enquanto o imigo do poeta do Neiva é ele próprio, o inimigo do atual poeta do Lima é a sua amada. Amada que, a meu ler, não será apenas ou tanto a pessoa querida, mas, antes e sobretudo, a poesia, como tal personificada.
O outro poema epigrafado é «Crianças». Cláudio Lima introdu-lo por dois versos (o segundo incompleto) de Nuno Júdice, colhidos no poema «Uma Questão de Tempo», do livro O Fruto da Gramática. É, formalmente, um poema em prosa (tal como o do poeta citado).
CRIANÇAS
“Do outro lado da casa, as crianças brincam com o tempo
que corre para que elas não brinquem com ele.”
Nuno Júdice, O Fruto da Gramática, 18
São nossas e do vento que lhes transporta a voz
chilreada para além dos muros
Pouco mais sabem do que correr sem a mínima
urgência ou precisão
Correm, imitam o voltear das aves e a recreação dos
gatos na agilidade elástica de pulos e disputas
Copiam dos adultos o afã com que obedecem à espora
pungente do dever
São a alegria da casa, o seu mais precioso tesouro, em
berços que baloiçam como barcos
Repito: ainda é cedo para saberem como gira o mundo(4)
Ainda na área da intertextualidade, além destas citações explícitas, encontram-se algumas outras, em alguns outros poemas, não identificadas nem assinaladas pelo poeta, porque facilmente reconhecíveis pelo leitor. Tais citações encontram-se no poema «Uma Casa Portuguesa e Tu Lá» e no título do seguinte, «Quatro Paredes Caiadas»(5). Remetem-nos poema e título para a mesma canção, nacional e internacionalmente celebrizada por Amália – Uma Casa Portuguesa – cuja letra é atribuída ao poeta Reinaldo Ferreira(6).
UMA CASA PORTUGUESA E TU LÁ
Longo caminho para lá chegar
cães e cabras muito por ali e pássaros
em voos e vozes num céu amplo de azul lavado
Casa pequenina: quatro paredes caiadas
sem hipoteca nem pesados ónus
num lugar sem nome e cheiro a alecrim
E tu lá
Pão e vinho sobre a mesa: broa
e verde tinto espumando
em caneca de barro sobre toalha de linho
E tu lá
Um S. José de azulejo
sobre a porta principal por onde entram
ventos parentes pedintes
E tu lá
Um cacho de uvas doirado duas rosas do jardim
mais o sol da primavera
tudo quanto basta e anuncia
uma promessa de beijos
Se tu lá
Um caldo verde fresquinho com tora e olhos
de puro azeite a fumegar na tigela
ementa frugal mas bastante
para noites de estrelas e de sonhos
Se tu lá oh se tu lá
Ao revisitar e poeticamente rever e ampliar a conhecida canção, Cláudio Lima está, ao mesmo tempo, a reinterpretar e a revalorizar o hipotexto de Reinaldo Ferreira, dando-lhe um caráter mais discursivamente dialógico e polifónico. E não é só porque nele o poeta se dirige a um tu, explicitamente invocado e convocado.
A propósito destas inter e intratextualidades, presentes nestes Três Cadernos, é de recordar a pertinente observação que, sobre a poética de Cláudio Lima, faz José Cândido Oliveira Martins. Ao analisar criticamente o volume Itinerâncias, este especialista salienta que, entre outros aspetos, «a escrita» deste nosso poeta «mantém um fecundo diálogo com a tradição literária e cultural»(7).
Regresso ao título deste conjunto de belíssimos poemas. Construídos, embora, segundo paradigmas estruturais diversos, encontramos neles a reafirmação dessa poética. Poemas que, textos sendo, gozam de relativa autonomia, podendo, por isso, ser isolados e lidos autonomamente.
Cláudio Lima chama cadernos a este seu novo livro. Ao usar o termo, o autor indicia, a meu ler, que nele reuniu uma seleção de inéditos em arquivo (manuscritos, por certo), sobre as temáticas tituladas em cada um dos capítulos. Daí, atrever-me a inferir: de três cadernos, três capítulos. Mas convirá não esquecer que, a dada altura da vida, um poeta já não escreve para a gaveta. A sua arte já precisa do crivo do tempo. Mas, um dia, lá chegará o momento de deixar a secretária limpa e arrumada.
Cadernos manuscritos – propus – já que um poeta escreve ou começa a escrever um poema sempre à mão. Mesmo que à mão não tenha papel. É pelo impulso de uma palavra, de uma expressão, de uma ideia (mais ou menos clara ou difusa), de um verso (mais ou menos completo), que, registando-os, num desses blocos de notas (não confundir com livro de cheques), pode, depois ou de imediato – também acontece – criar um poema.
A feliz ocorrência de, logo à primeira, o objeto poético sair perfeito, só se verificará, contudo, quando o poema já vem sendo construído mentalmente e, logo que escrito, lido e visto na sua redação final. Dar-se-á, nesse caso, uma «Rapidinha», título de poema que o lúcido e lúdico poeta nos oferece, em belos versos, bem temperados por delicada e sugestiva sensualidade, sexualidade:
RAPIDINHA
Vou aproveitar estes instantes
em que nada espero
para estimular o desejo
intempestivo
de me ir aos versos
Uma rapidinha lírica
e lúbrica
aqui onde nada espero
nem me espera
Basta apalpar a epiderme
quente e macia da primeira palavra
oferecida
e logo deflagro
em súbita solitária exaltação
Precoce incontrolada
ejaculação de versos(8)
Esta relação erótica do sujeito poético com a palavra e a vida, sabiamente ponteada, às vezes, por uma sadia ironia, é uma das marcas do poetar deste escritor. Como em «Olhos Meus», poema de versos cadenciados e melodiosos, cantáveis, devido à rima alternada dos versos, onde não falta, também, um certo tom satírico.
OLHOS MEUS
Abram-me a janela de par em par
quero beber o sol de nascente a poente
a energia elétrica é a pagar
e a luz que fornece é luz doente,
tão mortiça e tão doente
tão de pouco alumiar
que se o sol está ausente
vejo bem com o luar
E se a lua também se esconde
e me deixa na escuridão
a luz do olhar diz-me onde
palpita teu coração
Haja ou não sol ou lua
sei de cor o caminho
por onde minha alma vai ter com a tua
ansiosa por dormir no mesmo ninho(9)
Feita esta abordagem (evidentemente superficial) de Três Cadernos, cabe referir os pontos principais que julgo encontrar no conjunto dos poemas que o constituem.
É nos capítulos segundo e terceiro onde nos aparece um sujeito poético com um imaginário mais solar, onírico, erótico e, por vezes, mesmo dionisíaco. E, daí – convém dizê-lo – mais alegre, mais divertido e, logicamente, mais afetivo.
Nos poemas de «As Casas», o poeta compraz-se e compraz-nos, por um lado, em poeticamente cantar, ora espaços interiores, domésticos e familiares, que viu, onde viveu e conviveu; ora espaços exteriores, paisagens humanizadas e naturais, em cenários cada vez menos humanizados ou mais desumanizados. É a casa rural que o poeta vê e nos dá a ver. Com certa nostalgia crítica, perante o estado de degradação e abandono, em que muitas dessas habitações e povoados se encontram, atualmente.
Veja-se, como exemplo,
CASA VAZIA
Uma casa vazia não é casa
Mesmo que os materiais respirem
e o sol a inunde o dia todo
Faltam-lhe os gemidos do amor o crepitar
do lume
Pode ter geometria
e todas as licenças camarárias
Não é casa
Um vazio de filhos e de flores
reduz o espaço a coisa nula
Onde a arca o louceiro o escabelo
e o forno onde o pão se multiplica
para sustento da família e de quem chega?
Numa casa assim nem as paredes
reconhecem mais que o vento como dono(10)
No capítulo terceiro, o poeta oferece-nos poemas de amor. Repare-se que Cláudio Lima contrai, parcialmente, recorrendo ao apóstrofo, a preposição e o nome – «D’Amor» – para nos prevenir que se trata de textos de amor e não de um amor determinado, concreto. São os encantos e/ou desencantos pela pessoa amada, amante ou amável que o poeta, cantando, evoca e/ou invoca. Poemas d’amor, onde há um evidente erotismo, sem nunca, todavia, baixar a linguagem a níveis do mau gosto, mesmo quando o impulso, a ousadia, a estratégia, a súplica, os preliminares (títulos de poemas), a sedução, o prazer e suas práticas são evidentes, metaforicamente evidentes, evidentemente.
Assista-se, com a discrição devida, ao seguinte
RITUAL
Ajoelhas na timidez de o olhar
de pé
E dizes belo
Como quem reza
unes as mãos em ogiva
numa carícia lenta
E dizes forte
Depois
como quem receia um furto
guarda-lo no mais íntimo esconderijo
do teu corpo
E dizes meu(11)
«Enquanto Espero» é o título que Cláudio Lima dá ao primeiro capítulo e ao segundo poema de Três Cadernos.
ENQUANTO ESPERO
Quando estou na sala de espera
desta clínica
o tempo enreda-se em mim
ardilosamente
O tempo que ali apodrece esperas
entre lamentos permutados
e folhas fanadas de revistas
de lavores e lazeres
Quando estou nesta sala de espera
decifro rostos macerados
onde a dor cinzelou
máscaras cicatrizes medos
E é como se todas as dores do mundo
confluíssem para a minha alma
que mesmo antes de qualquer exame
sabe que sofre da síndrome incurável
da espera(12)
O tempo é, de facto, a principal temática deste caderno/capítulo. Tempo que, como veio subtil, percorre também outros poemas deste livro.
Tempo, mas que tempo? – perguntar-se-á.
Trata-se, evidentemente, de um tempo de espera, de uma situação ou condição de espera, como a conjunção e o verbo, em sintagma, com função discursiva adverbial, indiciam. De espera por algo ou em algo, por alguém ou em alguém. Alguém que tanto pode ser o eu do poeta que, enquanto sujeito poético e/ou enquanto sujeito empírico, sobre si próprio se debruça, como um tu ou um ele, com quem se dialoga ou quer dialogar. Um eu, um tu, um ele, alguém ou algo que se sente ou pressente, num presente. Presente pessoal e socialmente vivido, real ou simbolicamente, e sobre o qual o poeta reflete, enquanto poeta (escreve), convidando o leitor, se não a segui-lo, a acompanhá-lo no pensamento e em pensamento, enquanto lê, o lê. Daí a dimensão metafísica e reflexiva que marca estes poemas. Sirva de exemplo, entre outros:
OUSADIA
Nenhum instante sustém
a rédea ao pensamento
Veloz vence a distância
de um a outro limite
a que se lança
Qual Ícaro renascido
e de asas incombustíveis
sobe às esferas do sol
Lá onde nenhum tempo tem espora
nem espera(13)
Tratando-se de um tempo de espera, que o poeta vai preenchendo, escrevendo, sobre as condições de ser e existir, sua (enquanto escritor e homem deste mundo) e dos outros, sobretudo daqueles que se encontrem em situação de espera, será esse tempo, serão esses tempos presentes (atuais), também de esperança?
Neste capítulo predomina, a meu ler, o imaginário noturno do poeta, o seu lado angustiado, pessimista e sofrido, mesmo de relativo cansaço, ferido que está pela pungente espora do tempo. Nunca, porém, de desesperança total, embora, por vezes, se vislumbre o desânimo e a incerteza, quando breve será a espera de um fim esperado, também ele breve. Ainda que uma réstia de felicidade reste, ainda que sem tempo de eternidade. Como no belíssimo poema
REGISTO
Hoje vi uma velhinha
senti nos olhos dela
a primavera
Eram líquidos e verdes
como a água e como
provavelmente
o lastro da alegria
Ela vai morrer não tarda
nada – e tudo
ficará exatamente
como este hoje suave
e feliz estar aqui
Porque o instante
de seus olhos assim verdes
dispensa qualquer nexo
de eternidade(14)
São, todavia, os sentimentos de indiferença e abandono, vistos e vividos como injustos e ingratos, porque inesperados, após uma vida dedicada à realização de um projeto de escrita responsável, desde o início, que parecem levar o poeta a um amargo desânimo, simbólica e catarticamente configurado em
DESISTÊNCIA
Em vida já não tenho chances
de morto não me interessa tê-las
intentei arrojados lances
qual Ícaro rumo às estrelas
Fiz de mim um projeto inexequível
num país onde se dorme e se rasteja
onde sonhar alto é impossível
porque até o sonho causa inveja
Poeta me supus e me rasguei
em desânimo extremo absoluto
Pelo finado sonho a que me dei
resta-me apenas respeitar o luto(15)
Três Cadernos é, com efeito, mais um livro de belos poemas de Cláudio Lima. Ele aí está, à espera da leitura particular de cada um, enquanto esperamos pelo próximo, que, como o presente, será mais uma reafirmação da poética deste nosso poeta.
Notas
Com ligeiras alterações (nomeadamente: redução de comentários e anulação de marcas de oralidade, aqui substituídas por notas de rodapé), este texto foi lido como apresentação de Três Cadernos, na Feira do Livro de Braga, a 11 de julho de 2017.
(1) Cf. «Obras Principais» do escritor, em LIMA, Cláudio, 2017: Três Cadernos. Fafe: Labirinto, p. 79. No modo poesia, o escritor tem publicados: A Foz das Palavras (1970, 2.ª ed. 2009); Itinerarium (1994); Itinerarium II (1998); Maçã p’ra Dois (2001); Vate do Reino (2003); Arte de Amar, Ponte de Lima (2004, com fotografias de Amândio de Sousa Vieira); Itinerarium III (2006); Itinerâncias (2010, inclui os Itinerarium [I] a III e, de inéditos, Itinerarium IV); Elogios / Elegias (2014). Além disso, reúne poemas e prosas sobre o Natal, em Outrora Dezembro (2007). Em http://pontedelimacultural.pt/as-pessoas-subpag.asp?t=paginas&pid=1017&mpid=31 encontra-se uma breve descrição editorial e crítica de cada título.
(2) Cf. MIRANDA, Sá de, 2004: Poesias. Lisboa: Planeta DeAgostini; pp. 16-17. (Nota biobibliográfica por Vasco Graça Moura, diretor da coleção.)
(3) LIMA, 2017: 70.
(4) Id.: 46. O segmento «ainda é cedo para saberem como gira o mundo» ocorre, pela primeira vez, no belo poema em prosa «Aproximação ao povoado», cap. «As Casas». [Cf. id.: 37] Por se tratar de gralhas, corrigi a transcrição da epígrafe e o título do livro de Nuno Júdice. [Cf. JÚDICE, Nuno, 2014: Fruto da Gramática. Lisboa: Dom Quixote; p. 18]
(5) LIMA, 2017: 40-41 e 42.
(6) Reinaldo Ferreira nasceu em Barcelona, em 1922, e faleceu, em Lourenço Marques, em 1959, aos 37 anos, vítima de cancro pulmonar. O pai tinha o mesmo nome e foi o célebre Repórter X, jornalista, dramaturgo e cineasta português que viveu entre 1897 e 1935.
(7) MARTINS, José Cândido de Oliveira, 2011: «Cláudio Lima, Itinerâncias: poética da palavra e da luz». Limiana, Ano V – N.º 21. Lisboa: Casa do Concelho de Ponte de Lima; p. 8. Sobre Itinerâncias, ver, acima, nota 1.
(8) LIMA, 2017: 11.
(9) Id.: 20.
(10) Id.: 49.
(11) Id.: 57.
(12) Id.: 10.
(13) Id.: 18.
(14) Id.: 29.
(15) Id.: 9.
Ponte de Lima no Mapa
Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.
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