Salvé, ó Límicos, salvé Limianos! (*)

 

Salvé, ó Límicos, salvé Limianos! (*)



António Martinez Coello



 

Meus queridos irmãos límicos!

Cá cheguei, com as águas da nascente, um dia cálido de há 25 anos. Como elas, louquinhas e cantadeiras, fiquei espantado ao ver, pela primeira vez, Ponte de Lima... a terra rica da Humanidade, como diz o lema, a se espelhar, desde a Torre da Cadeia, pelo rio todo.

… E espantado, como elas, apurei meu ouvido ao seu gorjeio encantado: “... não é possível, diziam aquelas águas vindas do Talarinho..., a primeira vila desde a nascente que nos honra assim... que faz de nós a marca pátria, com a sua ponte... que tudo nos vem dizer e coscuvilhar, que chora seus mortos na capelinha de Sto. António, mesmo ao pé de nós, que também cá, no Arnado, canta e baila com os seus ranchos e concertinas, que pela nossa ponte passam todos os seus cortejos e procissões sacras e profanas... que ao nosso areal nos vem trazer, também, a corrida louca e “aos tombos” da sua “vaca das cordas” e suas “Feiras Novas”.... todas elas cá se fazem e quão bonitas nós ficamos, com que requinte nos enfeitam as cores dos seus foguetes que nos fazem ser, no líquido universo daquelas noites, as ninfas e nereidas das odes de antigamente, com vestes de pérola e carmesim e das sedas todas que nem as princesas e odaliscas orientais... mas que, enfim, e agora para mais nos aliciar, plantaram ao pé de nós a paisagem mágica, magnificente e única, dos jardins todos do mundo em seu “Festival Internacional de Jardins”…

… e também ouvi que murmuravam, para ninguém as ouvir, que elas nunca mais queriam deixar esta ribeira, e vi, logo após, como todas, atrapalhadas, iam espalhar-se pelas ribeiras ou no escondidinho das poças e, por lá, pelos lameiros de Arcozelo e Faldejães... empurrando o rio Labruja que já não sabia por onde se ficar nem para onde ir desaguar...

… e ouvi, finalmente, que os seus olhinhos feitos lágrimas, feitos luz e sol e feitos corpo imaterial, mas essência pura de vida, da nossa vida que elas são, brincavam louquinhas de contentes:

... pela primeira vez, estamos a ver que os homens não nos viram as costas, nem fazem de nós a “lixeira” que temos de suportar por tantas aldeias, vilas e até cidades, até chegar aqui...

… como é assim possível, diziam, quando nós somos a parte essencial de si próprios, dos humanos, ... pois nós, as águas... somos 87% da sua matéria viva?...”

Quis ouvir mais… mas corriam todas atrapalhadas a enfiar-se pelo escondidinho das redondezas... não pude ouvir mais...

Sim, de certeza, concordo com as águas, todas olhos a rebrilhar, com aquela marca: terra “Rica da Humanidade”, mas elas não podiam sair do seu leito a ver aos homens... Terra Rica da Humanidade, sim, mas... não só, pois cá a riqueza não serve para estragar, para deixar aos poucos, no silêncio, seus sinais identitários, a sua memória colectiva, o seu património cultural, para poluir o seu ambiente, para diluir sua vida nas ilusões da estulta e fátua globalidade..., é mesmo Terra Rica, mas… sobretudo, é uma Terra “Rica em Humanidade”.

Terra rica em Humanidade… eu tinha lido tanta vez… mas nunca até aquele momento tinha entendido o significado e a dimensão autêntica daquela expressão, que senti pela primeira vez nos textos do antropólogo Odo Maquard quando ele diz: o homem não pode ser só um ser a lutar pelo progresso e pela riqueza sem medida, e dizer, o homem que só destrói, o homem irracionalmente doido com a riqueza, com o progresso à custa de tudosenão, também tem de ser, um ser “ludico festivus”, é dizer o homem racionalmente criador, pois a “festa” é um dos componentes essenciais da nossa cultura: a “festa” marca os ritmos da vida do homem desde o nascimento até à morte; a “festa” nos conecta com os fastos da história cósmica e da nossa aventura espiritual.

A “festa” é, em realidade, quem estabelece e regulamenta o lugar que corresponde ao trabalho. O trabalho que na nossa civilização é um instrumento decisivo na consecução da plenitude do ser humano, mas que nunca pode ser considerado como único fim em si mesmo, como único objectivo em nossa vida, por muito bem retribuído que ele seja!

Quando Deus, na Bíblia, criou o homem, fê-lo “à sua própria imagem”... e, da mesma maneira que todo o homem que trabalha para sobreviver tem de fazer uma dia de “festa” depois dos seis de trabalho, também Ele descansou após os seis dias da criação, e guardou a festa.

Pela sua natureza, o homem não só trabalha e pensa... mas também canta e dança, conta as suas histórias, reza e festeja. O homem é, e tem de ser, um ser festejante e festivo, e, por isso, temos de exaltar a festa, pois é uma manifestação exclusivamente humana, pois o homem, como ser racional e excêntrico, tem capacidade para sair da sua própria vida, da rotina que constitui o tempo do “trabalho”, de quebrar o quotidiano: isso é, precisamente, eis... a “festa”.

Pois foi a “festa” a que veio criar a “ilusão” do tempo, a que veio quebrar a sua sucessão linear, estabelecendo períodos ou ciclos. Um período de tempo é, precisamente, o intervalo que existe entre duas festas sucesivas dum mesmo tipo, e assim é conhecido como semana, mês, ano... assim foi como o tempo foi criado, pois falamos de medir o tempo a partir desses intervalos entre as “festas” que acontecem na nossa vida social. Antes de isto acontecer, antes de existir a “festa”, o tempo não podia ser medido.

Mas... uma outra característica do ser lúdico “festivus”, e componente intrínseco da nossa cultura, é a fantasia e a crítica social. E sabemos, também, que a sobrevivência de nossa espécie está em perigo sem a experiência do passado, pois o futuro não pode ser uma rotina de inovações, de descobrimentos técnicos constantes que esmaguem por completo a nossa alma.

A inovação, o progresso constante sem a “fantasia” reduz-nos  a um ser ruim e provinciano. Eis... que sem a “fantasia”, essência do ser “festivus”, a nossa personalidade vai deteriorando-se, porque vamos perdendo o sentido da temporalidade.

O homem, meus amigos, só pode avançar, confiadamente, para além da incerteza do futuro, quando, previamente, é capaz de assimilar, e, sobretudo, melhorar a sua experiência passada. Mas é a “fantasia” quem o vai capacitar para melhorar e experimentar cada dia o presente; sem “fantasia” o destino do homem seria fundir-se num estado de prostração e depressão (a enfermidade do momento)...

A lembrança do passado é a preparação para nos antecipar ao futuro. A nossa memória histórica vem a ser a recriação de todos  os elementos estéticos, emocionais e simbólicos em que a nossa vida decorre: são aqueles fitos familiares e sociais, mais próximos, de destaque, são as nossas lendas, fábulas, histórias e contos, os nossos serões; são os nossos jogos, as nossas cantigas, as nossas rezas, as nossas preces e vivências religiosas, e, também,... as nossas “festas”, quer dizer, todo o quotidiano vital familiar e social que nos conforma como ser “festivus”, como “homem fantasia”, isto é, como o ser histórico que todos nós somos.

Sem estes componentes a nossa civilização, mesmo que aceda ao maior grau de poder e opulência, tornar-se-á cínica e acabará por se estragar a si própria, como aconteceu com Roma. E também pudemos observar, nos últimos séculos, como os esquemas sociais e económicos que impuseram o capitalismo e a revolução industrial levaram a humanidade a privilegiar virtudes como a sobriedade, a frugalidade, a laboriosidade ou ambição sem limites, próprias dos esquemas impostos pela rígida moral protestante... implacável contra a atitude lúdica e festiva que sempre caracterizou o espírito do catolicismo...

Mas,… mais recentemente, nas últimas décadas do progresso industrial europeu, estamos a contemplar o férreo poder, até coercitivo, do “factor trabalho” nas sociedades modernas, tentando converter a “festa” num fenómeno marginal da vida quotidiana, e,  assim, também contemplamos como.... o resultado deste progresso industrial está a estragar e destruir o meio ambiente, a destruir os nossos rios e lagoas, o planeta todo ao envenenar a nossa atmosfera, e, mesmo, está a tentar mudar e prostituir a escala de valores espirituais de nossa civilização ocidental. Este é o erro de maior gravidade, pois obter o produto nacional bruto mais elevado ou a supressão total do desemprego não chegariam, por si sós, para salvar a humanidade, como, mesmo, não está a salvar essas sociedades mais opulentas de terem os maiores índices de suicidios.

Só, meus queridos amigos, o espírito lúdico e festivo que preside aos actos mais nobres e íntimos da vida do ser humano possibilita e é capaz de nos afastar da rotina do trabalho, ou da ruindade de nosso quotidiano, para chegar ao disfrute em plenitude desses momentos de convivência sem os quais a nossa vida deixaria de ser humana...

Isto tudo, irmãos limianos, é o que conforma o ser humano total, o que faz dum país uma Terra Rica, mas sobretudo, Rica em Humanidade.

E...

Eis... a Terra Rica em Humanidade que as águas acabadinhas de chegar desde a nascente beijaram pela primeira vez; a terra que tem as águas como a sua marca e lema pátrio, na Ponte de seu rio, a vila de Ponte de Lima, cântico dos cânticos dos valores espirituais identitários da terra e do homem limiano.

Portanto, eu, com as águas que descobri lá “na nascente” e das quais vos deixo, neste livrinho, o seu percurso primeiro, a sua vida da nascente, tão laboriosa e tão feita aos interesse e ao serviço do homem, eu, com elas cá vindo, saúdo-vos, com a solenidade e a reverência daqueles romanos, também um dia cá chegados,

- Salvé, ó Límicos, salvé Limianos!

Exultai, vós, moradores destas Ribeiras, irmãos limianos, neste momento em que os límicos da nascente cá chegam para reviver, para nos contagiar, para nos vivificar no espírito do homem integral que esta vila de Ponte de Lima representa... a vila que vós sabeis cantada pelos mais ilustres escritores e poetas de todos os tempos que nela descobriram os alicerces e os vestigios certos dos Campos Elíseos, do mesmo paraíso... esta terra, sim, com a riqueza toda … mas, mais ainda, “Rica em Humanidade”.

Humanidade e Espírito Identitário que, pelo tempo todo da sua história, os seus melhores filhos zelaram e lutaram por incutir e por preservar, ponte-limenses ilustres, dos quais não me corresponde fazer o seu relato histórico mas, sim, permiti-me lembrar os Presidentes da Câmara que, nestes últimos 25 anos, eu conheci:

- Ao muito admirado Dr. João Abreu, muito querido para mim por ter resgatado para a vida cultural e para o pulsar espiritual da vila, pois a cultura é espirito - o trabalho espiritual do homem -, o meu saudoso Zé Rosa de Araujo. O Zé Rosa de Araújo que marcou um fito sem par nestas terras, cá trazido e resgatado para a vida cultural de Ponte de Lima pelo Dr. João Abreu, juntamente com o Padre Manuel Dias, aos quais muito deve e continua a dever esta Terra Rica em humanidade... mas que, por sinal, também deixaram uma boa escola da qual cá, hoje, nos honram com sua presença dois ilustres membros, o Dr. Matos Reis e o Engenheiro João de Abreu.

- Ao seu irmão, Dr. Francisco de Abreu Lima... tão zeloso de realçar seus valores pátrios e suas origens... eis... o busto da mais querida rainha Dona Teresa a presidir à artéria principal da vila... e tão, tão preocupado, ele, pela “geminação” adormecida... e de cuja preocupação, por sinal, tantas cartas levei para os autarcas das terras da nascente.

- E, finalmente:

- Ao “grande” Sr. Engenheiro Daniel Campelo. A sua obra está toda, ainda, a palpitar, e, toda ela, presente, toda ela omnipresente, toda ela ímpar, toda ela por todo o lado, toda ela nos homens todos e em toda a alma limiana... que fez ainda mais rica a Humanidade toda de Ponte de Lima. Minha admiração foi sempre muita, e, para ratificar estas palavras, também nos honra o director do “Notícias dos Arcos”, o amigo Mário Pinto, para salientar e testemunhar que nas minhas crónicas da Galiza que eu mandava ao seu jornal, eu sempre rematava em todas, com pena, mas esperançado: “Oh, se a minha Galiza tivesse um Campelo!”

Eis… três ilustres pilares desta vila... Eis três elementos ímpares que tanto fizeram para criar, conservar e vitalizar a sua memória colectiva, o espírito do “trabalho e do progresso”, mas, também, de “festa” e fantasia” que a vila respira em todos os seus cantos.... Eis... três ilustres “pontelimianos” que forjaram e preservaram com mimo os valores identitários da Terra e do Homem da Ribeira Lima.

Com eles, e com o espírito colectivo da identidade limiana que este acto representa, oficiemos, nós todos, o rito desta festa que hoje estamos a celebrar, a festa desta grande colectividade dos límicos, dos límicos da “nascente” e dos límicos desta “Ribeira Lima”

Este acto e este Rito de Iniciação numa mesma colectividade, já geminada, do qual este ano se estão a celebrar os seus 25 anos e que, também, este livrinho quer lembrar.

A festa destas duas terras geminadas, destas duas vilas irmãs, que, na sua grande “tesela” de irmandade, seu documento de geminação proclama como  “Unidade geográfica de Vale do Lima”:

- A “consciência” da realidade sócio-cultural do “espaço civilizacional que a define e conforma” e dizer: “irmãos de peito, irmãos límicos”

Levantemos, portanto, irmãos, nossas almas como um copo simbólico para brindar e festejar, entre todos, este Rito da nossa Geminação, da nossa Irmandade que estamos a celebrar, para que um dia, muito próximo, destaque com os maiores frutos e faça de todos nós, límicos, uma das Terras Ricas em progresso duma Grande e Única..., sim, duma Única Ibéria, mas também, e, sem nunca deixar de ser, uma Terra Rica “em Humanidade”.

 

(*) Intervenção proferida na Biblioteca Municipal de Ponte de Lima, em 22 de Dezembro de 2009, na apresentação da reedição do livro “A Nascente do Rio Lima”, de sua autoria.

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

Sugestões