Alguns enigmas da Capela de Santo Abdão da Correlhã (Parte I), por João de Araújo Pimenta

 

Alguns enigmas da Capela de Santo Abdão da Correlhã (Parte I), por João de Araújo Pimenta



João de Araújo Pimenta



No extremo norte do adro da Igreja Matriz de S. Tomé da Correlhā situa-se uma ermida cujo orago é Santo Abdāo, peregrino Italiano que, segundo a lenda, no regresso de Santiago de Compostela e atraído pela Ribeira Lima, aqui permaneceu como ermita e "acabou a vida santamente". Logo no adro da Matriz, na época servir de cemitério paroquial, a sua sepultura se converteu, sobretudo durante o século XIV, em lugar de peregrinação por ser a de um santo protetor contra o "mal de maleitas" (paludismo), doença que nesses tempos medievais grassava na região. Tal fervor religioso motivou a construção sobre a campa deste santo de uma ermida a qual, afortunadamente, ainda hoje permanece quase intacta. Na sua "História Ecclesiastica", já o Arcebispo de Braga D. Rodrigo da Cunha (1627-1635) informava que "...Sobre a sepultura do Santo, costumam muitos doentes de mal de maleitas lançar-se por algum espaço, até lhe vir a sezão, com fé viva de alcançarem saúde, como milagrosamente alcançam os que usam deste remédio, tornando para sua casa sãos, engrandecendo a Deus, e louvando ao seu santo, por cuja causa é mui frequentada esta ermida de todos os moradores vizinhos".

A partir do segundo quartel do século passado, os encantos deste templo estimularam diversos críticos e historiadores de arte na lavra e publicação de importantes estudos. Autores consagrados – Luis Figueiredo da Guerra, Felix Alves Pereira, Manuel d'Aguiar Barreiros, Aarão de Lacerda, Carlos de Passos, Reynaldo dos Santos, José Rosa Araújo, António Matos Reis, Carlos Alberto Ferreira de Almeida – analisaram até ao pormenor, nas suas publicações, as facetas arquitectónicas, artísticas, sociológicas e históricas da ermida de Santo Abdão. Não se justifica, por isso, dissecar nestas páginas tais temas, limitando-nos simplesmente a dar notícia de alguns dos vários enigmas alusivos a este templo e da perene curiosidade que despertam.

Construção de estilo românico rural do período tardio, de resistência, também designado proto-gótico, não são coincidentes os pareceres quanto à sua cronologia, variando desde meados do século XIII até aos primórdios do século seguinte. Surge-nos assim o primeiro enigma, dada a ausência de documentação escrita ou datação nos silhares do edifício.

As dimensões da capela, sendo de uma só nave, com ousia também retangular, ambas com teto de madeira, unidas por arco cruzeiro, sem torre sineira e erigida no adro-cemitério paroquial, induziram a maioria dos autores a considerá-la um espaço de motivação devocional e funerária. Acresce que alguns dos motivos presentes no tímpano do portal ocidental se relacionam com rituais funerários: o nó mágico ou signo de Salomão e a cruz vazada circunscrita por uma facha circular perlada coroada por uma pomba, ambos relacionados com a Eternidade e os poderes para esconjurar os maus espíritos. Este nó de Salomão está encimado por uma decoração deveras enigmática: uma palmeta enlaçada?, um podão?, um ramo estilizado?, um ornamento pouco perceptível?, são algumas das tentativas de interpretação dos peritos. Na parte central do mesmo tímpano, uma escavação pentagonal com duas aberturas quadradas, sugerindo a área de encaixe de uma desaparecida prancha de pedra, atesta a já secular celeuma acerca da "grave mutilação" que esta estrutura monolítica sofreu, corria então o ano de 1750. Tal decisão iconoclasta resultou do "exagerado puritanismo" de um visitador diocesano, Rev.º José Diogo de Azevedo, pároco da freguesia de S. Pedro de Esqueiros, do vizinho concelho de Vila Verde. "Aquela obra asseada do tímpano" garantiu desde então a ira e os gracejos dos críticos e historiadores de arte, dirigidos ao “visitador da 3.ª parte da Nóbrega e Neiva, por S. A. Sereníssima Snr. D. Joseph, Arcebispo e Senhor de Braga, Primaz das Hespanhas” (1741-1756). O nome deste prelado, filho natural de D. Pedro II, nascido em 1703 e nomeado para a mitra bracarense, em 1739, por seu irmão D. João V, permanece nos anais de Ponte de Lima por nesta vila ter morrido subitamente, em 1756, na Casa d'Aurora, aquando de uma visita pastoral. Co-responsável pelo acto vandálico de seu visitador, penitenciou-se cumprindo a segunda obra de misericórdia corporal ao brindar a então sequiosa cidade de Braga com as celebradas "Sete Fontes" as quais, nos tempos recentes, lutam contra a ameaça do camartelo dos empresários de construção locais.

Outra personalidade da cúria episcopal bracarense ligada à ermida de Santo Abdão, D. Rodrigo de Moura Teles (1704-1728), conhecido não só por ter mandado construir a Escadaria do Bom Jesus do Monte e a Igreja de S.ta Maria Madalena na Falperra, mas também pela sua reduzida estatura (não excederia 1,30 m) e usar uns sapatos litúrgicos de salto alto para o ajudar a aceder ao altar. Todo o visitante do Tesouro-Museu da Sé de Braga recorda para sempre, além da imagem da Cruz de Ferro usada na primeira missa celebrada no Brasil, a do exemplar de sapatos de salto alto do ilustre arcebispo. Este antiste visitou a Capela de Santo Abdão 50 anos antes de o puritano mutilador de Esqueiros; achou-a "muito interessante, mas descurada" e recomendou ao pároco local o maior desvelo na sua conservação. Nāo encontrou motivos obscenos na imaginária do templo. De modo igual ao de gerações anteriores, o arcebispo D. Rodrigo interpretou os signos icónicos do tímpano frontal e de outras partes da capela como elementos não só decorativos, mas também úteis para a compreensão fácil do motivo exposto e de importância para a instrução religiosa e educação moral e cívica dos fiéis que, nesses dias, eram maioritariamente analfabetos.

Conhecer a figuração que foi desbastada no centro do tímpano da fachada ocidental da Capela de Santo Abdão, o lugar usualmente escolhido pelos construtores para o símbolo mais em destaque nos templos, continua um mistério. Múltiplas interpretações surgiram, a maior parte seguindo uma leitura, considerada por nós errada, de uma transcrição do "Livro de Visitações da Correlhã", documento lamentavelmente queimado no 1.º quartel do século passado. Na referida transcrição ("...apenas tem a semelhança de hū páo liso que lhe encobre a parte mais impura, deyxando aos olhos manifestas as partes aderentes, o q.he obsceno, indecentissimo e intoleravel em qualquer parte profana, q.to mais nos lugares dedicados a D.s; pelo que ordeno ao R. Par.o q. por conta das esmolas, mande picar toda esta estatua, deyxando a pedra, em q.se acha levantada, liza e raza..."),o trecho "hū páo liso..." foi interpretado por vários autores, seguindo talvez a escola freudiana..., como se tratasse de um falo em ereção numa escultura de Adão, mas parece-nos significar apenas "um pano liso", peça de tecido sempre usada na imaginária de Cristo Salvador para Lhe encobrir "a parte mais impura". A referida estátua representaria Cristo em glória, rodeado pela mandorla, tema usual nos pórticos das igrejas românicas quer no Minho, quer na Galiza. E esta hipótese corrobora a versão do meu prezado amigo, o ilustre historiador pontelimense Doutor António Matos Reis. Segundo este autor, "… A "Indecente imagem" mais não devia ser do que uma frustre escultura de feição popular, tão ingénua que nunca podia considerar-se escandalosa. Assemelhar-se-ia às do tímpano de San Salvador de Budiño ou de Santa Maria de Cela, na Galiza. Representaria possivelmente o próprio Salvador no ato da sua Ressurreição ou Ascensão Gloriosa, expoente do triunfo da vida sobre a morte, a que aludem os elementos decorativos e simbólicos que o rodeavam e ainda se mantêm...".

Nos nossos dias, o puritanismo desse visitador demanda uma certa indulgência, se o ajustarmos à mentalidade religiosa da Contra-Reforma. A onda iconoclasta da legislação do Concílio de Trento (1545-1563) ainda vigorava na época quando o visitador empreendeu na capela do Santo Peregrino "aquela obra asseada no tímpano", dito mordaz do Cónego Manuel d'Aguiar Barreiros. A crítica severa a este e outros actos demolidores partiu de historiadores esquecidos ou desconhecedores das regras que, nas visitações, os prelados eram obrigados a cumprir pelos bispos de diocese. Tais critérios tridentinos implicavam depurações notórias nas "imagens de falso dogma" e de "formosura dissoluta", indo até à sua destruição completa quando exercidos por agentes assaz rigorosos, como o pároco de S. Pedro de Esqueiros.

As esculturas impúdicas sempre participaram na iconografia dos templos românicos, seja nos capitéis das colunas, seja nos "cachorros" que amparam os frisos das cornijas nas suas paredes laterais, evidenciando uma variedade ornamental em que predomina a assimetria, uma das características desse estilo arquitectónico. Os assuntos patentes em tais esculturas, de valor simbólico e muitas vezes desprovidos de valor estético, tinham bastante importância pedagógica, além de servirem de protecção ao afugentarem os espíritos malignos da Casa de Deus. Há mesmo autores pretendendo achar na colocação de sinais sexuais na frontaria dos templos um modo de esconjurar os maus espíritos e incitar à procriação, dada a baixa natalidade naquela época medieval de fomes, guerras e pestes (as estimativas referem que 4 de cada 10 menores não superavam o 1.º ano e 35% das crianças nascidas não alcançavam os 10 anos).Tal simbologia mostrava ainda aos iletrados os pecados que conduziam ao Inferno, especialmente a luxúria e a avareza, os mais temidos nos tempos medievos, e por isso os luxuriosos e os avarentos surgiam com frequência representados nas esculturas a versar o tema dos castigos infernais.

A interpretação do simbolismo de parte das fiadas de "cachorros", que correm sob as cornijas laterais desta ermida, continua enigmática. Embora haja alvitres de que alguns deles visam ridicularizar os vícios e louvar as virtudes, todavia muitos continuam indecifráveis. Esta dificuldade dever-se-ia não só ao facto de o uso de mensagens simbólicas, muito seguido pelos escultores medievais, sofrer outra análise nos dias de hoje, mas também ao estado de conservação de certas esculturas, bastante delidas seja pela acção erosiva do tempo (muitos séculos), seja pelos atos vandálicos.

Nesta primeira parte do nosso trabalho, resta-nos dar notícia da existência de outro enigma na capela: um ressalto, de 4 a 5 centímetros, a meio da parede meridional, partindo desde a jamba esquerda da porta até à fachada axial. A sua localização no lado sul, o lado do sol; a existência de sinais de reparação de escavados nos silhares que o encimam e talvez ainda a acção erosiva do pico de "zeladores" sugerem ter existido, adossado a essa parede, um alpendre para abrigo de fiéis e peregrinos.

Na futura Parte II deste trabalho completaremos a lista de enigmas da Capela de Santo Abdão. Para levar a cabo esta tarefa aguardamos inspiração oportuna dimanada deste templo, seguindo a prática de Claude Monet. Este pintor contemplava a nave das igrejas a fim de que pudesse observar as múltiplas tonalidades na cor da silharia, conforme nesta incidia a luz solar ao longo do dia e do ano, desfrutando assim de êxtases inspiradores. Proveito similar esperamos obter ao mirar o granito das cornijas e da fachada poente onde imperam a formosa rosácea, o tímpano, as colunas e os capitéis desta pequena ermida, tão harmoniosa e fascinante.

Correlhã, 25/3/2019
Bibliografia: a incluir na Parte II
Publicado na Revista Correlhã em Festa, Ano XIV, n.º 14, 2019

 

   Fotografias: Amândio de Sousa Vieira

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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