"João Marcos: Biografia e Bibliografia" - Novo livro de Cláudio Lima, por David F. Rodrigues

 

"João Marcos: Biografia e Bibliografia" - Novo livro de Cláudio Lima, por David F. Rodrigues



David F. Rodrigues



Cláudio Lima é o maior escritor limiano vivo. Reside em Braga, mas o seu apego incondicional a esta terra logo se manifesta no pseudónimo literário que adotou: Cláudio Lima. Manuel da Silva Alves nasceu em Calvelo, a 6 de abril de 1943. Feita a escola primária, estudou nos seminários franciscanos, onde concluiu o curso de Filosofia.

Chamado a cumprir o serviço militar, foi mobilizado, em 1967, como alferes miliciano, para a guerra em Angola, até 1969. Regressado, trabalhou na Caixa Geral de Depósitos, em Portugal e no Brasil. Aposentou-se, mas não se enclausurou nos aposentos: gosta de viajar e conviver; dinamiza ações de leitura em escolas, centros de convívio, cultura e lazer; faz palestras e conferências, recensões de livros em jornais e revistas, e apresenta-os por aí fora.

Cedo começou escrever e a publicar, em revistas escolares e jornais. Alargou, depois, a sua colaboração, em prosa e verso, a periódicos de Portugal, Angola, Brasil e Galiza.

É escritor e poeta ‒ suas atividades de criação literária mais conhecidas ‒ mas também crítico, cronista, diarista e ensaísta. Poeta, publicou, em 1970, A Foz das Palavras (com 2.ª ed. em 2009), galardoado com o «Prémio Nacional de Poesia – 2008». Esta nova edição inclui um ensaio (como posfácio) de Fernão de Magalhães Gonçalves, inicialmente publicado, a 30 de abril de 1970, no Diário Popular. É mais que uma recensão. É um estudo dos poemas do jovem poeta Cláudio Lima e, a propósito deles ou à volta deles, uma reflexão sobre a linguagem poética. Cito algumas referências que o crítico faz ao poeta e ao livro:

«Cláudio Lima é o nome de um jovem poeta que, a partir de hoje, deveremos fixar. […]. Os leitores habituais das nossas folhas literárias já foram, decerto, surpreendidos por algo de novo e verdadeiramente promissivo que este nome lhes revelou ao primeiro contacto com seus ensaios e seus poemas», sendo «um caso literário de sólida e adulta significação.» [pp. 91 e 92]

Estávamos em 1970. Cláudio Lima esteve, depois, sem publicar, em livro, até inícios de 1990. Não porque tenha fechado a oficina de escritor, ou melhor, fechando-a, mas para obras, que foi escrevendo e engavetando, até as julgar dignas de publicação. Continuou, obviamente, a escrever poemas, contos, crónicas e sempre, sempre o seu diário. Em 1994, lança novo livro de poesia – Itinerarium – título que retoma nas três coletâneas seguintes, duas delas em livros autónomos, mantendo o título de Itinerarium. Passa, então, a designar a primeira por Itineraruim I e as seguintes por II, III e IV.

Itinerarium IV conheceu a publicação em 2010, como inédito, no volume Itinerâncias, juntamente com os três anteriores. Neste ano, Cláudio celebrou 40 anos de atividade literária. Melhor, do início da publicação de obra em livro. Intinerâncias é prefaciado por Fernando Venâncio, escritor, crítico e prof. na Universidade de Amsterdão, que considera Cláudio um «poeta luminoso», dotado de «um fazer poético centrado na exigente transparência e no surpreendente enunciado.» [p. XI]

Pessoalmente, considero Itinerâncias um livro onde o autor manifesta e define o seu poetar, em particular, e o que é a Arte Poética, em geral. Uma meta-poética, direi. Quem ainda não saiba e por ventura queira aprender o que é poesia, entre nestas Itinerâncias. A poesia não se ensina, mas aprende-se. Seguros e rigorosos são os itinerários/caminhos que nesta viagem se percorre. O Cláudio não se mete nem nos leva por desvios ou atalhos.

Depois, em 2001, serviu-nos Maçã pra Dois. Belíssimos poemas de bem doseado erotismo e sensualidade. De ler, saborear e repetir a dose. Exemplo, como aperitivo do banquete aí servido:

«sou eu, podes abrir

 

trago a chave

e o segredo

 

a alegria de decifrar

devagar

a grafia do teu corpo

sem medo

 

esse fio de fogo

à flor dos lábios

contornando os sentidos

 

sou eu, lança desnuda

varando de ternura

os teus gemidos». [p. 13]

 

Vate do Reino sai em 2003. Está esgotado. «É o meu melhor livro de poesia», confidenciou-me Cláudio. Uma visão lírica, a par de uma certa amargura e muita ironia, sobre um país dividido entre um litoral e uma interioridade.

Arte de Amar Ponte de Lima vem a lume em 2004. Poemas em diálogo (direi intertextual) com as belíssimas fotografias de Amândio de Sousa Vieira. Exemplo:

«O rio dorme… não o acordeis,

barcos que passais sobre o seu leito.

Deixai-o sonhar assim, entre vergéis,

o sonho do seu grande amor-perfeito.» [p. 27]

 

E chegamos ao ficcionista. Cláudio Lima tem-se dedicado sobretudo ao conto. Até hoje, além dos dispersos, publicou Por Aqui Não É Passagem, em 1993; Os Morros de Nóqui, em 2004 (com 2.ª ed. revista e aumentada em 2009); e Contos Baldios, em 2007. Geralmente breves, mas grandes a nível literário e humano, encontramos narrativas sabiamente construídas que, uma vez começadas a ler, só paramos no fim. Mas com vontade de voltar ao início.

Em Por Aqui Não É Passagem e em Contos Baldios, encontramos, como cenário natural, social e humano, uma ruralidade pura e dura, por vezes rude e mesmo trágica, além de sempre rústica, que se viveu e ainda viverá em muitas aldeias do nosso Minho. Dirão alguns que neles se notam influências de dois grandes mestres da nossa literatura, que sobre esta região e suas gentes deixaram páginas inesquecíveis, monumentos da Língua Portuguesa e do nosso riquíssimo património literário. Refiro-me a Camilo e a Aquilino. Nomes próprios de dois escritores, nomes tão próprios e ao mesmo tempo tão nossos, que nem precisamos dos apelidos para os identificar e reconhecer. Cláudio Lima, escritor culto e honesto, deixa entrever ou mesmo sugere essas influências. Afetividades de leitura que sempre geram afinidades de escrita.

O pano de fundo de Os Morros de Nóqui é a guerra colonial, concretamente em Angola. «Vivi dois anos em Nóqui» ‒ diz-nos Cláudio em nota preliminar ‒ «numa guerra que não quis mas a que me sujeitei, assim como alguns milhares de jovens da minha geração.» Adverte que estes contos são «estórias», isto é, ficções, «não é a História», no sentido da disciplina científica. Daí, «nomes, situações, toponímias, etc.» serem «fictícios» ou estarem «adulterados ou descontextualizados».

Outrora Dezembro (2007) é livro onde o Cláudio reúne textos em poesia e prosa alusivos ao Natal, publicados em jornais, principalmente no Cardeal Saraiva.

Se referisse, agora, todos os títulos de antologias e obras coletivas onde o Cláudio tem poemas, contos e outros textos, correria o risco de vos cansar ainda mais. Contei 23. Refiro apenas os mais recentes (desde 2010):

O prisma  das muitas cores (Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira); Resumo (A poesia em 2010); 100 Poemas para Albano Martins; Cintilações da Sombra; Vozes Confluentes; Doce Inimiga (Solidariedade com a Colômbia); e O Amor em Visita.

Cláudio Lima dedica-se também ao ensaio e à crítica. Nestes domínios, publicou Um Rio de Muitas Luzes (subtítulo Limianos ilustres) em 2005, e Os Meus Autores (subtítulo Letras do Minho) em 2011. Tem pronto para publicação um outro volume de crítica e ensaio ‒ Luzes de Muito Brilho. Um dia destes aí o teremos.

É nestes domínios que se enquadra João Marcos: Biografia e Bibliografia. Como o próprio título indica, é uma monografia sobre a vida e a obra deste autor.

O livro está estruturado em duas partes distintas, mas complementares. Na primeira, o Cláudio relata as principais etapas da biografia possível de João Marcos e respetivas circunstâncias de tempo e lugar (nascimento, infância, adolescência, emigração, casamentos, filhos, trabalhos, profissões, residências, morte). Depois, analisa criticamente a obra do escritor, sobretudo a publicada em livro, relacionando-a com os contextos literários e culturais, políticos e sociais. A segunda parte é uma «antologia» de poemas e trechos em prosa, de ficção narrativa e investigação histórica.

O primeiro trecho antologiado é «No túmulo de António Feijó», poema de 1935. Integra o livro Polifonia Singela, publicado em 1946, no Brasil, para onde Marcos emigrara em 1939 e de onde regressaria em 1947. Neste livro, Marcos reúne poemas escritos a partir de 1933. Seguem-se poemas, em média 2 por título, dos 10 livros publicados entre 1953 (Um Novo Mundo Perfeito) e 2003 (Epopeia do Homem Lusíada).

Vêm depois trechos dos 4 romances, publicados entre 1987 (Entre o Amor e a Loucura) e 1999 (Estraburgo 1964). Cláudio considera, todavia, Uma Terra Que Se Chamou Geridel (1992) e Nas Ourelas do Fogo (1993) os dois «melhores romances» do autor. Constituindo «duologia», analisa-os, em conjunto. Esta secção antológica relativa ao ficcionista termina com excertos do livro de contos A Minha Alma Brasileira, de 2003.

A «antologia» finda com trechos de dois trabalhos em torno de dois nomes importantes de Ponte de Lima: O Conde da Barca na Política Europeia do Pré-Liberalismo (s/d) [1993], e Cardeal Saraiva (Evocação de Frei Francisco de S. Luís). Este último estudo, publicado em 1995, é conferência que Marcos proferiu, em 1992, na Casa do Concelho de Ponte de Lima, em Lisboa.

Um fio condutor percorre a maioria dos trechos antologiados: a «faceta limianista» de João Marcos. Faceta que, segundo Cláudio, «se manifesta a espaços em praticamente todos os seus livros de poemas» [pp. 120-121] e que o próprio Marcos releva, nas seguintes palavras, de recorte pampsiquista:

«Creio que todas as pessoas, quando nascem, trazem impressos no corpo e na alma não só os caracteres físicos e psicológicos dos seus progenitores, mas também as características próprias da terra onde nasceram. Características que de tal modo se imprimiram na formação da sua personalidade que jamais as peripécias e os problemas da vida conseguiram diluir, antes contribuíram para mais as entronizar na sua idiossincrasia e maneira de ser. E as terras da Ribeira-Lima, sobressaindo na generalidade da terra minhota, prendem de tal modo a alma de uma pessoa ao torrão natal, que todo aquele que algum dia teve de o abandonar volta sempre, se não em presença física, na irresistível saudade e nostalgia que a Ribeira-Lima transmite aos seus naturais.» [p. 34]

Repare-se, agora, neste belo fragmento em que Cláudio imagina como teria sido a infância e juventude do pequeno João, em Rebordões-Santa Maria, que o romancista vai depois retratar com o nome fictício de Geridel, nos livros Uma Terra Que Se Chamou Geridel e Nas Ourelas do Fogo. Observa Cláudio:

«João Marcos é um português de Ponte de Lima. E essa fatalidade marcou-o profundamente. A sua terra natal reflectia, então, um típico ambiente minhoto na sua ruralidade e arcaísmo, votada a uma agricultura de penosa subsistência. Vivia-se um quotidiano sem conforto nem horizontes, buscando-se nas insondáveis reservas anímicas aquele élan que mantinha o povo desperto e expansivo em seus fatinhos domingueiros, em cantares e bailaricos por feiras e romarias. Os mais inconformados, os braços mais robustos e os espíritos mais clarividentes demandavam outras paragens em busca de um pão mais abundante e mais arejados climas culturais.»

E prosseguindo, descreve:

«Foi neste cenário que João Marcos passou a sua infância e adolescência. Seguramente que andou aos ninhos, invadiu eidos e pomares de tentadora fruta temporã, deu e levou porrada nas contendas de putos, sentiu os primeiros estímulos eróticos e rimou os primeiros galanteios às mocinhas da sua idade. E, presumivelmente, começou a interrogar-se sobre os enigmas vitais e metafísicos. Sensível, sonhador e perspicaz, cedo despertou nele a consciência, que as evidências agudizavam, da pobreza, da desigualdade, do sofrimento e da morte. Essa consciência angustiada e vigilante e a consequente luta pelos ideais de justiça, solidariedade e liberdade, irão caracterizar profundamente a sua conduta de cidadão e de intelectual.» [pp. 11-12]

Por não conhecer a totalidade e em profundidade a bibliografia ativa de João Marcos, não posso nem devo ir além do que disse. Aliás, fazê-lo seria meter a foice na seara específica que o Cláudio, neste livro, semeou e como fruto maduro hoje nos oferece. Devo, porém, anotar que, pela qualidade dos trechos selecionados e pelo rigor crítico dedicado à obra, só se pode ficar com vontade de ler o trabalho literário e de investigação do biobibliografado.

E, se é certo que, como refere o sr. presidente da Câmara, alguns livros do escritor são hoje «obras raras», temos as bibliotecas municipais e nacionais, felizmente ainda públicas, onde as encontramos, para em privado as ler e fruir. A melhor forma de homenagear um escritor é ‒ sempre foi ‒ ler a sua obra.

Concluo com o retrato breve, mas de traço firme, que o biógrafo nos dá do biografado, enquanto cidadão e escritor:

«João Marcos é um homem que fez da sua vida uma generosa aventura e das letras a sua paixão dominante. A sua poesia e a sua prosa narrativa — e sem excluir o seu labor de investigação histórica e de intervenção cívica — constituem inequívoca prova de um espírito que exaustivamente se questiona, que não cede a soluções fáceis e gratuitas, que conduz a escrita até aos limites da inquietação.»

E, depois de o considerar «um dos maiores escritores do Lima» do séc. XX, remata Cláudio que ler Marcos «é acompanhar o seu itinerário íngreme e pontuado de adversidades; é testemunhar a sua fé inabalável no Homem, contra todas as tentativas de manipulação e de redução a mera peça de uma engrenagem; é, enfim, usufruir de uma escrita exigente, vigiada, exemplar.» [p. 33]

O lançamento deste livro, neste dia, 25 de abril de 2014, ocorre e inscreve-se na celebração de dois importantes acontecimentos. Homenageamos o homem e o escritor João Marcos, celebrando o aniversário do seu nascimento. Celebramos também a revolução com que, há 40 anos, os capitães de abril permitiram que este país passasse a viver em liberdade, em democracia e em paz. Liberdade, democracia e paz que são condições fundamentais, porque fundadoras, de um viver social e pessoal digno e em dignidade.

Feliz coincidência esta! Que a celebração, porém, destas efemérides, no mesmo dia, não sirva nunca para que uma diminua ou apague a outra.

Ponte de Lima, 25 de abril de 2014

 (Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 38, de Junho de 2014)

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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