Cláudio Lima - um poeta de eleição, por Fernando Aldeia

 

Cláudio Lima - um poeta de eleição, por Fernando Aldeia



Fernando Aldeia

 



Vate do Reino é uma obra de eleição, uma das melhores do grande poeta limiano, que merece urgentemente de uma maior divulgação. Editada em 2003 pela “Ausência”, divide-se em dois capítulos. Litoral”, o mar, e o segundo Interioridade”, a terra. Um livro que me encantou e que canta, como poucos, a terra e a alma do nosso país, do nosso povo, e que estabelece a dicotomia entre as duas metades, uma interior, a terra, e uma outra, a litorálica, banhada pelo Atlântico, porta de entrada e saída marítima. A primeira parte, o mar, o seu fascínio, a sua imensidão, o seu desafio, a ponte que ligou a novas aventuras, através do qual se valorizou, e o poeta valoriza, a epopeia marítima. Tal como na ”Mensagem” de Pessoa, o Litoral” centra-se nos episódios mais relevantes da “Saga dos Descobrimentos” e corresponde ao cumprimento do Império e de uma crescente responsabilização do indivíduo, que, empossado de uma missão que o ultrapassa, sugere o medo e as limitações humanas:

“O mar aqui a teus pés

sem ventos ou marés

que possam perturbar a descoberta.”;

  

“Havia terra

havia mar. (…)

 

Ficou o gado, o pinhal

a leira, a noiva, a guitarra:

além do mar outra terra

lançava uma nova amarra.”;

 

“Dá-me pátria o tema

para que o poema

zarpe barra fora; (…)”

 

Já Fernando Pessoa na “Mensagem,” no poema o Infante, diz: “ Deus quer, o homem sonha, a obra nasce/ Deus quis que a terra fosse toda uma (…) E a orla branca foi de ilha em continente/ clareou, correndo, até ao fim do mundo”. Tal como o Infante, Cláudio Lima, o poeta, embalado no sonho, embarcou numa das naus e partiu clamando para si a aventura, o desconhecido:

“Dá-me a força e a porfia

e os mapas da utopia

por achar.

 

E uma nau onde leve

o sonho grande que o Infante teve

junto ao mar.”

 

Tal como a “Mensagem” também o “Litoral do Vate do Reino” está repleto de mensagens, tanto no plano discursivo, como no plano simbólico, ou ainda, em termos estruturais e estéticos.

Pessoa no ”Mar Português” evoca, de forma magistral, os sofrimentos passados rumo à aventura, as lágrimas tornaram o mar salgado, maravilhosa metáfora, “Para que fosses nosso ó mar”. Cláudio Lima também nos transporta para estas cruzadas, que exigiram enormes sacrifícios, a ultrapassagem de muitos obstáculos:

“A ver navios partir

salgámos olhos e lenços. (…)

 

Nasceu o primeiro ilhéu

do orgasmo de uma quilha.

 

O mar pedia mais alma

à alma que ia à proa;

pedia que os olhos moços

fossem faróis ou destroços

de um sonho de Lisboa.”

 

Mas toda esta aventura não foi fácil, nem pacífica, mas sim dolorosa e muitas vezes cruel:

“Bolachas de água e sal

letras gordas de um missal

nossa cruz e cruz de Cristo.(…)

 

 – a nossa dor e a propagação da fé cristã –

“Mesmo que o mar fosse bruto (…)

que a malária, o escorbuto

roessem o corpo impoluto

dos donzéis;”

 

Em Sagres o Infante

“A ver navios partir (…)

A ver navios chegar”,

 

mas nem tudo eram boas novas:

“as velas esfarrapadas (…)

 

tábuas soltas de naufrágio

das longas perdidas rotas

da nossa rota perdida. (…)

 

 as letras oxidadas

do nome de Portugal

que o mar leu e olvidou.”

 

A alma andarilha que não se despega, e andarilhos continuamos. O poeta de novo se interroga:

“Que mística ou loucura nos levou

a, de descoberta em descoberta,

repetir Portugal onde calhou?”

 

ou,

“Que força freme nas velas (…)

nos atrai para as procelas:

- é mais partir que ficar?”

 

Apesar dos perigos e dos desafios, os portugueses conseguiram fazer valer o seu esforço, dando a conhecer a sua glória. O Poeta acaba por questionar se todo o sacrifício teria valido a pena. A resposta de F. Pessoa foi afirmativa: “ tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”, quando se é dotado de um espírito bravo e sonhador. Cláudio Lima diz-nos que

“É a hora

de consertar as redes

apetrechar os barcos.”,

 

depois de se ter afirmado e vincado que

“Das letras do nosso nome

fizemos rendas de mar, (…)

E dos versos de Bandarra

urdimos lendas e lendas” (…)

 

As trovas de Bandarra comprovam que o espírito de cruzada, produto de uma estrutura social, penetrara em todas as camadas e foram interpretadas em sentido messiânico, alimentando o mito do V Império universal. E o poeta continua:

“Foi bom mas acabou-se

aquele sonho verde

e leve

e lábil

papoila irrecusável de alegria. (…)

 

Agora

é de malha verdadeira

que tecemos nossas redes

de namorar os cardumes. (…)

 

É a hora

de arpoar o mito

e multiplicar os peixes.

 

De zelar os filhos

e fazer amor.

 

De entre casa e mar

ir e voltar.”

 

É tempo agora de utilizar o mar para dele tirarmos o sustento de que necessitamos e dele nos servirmos com rota segura:

“Do mar não quero mais nada (…)

 

o barco que daqui zarpou

perdeu rota e encalhou

num equívoco qualquer.”

 

Acabaram os sonhos, os sofrimentos, porque há outros rumos, outros interesses:

“nem só de navegar

a vida.

 

Há contas a fazer e a saldar

filhos a rever;

 

nem só largar

por ter que ser. (…)

 

mas nem toda a poesia

é epopeia.” (…)

 

“Adeus mares, temporais,

naufrágios, medos, sedutores acenos;

caravelas, nunca mais!

quarentenas, muito menos! (…)

 

“rotas sem lágrimas de sal”.

 

Agora somos Europa, independentemente da Diáspora residir em todos os continentes. As trevas hoje são outras, mas ainda há força suficiente para levar com determinação a difícil tarefa de nos erguermos das “trevas” que nos apoquentam. Tal como na “Mensagem”, Cláudio Lima celebra a grandeza de Portugal das Descobertas; os heróis mitificados, resguardados na memória colectiva, funcionam como modelos capazes de garantir a transformação colectiva que se exige.

 A segunda parte da obra, Interioridades”, também bela e profunda, fala-nos, numa linguagem telúrica, do interior do país, do terrunho que nos viu nascer, das nossas casas, das nossas aldeias, terras que viram partir para as descobertas os seus cidadãos, acontecendo ainda hoje, procurando o sustento que o país não lhes proporciona. Cláudio Lima, nesta belíssima poesia, transporta-nos para a infância:

“… quando os pássaros vinham

mansamente

bicar o milho

à palma da mão. (…)”,

 

Para a alegria e bucolismo campestre:

“… álacres cantigas pelos verdes campos

e domingos bonitos mais do que agora.

 

As raparigas exibiam longas tranças

lábios rubros, olhos negros de amora (…)

 

e seios disparados como amores-perfeitos.”

 

 A sensualidade sempre presente:

“Os rapazes chegavam de bicicleta, morenos,

de braços robustos.(…)

 

Era quando sob as árvores

a caneca de vinho

matava a sede e selava

a linear doutrina do convívio.”

 

Tudo isto o poeta recorda com nostalgia porque todo o ambiente se alterou:

“…vieram os cogumelos mortíferos

ensombrar o recinto bucólico das casas,

a copa ogival dos pinheirais. (…)

 

as crianças sem tempo para viver (…)

 

E a paz que tão longe se esfumava

tão nítida e tão perto parecia.”

 

O autor recorda e retrata tempos passados da história com a presença romana, e ainda o chafariz, o pelourinho, colunas sustentando símbolos heráldicos, a Igreja Matriz, a sede municipal, os “solares austeros/ ou rendilhados”, fazendo-nos convergir para a imagem de Ponte de Lima. No poema “aldeia” o poeta conduz-nos para as aldeias hodiernas, muitas delas sem gente e casas abandonadas a desmoronar-se, fala-nos da fuga para as grandes cidades, para o litoral ou estrangeiro, ou ainda daqueles que só procuram o poder, o sucesso, aqueles que esqueceram os caminhos de então, os utentes dos

“…super aderentes pneus goodyear.”,

 

“as casas pequenas e quase envergonhadas

de existir (…)”,

 

“esta revoada de galináceos

a fazer pela vida grão a grão

pelos quintais”.

 

Mas o poeta, como filho da terra, conhece o “barro e os apeiros, o nome e o uso polidos pela lâmina do tempo”, sabe do rito do pão e “do fio branco de fumo, mais alma de tojo/ do que ejaculação de veneno contra os olhos”./ No poema “Miradouro” o poeta recorda, não sem sofrimento, o passado e o presente, e lá do alto “vejo a cidade lá no fundo/ (…) a invasão imobiliária e a concomitante destruição da propriedade rústica e

“Onde era verde é cinzento,

onde foi horta perfila-se

um monstro de quinze andares. (…)”

 

“Ai como a cidade se expande

na mania de ser grande! (…)

 

Ai campo lavrado, prado florido

como a alma sofre por vos ter perdido!”

 

O poeta lembra o ambiente simples e familiar da população rural, o sentido comunitário que se vai diluindo. Do poema “Apontamento Rural”, respigamos:

“Uma família vai às cerejas.

 

O pai leva uma escada

e a mãe a filha mais nova. (…)

 

O pai também veste mal

mas orgulha-se de ter cerejas

três filhos

e aquela escada grande

que chega ao topo dos frutos

e das suas ambições.”

 

Em “Noite Rural” o escritor continua a caminhar pelo mundo rural onde ainda prevalecem os bons costumes e os negócios selam-se com palavras:

“Neste lugar ninguém caminha a esmo. (…)

 

E as donzelas recolhem ao sol posto (…)

 

Esta paz

esta bem-aventurança circunscrita

apenas é violada

pela volúpia invasora de meus passos.”

 

E assim o autor, passo a passo, vai peregrinando por todo o espaço do território, trazendo-nos através da palavra a radiografia que reflecte a vida quotidiana:

“Sobre o asfalto

jaz

um cão vadio.

 

O trânsito não parou

nem qualquer sirene perturbou

a calma da cidade. (…)”

 

A terra não é o elemento exclusivo do motivo gerador deste capítulo da obra. Terra e água intimamente ligadas, desde simbolicamente as águas-mães, nutritivas das fontes, água das chuvas, do rio personificado:

“…no apuro das bocas

das azenhas.

 

Os olhos d´água`

escorrendo lágrimas

sem fim.”

 

O “Choro d´água”, porque “A água chora. Cai.”

“A água sobe como um caule

ao nível da sede (…)

 

A água é um enigma.

 

Como a explicar

sem ir ao fundo?”

 

A neve:

“A neve cai; no nevão

os meninos-poetas vão correndo (…)

 e eu lobo-poeta uivo em vão.” 

 

O rio:

“Na minha terra há um rio. (…)

O rio corre para o mar. (…)

O rio tem uma história (…)

E o povo queda-se a vê-lo

horas e horas a fio

com vontade de bebê-lo.”

 

Os pomares, os frutos, o ciclo dos frutos:

“Das árvores entendo tudo. A lenta espera de Abril (…)

Sei que os pragmáticos

perguntam pelos frutos; eles estão lá, maduros

e oclusos sob a púdica vigilância das folhas.”

 

O poeta sai do círculo estreito do seu “eu”, e o mundo que o rodeia é o esteio, o fundamento, o impulso de onde nascem os sentimentos, as emoções, as reflexões. O poeta também nos fala, como homem da terra, aldeão assumido, da uva, do vinho: “O vinho é a génese dos génios”- espevita o espírito?

“o vinho que é sangue estimulante (…)

alma benéfica de um deus errante(…)

 

dádiva do sol perfumada e quente

que se deve libar ritualmente

como quem se purifica quando peca;”

 

Cláudio Lima brinda-nos com um verdadeiro hino de exaltação à terra-mãe. É um poeta telúrico; através destes poemas a terra é também a sua paixão, despojada de qualquer exigência de racionalidade. Ama a natureza, o seu terrunho, numa atitude de soberana fidelidade. Não deixando de ser um talassófilo, é bem perceptível não só a mensagem que o seu Litoral” encerra, mas também o fascínio que o mar induz, a grande via que nos conduz além da utopia, onde se cumpriu a irresistível e enorme gesta do nosso destino. Cláudio Lima continua o seu percurso terrestre e avança até ao Sul e na evocação sublime do Alentejo diz-nos que

Aqui a cal não esgota o branco. (…)

E as casas sabem-no

no palor demorado do luar”

 

- a necessidade do branco para reflectir o calor-  “o bafo azul e tórrido (…) e mais a sul, no Algarve,

Tudo flui: a brisa, a bruma, (…)

onde o velho pescador fuma,

aprofundando,

a essência mesma do tempo.”

 

No poema “Recado“, o poeta olha o Alentejo, a sua gente, o seu canto lento e triste “que sob a sombra redonda de um chaparro/ se adensa o enigma português”, num lirismo que impõe uma excepcional capacidade de ver e admirar um transitar livre de ida e volta nos caminhos da memória. – O poeta despede-se com “Lamento”, do seu palmilhar palmo a palmo pelo país:

“Meu livro quase roto, quase lido,

Tão decorado, esquecido,

tão nosso, tão estranho,

tão pequenino, tamanho. (…)

 

um interior que fica enquanto o litoral voa

na crista de um mito, na proa de uma nave.”

 

Água e terra intimamente ligadas, desde simbolicamente as águas-mães originais e alimentadoras das fontes, até ao mar-oceano que na viagem onírica levou longe o poeta, no encalço dos desbravadores da epopeia, alargando o horizonte do planeta. Poemas que foram sedimentando nas páginas da obra, poemas de pendor épico, outros com uma vertente mais lírica. O poeta, embora viajando nas ondas da epopeia, também soube regressar à paisagem da sua terra, calcorreando a lusa pátria, estabelecendo um transitar livre de ida e volta nos caminhos da memória. Palavras que transmitem beleza, sussurram emoções, descrevem com magia a Natureza, transportando-a para lugares que só a alma de poeta pode sentir.

Sou um admirador da obra poética de Cláudio Lima, cujos livros me empurraram para um jardim paradisíaco, onde o milagre aconteceu e as palavras se transformaram em flores de vários matizes, e em que pude respirar o odor poético que exala de versos apurados que transportam a seiva redentora, impregnada de humanismo e de esperança. Ler, reler, tresler e divulgar é o melhor tributo que lhe podemos prestar.

Braga, 7 de Julho 2014

In: LIMIANA - Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 39, de Outubro de 2014

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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